No coracao do mar - Charlotte Rogan
DIA DEZ, TARDE Agora eu entendia por que o Sr. Hardie dissera que o vento até então não passava de uma brisa, mas acredito que nem ele estivesse preparado para aquela intensidade. O pequeno barco era sacudido como uma casca de noz por ondas do tamanho de um transatlântico. Pensei no diácono e no Sr. Sinclair, e em como Hardie poderia ter evitado se tornar um assassino. Sim, foi esta a palavra que usei, pois eu tinha a impressão de que o número exato de pessoas no barco importava pouco, ou nada. Morreríamos todos em segundos, com ou sem superlotação, e o que eu mais lamentava era não morrer com minha fé na natureza humana intacta. Eu tinha acreditado na bondade inata do homem durante os vinte e dois anos de minha vida, e esperava carregar essa crença comigo até a sepultura. Queria acreditar que cada um podia ter o que desejasse, que não havia conflito intrínseco entre interesses rivais e que, se tragédias acontecessem, não seriam coisas que meros seres humanos conseguiriam controlar. Tudo isso me passou pela cabeça aquela tarde, mas sem muita coerência. O barco sacudia e balançava, alternando o topo espumante das ondas com descidas infernais, rodeado nos quatro lados por paredes de água escura. Era terrível de se ver. Hardie e o Sr. Nilsson pegaram um remo cada, enquanto o coronel e o Sr. Hoffman lutavam com um terceiro. Juntos, faziam um esforço corajoso para manter o nariz da embarcação para o vento, pois a única coisa que nos interessava era conseguir atravessar a tormenta, e nos agarrávamos uns aos outros do mesmo modo como eu me agarrava aos últimos fiapos de minhas convicções. A Sra. Grant e o Sr. Preston faziam o que era possível com o último dos remos, mas não tinham condições de enfrentar a fúria da tempestade. Contudo, eu era grata a seus esforços e admirava a tenacidade com que lutavam com as longas lâminas. Apesar da falta de eficácia, ninguém desistiu. Com uma das mãos eu me segurava no banco, para não ser derrubada como o cavaleiro de um cavalo selvagem, e com a outra firmava Mary Ann, que estava sentada a meu lado e se agarrava em mim com as duas mãos como se eu fosse sua tábua de salvação. Para aumentar nosso desespero, uma chuva torrencial nos castigava e relâmpagos assustadores riscavam o céu. Mal conseguíamos ver a extremidade do barco, de modo que se eu dissesse que as ondas se erguiam a cinco metros ou a dez, seria pura especulação. Mais tarde, Hardie viria a nos contar que haviam atingido pelo menos doze metros, mas não sei dizer em que ele se baseou para fazer tal afirmação. Às vezes o barco se mantinha por um instante na crista de uma onda para logo mergulhar daquela altura como um trenó que descesse uma escarpa coberta de neve. Nossos estômagos se reviravam e tínhamos ânsias de
vômito quando isso acontecia, mas em outras ocasiões não tínhamos igual sorte: a onda acertava com violência nossos ombros e enchia o barco com ainda mais água, que chegava então quase a nossos joelhos. Ainda assim, não afundávamos. Nos minutos que antecederam a chegada da tempestade, o Sr. Hardie ordenara a troca de remadores e entregara as latas vazias de biscoito a Hannah e Isabelle, que imediatamente passaram a usá-las para baldear com furiosa energia. Depois arrancara a tampa dos dois pequenos tonéis que ele ciosamente guardava como se ainda contivessem água, e agora o coronel Marsh e o Sr. Hoffman, mesmo com muita dificuldade em manter-se de pé na madeira escorregadia, os enchiam e em seguida os esvaziavam no oceano. Durante todo o tempo, Hardie concentrava seus valentes esforços em manter a proa do barco apontada para as ondas, enquanto os outros remadores faziam o possível para ajudá-lo. O barco era jogado para o alto com tanta fúria que apenas uma em cada cinco tentativas de esvaziar os baldes e tonéis era bem-sucedida, mas eles insistiam insanamente, heroicamente, levando-me a imaginar o que seria de nós sem aqueles cinco homens fortes. E se o coronel Marsh tivesse sorteado a lasca curta, ou o Sr. Nilsson, ou o próprio Hardie? Michael Turner era de longe o mais velho dos homens, e o diácono era magro e fraco, e embora o Sr. Sinclair tivesse braços incrivelmente musculosos, era incapaz de se movimentar no barco ou de utilizar as pernas. Com um estremecimento de terror, compreendi que o resultado podia não ser obra da sorte, ainda que eu não tivesse percebido qualquer truque que indicasse manipulação. Hardie não deixara nada por conta do acaso, ele escolhera quem viveria e quem morreria. Eu não conseguia tirar da cabeça a ideia de que o barco estava sob a influência de uma força maligna, de que era o