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No coracao do mar - Charlotte Rogan

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DIA DEZ, MANHÃ<br />

O décimo dia amanheceu instável e frio. O <strong>mar</strong> se revolvia sob nosso barco,<br />

arman<strong>do</strong>-se em gigantescas elevações. Apesar <strong>do</strong> tamanho, as ondas não<br />

quebravam, portanto conseguimos, não sei como, limitar a alguns centímetros o<br />

nível da água no fun<strong>do</strong> da embarcação. A Sra. Grant continuava a transmitir sua<br />

discreta segurança, mas ocasionalmente também expressava seu desgosto por<br />

Hardie, ao temer inundar o barco e não permitir o içamento da vela, pois ela<br />

tinha certeza de que nossa salvação dependia <strong>do</strong> avanço que fizéssemos na<br />

direção de alguma costa distante.<br />

O Sr. Hardie recusava-se a olhar-me nos olhos, mas de tempos em tempos eu<br />

sorria em sua direção, na tentativa de demonstrar-lhe meu apoio. Eu não sabia se<br />

ele precisava ou não de apoio. Passara a vê-lo como um ser sobre-humano, ou<br />

talvez até supra-humano, tão poucas eram suas semelhanças com qualquer um<br />

de nós. Na maioria das vezes, no entanto, eu voltava-me para dentro, na<br />

expectativa de que um instante se transformasse no seguinte, fosse lá o que esse<br />

instante seguinte me reservasse, bem ou mal. Alheia a tu<strong>do</strong> aquela manhã, só<br />

conseguia me ater ao imenso desconforto de estar sentada com as roupas<br />

molhadas no meio de um vazio que englobava tu<strong>do</strong>, ou pelo menos tu<strong>do</strong> que<br />

importava. Media os intervalos de tempo entre os espasmos que estremeciam<br />

meu corpo ou entre as batidas de meu coração aperta<strong>do</strong>. Concentrei-me no frio<br />

que sentia no peito, e comparei-o ao que sentia nos pés. Tentei decidir se valeria<br />

a pena enfiar as mãos entre as pernas ou se seria melhor mantê-las dentro <strong>do</strong><br />

colete salva-vidas e abraçar a mim mesma com força.<br />

Eu ainda me lembrava de minhas preocupações da noite anterior com relação<br />

às mensagens de socorro, e por duas vezes abri a boca para tocar no assunto. A<br />

primeira foi com Mary Ann, e a segunda com o diácono, cujo olhar cruzou com<br />

o meu quan<strong>do</strong> o Sr. Hardie se recusou a passar de mão em mão a caneca de<br />

água. Mas as palavras não saíram, e me perguntei de que serviria lançar a<br />

semente da desconfiança contra o único homem que poderia nos salvar. Além<br />

disso, eu não tinha uma prova concreta de que o sistema Marconi não estava em<br />

boas condições. Foi enquanto eu tentava colocar ordem em minha mente<br />

tumultuada que me ocorreu uma nova linha de pensamento.<br />

O Sr. Hardie tinha nos fala<strong>do</strong> que o Sr. Blake estava na sala de rádio até o<br />

instante em que o fogo forçara to<strong>do</strong>s os passageiros a subir para o convés, e que<br />

Blake confir<strong>mar</strong>a o envio das mensagens de socorro. De fato, eu me lembrava<br />

de ter visto o Sr. Hardie com um oficial <strong>do</strong> navio, que poderia ser Blake, quan<strong>do</strong><br />

Henry e eu subimos para o convés naquela tarde, de mo<strong>do</strong> que seria razoável<br />

supor que Blake tivesse, naquela ocasião, conta<strong>do</strong> para Hardie sobre os pedi<strong>do</strong>s<br />

de socorro. <strong>No</strong> entanto, se o sistema estava em pane, ou o Sr. Blake tinha menti<strong>do</strong>

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