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— Acredito que o senhor saiba — respondeu Hardie. — Amanhã, se o tempo<br />
continuar a piorar, a água irá invadir o barco mais depressa <strong>do</strong> que conseguimos<br />
esvaziá-lo. Eu diria que levaremos menos de um minuto para afundar depois que<br />
a água chegar a este ponto.<br />
Ao dizer isso, ele bateu na madeira apenas alguns centímetros acima da altura<br />
que a água já atingira. É evidente que não passava de especulação, mas eu<br />
tomava como certo tu<strong>do</strong> que Hardie dizia.<br />
Enquanto faço essas anotações, percebo que <strong>do</strong>u a impressão de que<br />
estávamos ten<strong>do</strong> uma conversa nos moldes das que se desenrolam em salas de<br />
estar, acompanhadas de chá e biscoito, quan<strong>do</strong>, na verdade, meus companheiros<br />
precisavam falar muito alto para que suas vozes encobrissem o ruí<strong>do</strong> <strong>do</strong> vento e<br />
<strong>do</strong> quebrar das ondas. Várias pessoas gritavam ao mesmo tempo. As palavras<br />
ficavam embaralhadas pelo vento e era impossível dar-lhes senti<strong>do</strong> integral.<br />
— Se não formos resgata<strong>do</strong>s, claro — confirmou o diácono, em desespero. —<br />
O senhor mesmo disse que nos encontrariam.<br />
— Sei muito bem o que eu disse, mas não nos encontraram ainda, não é<br />
mesmo? — Hardie então nos ofereceu sua interpretação das sirenes de nevoeiro<br />
que ouvíramos: — Estou convenci<strong>do</strong> de que era a sirene de nevoeiro de um navio<br />
grande. Se esse navio colidiu com o outro barco salva-vidas, e não estou dizen<strong>do</strong><br />
que foi o que aconteceu, as pessoas a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> navio jamais teriam percebi<strong>do</strong>, <strong>do</strong><br />
mesmo mo<strong>do</strong> como não perceberíamos se pisássemos em um graveto ou em um<br />
palito de fósforo. E se, por milagre ou acaso, o outro barco foi resgata<strong>do</strong> e tentou<br />
nos encontrar, a triste realidade é que não conseguiu.<br />
Houve silêncio no barco, segui<strong>do</strong> de murmúrios irrita<strong>do</strong>s. A decepção levou<br />
meu coração ao chão. Eu me sentia acima de tu<strong>do</strong> enganada, embora parte de<br />
mim reconhecesse que Hardie só concordara em erguer a vela porque sua<br />
esperança de resgate tinha definha<strong>do</strong> e talvez até sumi<strong>do</strong>. Naquele momento eu<br />
odiava Hardie, mas também o amava. Precisava dele, ao menos, e queria que<br />
ele soubesse disso. Para agradá-lo, ou pelo menos para atrair sua atenção,<br />
exclamei:<br />
— Não devemos culpar o Sr. Hardie por nos dizer a verdade!<br />
Para minha tranquilidade, o murmúrio no barco diminuiu. Tenho certeza de<br />
que Hardie lançou-me um olhar de aprovação, e por um instante meu ânimo foi<br />
às alturas, para logo se estabilizar em um nível bem superior ao de apenas alguns<br />
segun<strong>do</strong>s antes. Meu olhar cruzou com o <strong>do</strong> pobre diácono e uma sensação de<br />
triunfo invadiu meu peito.<br />
— A tua vara e o teu caja<strong>do</strong> me consolam — acrescentei, e fui recompensada<br />
com um sorriso páli<strong>do</strong> não apenas <strong>do</strong> diácono, mas também da Sra. Cook, que<br />
por um breve momento deixou a apatia de la<strong>do</strong> e bateu de leve em minha mão.<br />
— Ainda que o vento parasse imediatamente e conseguíssemos tirar toda a<br />
água <strong>do</strong> barco, não adiantaria, pois só nos restam um pedacinho de peixe e