próprio diabo que me mantinha viva. Não muito depois o Sr. Hoffman deixou escapar seu tonel, que no mesmo instante desapareceu no turbilhão. Hardie não disse uma palavra, mas confiou seu remo a Hoffman e rasgou a tampa do terceiro e último recipiente. Dessa vez não o entregou a ninguém, ele mesmo enfiou-o na água e ergueu-o até a amurada, mas não antes de eu perceber que não continha água da chuva, apenas uma pequena caixa que ele rapidamente escondeu sob o casaco. Não suspeitei de nada na ocasião. Pensei apenas que Hardie fizera um bom trabalho ao conseguir que o estoque de água durasse tanto tempo. Somente outro fato se destaca contra o cenário de horror daquela tempestade terrível. O dia sombrio cedera lugar a uma noite mais escura ainda. A chuva não dava trégua. Era como se oceano e céu tivessem se fundido. Nosso barco continuava a ser arremessado para o alto e ou caía a prumo ou colidia com as cristas das ondas no momento em que quebravam. Contudo, apesar da nauseante sensação de cair em um poço sem fundo, eu agradecia a Deus e ao Sr. Hardie cada vez que éramos poupados de um novo dilúvio sobre nossas cabeças. Eu estava agradecendo por sair sã e salva de uma dessas descidas abruptas
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Agora eu entendia por que o Sr. Hardie dissera que o vento até então não passava<br />
de uma brisa, mas acredito que nem ele estivesse prepara<strong>do</strong> para aquela<br />
intensidade. O pequeno barco era sacudi<strong>do</strong> como uma casca de noz por ondas <strong>do</strong><br />
tamanho de um transatlântico. Pensei no diácono e no Sr. Sinclair, e em como<br />
Hardie poderia ter evita<strong>do</strong> se tornar um assassino. Sim, foi esta a palavra que<br />
usei, pois eu tinha a impressão de que o número exato de pessoas no barco<br />
importava pouco, ou nada. Morreríamos to<strong>do</strong>s em segun<strong>do</strong>s, com ou sem<br />
superlotação, e o que eu mais lamentava era não morrer com minha fé na<br />
natureza humana intacta. Eu tinha acredita<strong>do</strong> na bondade inata <strong>do</strong> homem<br />
durante os vinte e <strong>do</strong>is anos de minha vida, e esperava carregar essa crença<br />
comigo até a sepultura. Queria acreditar que cada um podia ter o que desejasse,<br />
que não havia conflito intrínseco entre interesses rivais e que, se tragédias<br />
acontecessem, não seriam coisas que meros seres humanos conseguiriam<br />
controlar.<br />
Tu<strong>do</strong> isso me passou pela cabeça aquela tarde, mas sem muita coerência. O<br />
barco sacudia e balançava, alternan<strong>do</strong> o topo espumante das ondas com descidas<br />
infernais, rodea<strong>do</strong> nos quatro la<strong>do</strong>s por paredes de água escura. Era terrível de se<br />
ver. Hardie e o Sr. Nilsson pegaram um remo cada, enquanto o coronel e o Sr.<br />
Hoffman lutavam com um terceiro. Juntos, faziam um esforço corajoso para<br />
manter o nariz da embarcação para o vento, pois a única coisa que nos<br />
interessava era conseguir atravessar a tormenta, e nos agarrávamos uns aos<br />
outros <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> como eu me agarrava aos últimos fiapos de minhas<br />
convicções. A Sra. Grant e o Sr. Preston faziam o que era possível com o último<br />
<strong>do</strong>s remos, mas não tinham condições de enfrentar a fúria da tempestade.<br />
Contu<strong>do</strong>, eu era grata a seus esforços e admirava a tenacidade com que lutavam<br />
com as longas lâminas. Apesar da falta de eficácia, ninguém desistiu. Com uma<br />
das mãos eu me segurava no banco, para não ser derrubada como o cavaleiro de<br />
um cavalo selvagem, e com a outra firmava Mary Ann, que estava sentada a<br />
meu la<strong>do</strong> e se agarrava em mim com as duas mãos como se eu fosse sua tábua<br />
de salvação.<br />
Para aumentar nosso desespero, uma chuva torrencial nos castigava e<br />
relâmpagos assusta<strong>do</strong>res riscavam o céu. Mal conseguíamos ver a extremidade<br />
<strong>do</strong> barco, de mo<strong>do</strong> que se eu dissesse que as ondas se erguiam a cinco metros ou<br />
a dez, seria pura especulação. Mais tarde, Hardie viria a nos contar que haviam<br />
atingi<strong>do</strong> pelo menos <strong>do</strong>ze metros, mas não sei dizer em que ele se baseou para<br />
fazer tal afirmação. Às vezes o barco se mantinha por um instante na crista de<br />
uma onda para logo mergulhar daquela altura como um trenó que descesse uma<br />
escarpa coberta de neve. <strong>No</strong>ssos estômagos se reviravam e tínhamos ânsias de