No coracao do mar - Charlotte Rogan
aproximamos deles o suficiente uma única vez para poder vê-los com clareza. — Era Blake — insistiu Hardie. — O outro barco estava cheio, ao contrário deste. Além disso, repararam que eles nunca chegaram perto de nós? — Mas foi sua a ordem de não nos aproximarmos deles! — exclamou Hannah. — Blake é um cão raivoso. Não ouviram aquele camarada barbudo nos contar que ele empurrou duas pessoas para fora do barco dele? Com o comandante fora do caminho, ele me mataria em um piscar de olhos. Ficar longe era o melhor a fazer. — Ou o mais seguro — retrucou Hannah. — Mais seguro significa melhor. Vocês não passaram a vida no mar, como eu. Os homens que vão para o mar geralmente são aqueles que querem fugir de alguma coisa! — É o seu caso? — perguntou Hannah. Mas eu queria acreditar que Hardie ficara longe do barco de Blake para nos proteger. Foi Hannah quem espalhou que Hardie tinha feito isso visando o próprio interesse. — Na verdade, não sabemos por que Blake empurrou aquelas pessoas do barco... Talvez tenham causado algum problema. E se no final o outro barco tivesse lugar sobrando? — perguntou a Sra. Grant, finalmente exprimindo algo que estava na minha cabeça havia dias e que talvez estivesse passando pela cabeça dos outros também. — Ainda que o barco estivesse avariado, acredito que poderíamos ter ajudado a consertá-lo e depois transferido algumas pessoas do nosso para lá. Devíamos ter pelo menos tentado. Talvez agora estivéssemos correndo menos risco. Como muitas coisas que a Sra. Grant falava, a sugestão de consertar o outro barco era vaga e não especificava como o reparo teria sido feito sem materiais ou ferramentas, mas a ideia de que Hardie poderia estar agindo por puro interesse começava a ganhar corpo. Ele tinha sido tão preciso com relação a outros detalhes... Então por que omitira essa história com Blake desde o início? Talvez estivesse mentindo para encobrir seus erros. Talvez fosse ele quem tivesse um passado a esconder. O coronel se esforçava para levar a conversa de volta a uma direção mais produtiva: — Aposto que no meio do nevoeiro o outro barco foi atingido por algum navio que passava e afundou sem ser visto. Se os ocupantes tivessem sido resgatados, um deles teria falado sobre nós, qualquer que fosse a opinião de Blake sobre o assunto. — O navio não teria percebido a colisão? Com certeza teriam sentido o choque e tentariam descobrir do que se tratava — argumentou a Sra. McCain, enquanto a Sra. Cook, tão participativa no início, tinha agora o olhar vazio de uma pessoa em
transe. Hardie se recusava a comentar nossa interpretação dos fatos. Limitava-se a dizer “Talvez sim” ou “Talvez não” quando pediam diretamente sua opinião. Por fim a Sra. Grant falou: — Tanta conversa sobre resgate... Como se tudo dependesse dos outros. Por mim, deveríamos estabelecer um plano e dar um jeito de nos salvarmos sozinhos. Isso soprou em mim uma breve lufada de esperança. Era uma ideia tão simples e óbvia que me perguntei por que ninguém ainda a mencionara. A triste verdade era que não tínhamos sido resgatados, portanto não havia razão para permanecermos nas proximidades do navio naufragado. — Claro! Ajuda-te e o céu te ajudará! — exclamei, e fui logo imitada pelos outros. Era esse o princípio que norteava minha vida, e, ainda que às vezes pudesse fazer as pessoas que o adotavam parecer egoístas e pouco caridosas, as que o recusavam surgiam aos meus olhos como fracas e parasitas. Quando o sol afinal conseguiu atravessar a neblina, tentei encará-lo, ainda que com relutância, habituada que estava ao refúgio da noite e à visibilidade limitada. Aqueles dias cristalinos em que era possível enxergar até o infinito, ou pelo menos até a curva do horizonte, onde o mundo mergulhava no nada, me assombravam, porque não havia o que ver. Mas, agora que tínhamos um plano, eu estava feliz de rever o horizonte, pois nosso destino estava lá... no oeste! “Ajuda-te e o céu te ajudará”, eu repetia sem parar para mim mesma, exatamente como disse para Felicity Close no dia em que ela foi me visitar. Ela seguira Henry uma vez, e assim descobrira onde eu morava. Estava bem vestida, mas lhe faltava encanto, e pensei que poderíamos ter sido amigas se não fôssemos rivais. Falei que éramos ambas pessoas sensatas e que o bom senso deveria prevalecer. A maior parte do tempo, no entanto, eu apenas a ouvi. Uma das coisas que ela me falou foi que Henry estava impregnado de tradições que eu não poderia sequer começar a compreender e cuja falta, ela receava, ele lamentaria quando caísse em si. Disse também que aquela situação estava em completo desacordo com o caráter de Henry e que ele nada tinha de impulsivo ou romântico. Será que estávamos falando do mesmo homem?, eu me perguntei. Tendo dito o que tinha a dizer, ela foi embora. Apesar de sentir pena dela, eu percebia que libertara Henry, tanto da tradição quanto do cerceamento emocional, algo de que a correta Felicity jamais seria capaz. Foi essa constatação que acabou com qualquer sentimento de culpa que eu pudesse ter. A Sra. Grant mantinha-se em vigília constante. Estava sempre de preto e com o cabelo tão puxado para trás que mesmo uma semana de vento e ondas não havia sido suficiente para desarrumá-lo. Seus olhos não hesitavam diante do vazio do oceano. O sol queimara seu rosto, por isso sua pele estava descascando e com
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fim a Sra. Grant falou:<br />
— Tanta conversa sobre resgate... Como se tu<strong>do</strong> dependesse <strong>do</strong>s outros. Por<br />
mim, deveríamos estabelecer um plano e dar um jeito de nos salvarmos<br />
sozinhos.<br />
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— Claro! Ajuda-te e o céu te ajudará! — exclamei, e fui logo imitada pelos<br />
outros.<br />
Era esse o princípio que norteava minha vida, e, ainda que às vezes pudesse<br />
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<strong>do</strong> horizonte, onde o mun<strong>do</strong> mergulhava no nada, me assombravam, porque não<br />
havia o que ver. Mas, agora que tínhamos um plano, eu estava feliz de rever o<br />
horizonte, pois nosso destino estava lá... no oeste!<br />
“Ajuda-te e o céu te ajudará”, eu repetia sem parar para mim mesma,<br />
exatamente como disse para Felicity Close no dia em que ela foi me visitar. Ela<br />
seguira Henry uma vez, e assim descobrira onde eu morava. Estava bem vestida,<br />
mas lhe faltava encanto, e pensei que poderíamos ter si<strong>do</strong> amigas se não<br />
fôssemos rivais. Falei que éramos ambas pessoas sensatas e que o bom senso<br />
deveria prevalecer. A maior parte <strong>do</strong> tempo, no entanto, eu apenas a ouvi. Uma<br />
das coisas que ela me falou foi que Henry estava impregna<strong>do</strong> de tradições que<br />
eu não poderia sequer começar a compreender e cuja falta, ela receava, ele<br />
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completo desacor<strong>do</strong> com o caráter de Henry e que ele nada tinha de impulsivo<br />
ou romântico. Será que estávamos falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo homem?, eu me perguntei.<br />
Ten<strong>do</strong> dito o que tinha a dizer, ela foi embora. Apesar de sentir pena dela, eu<br />
percebia que libertara Henry, tanto da tradição quanto <strong>do</strong> cerceamento<br />
emocional, algo de que a correta Felicity jamais seria capaz. Foi essa<br />
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A Sra. Grant mantinha-se em vigília constante. Estava sempre de preto e com<br />
o cabelo tão puxa<strong>do</strong> para trás que mesmo uma semana de vento e ondas não<br />
havia si<strong>do</strong> suficiente para desarrumá-lo. Seus olhos não hesitavam diante <strong>do</strong> vazio<br />
<strong>do</strong> oceano. O sol quei<strong>mar</strong>a seu rosto, por isso sua pele estava descascan<strong>do</strong> e com