No coracao do mar - Charlotte Rogan

do que nunca a impressão de que se julgava onipotente e capaz de moldar a
natureza e os fatos de acordo com sua vontade, mas naquele momento essa
capacidade parecia apresentar um leve toque de maldade. No decorrer dos dias
seguintes, tentei acreditar que sua hesitação em resgatar Rebecca provinha de
uma sincera indecisão sobre como efetuar o resgate com segurança, levando em
conta a superfície encapelada do mar, a superlotação do barco e o equilíbrio
precário dos que tinham se levantado em vez de permanecer sentados, como
recomendado. Ao mesmo tempo, perguntei-me — e o Sr. Hardie deve ter feito o
mesmo — se Rebecca não teria sido vítima de uma espécie de seleção natural, e
também se, já que ela caíra no mar, talvez fosse o melhor para todos. Esses
pensamentos foram acompanhados da ideia de que a dedicação de Hardie era
voltada acima de tudo para aqueles que se encontravam no barco, não fora dele,
fosse qual fosse o motivo para estarem fora. Depois, por baixo de tudo infiltrouse
na caixa-forte de minha mente, como água através de uma fenda mal
calafetada, a ideia de que Hardie tentava nos dar uma lição. Ah, eu sabia que
meu destino estava em suas mãos: essa não era uma lição que eu precisasse
aprender.
Não acredito que eu tenha sido a única a chegar a essa conclusão, dado o
silêncio que se instalou entre nós, tenso e fino como uma corda, e o número de
vezes que flagrei um ou outro passageiro com o olhar fixo em Hardie depois que
ele afinal içou Rebecca e que as italianas tiraram-lhe as roupas encharcadas e
apertaram-na contra seus corpos sob os cobertores. Havia medo nos olhos delas,
tanto quanto respeito e admiração, embora não fosse o caso de Hannah e da Sra.
Grant. Claro, esse estranho clima podia ser por causa do vento, que parecia se
ocupar em nos esmagar mais do que em soprar, ou a fome, ou ainda o fato de
muitos estarem agora molhados até os ossos; além do fato de que, claro, Rebecca
quase tinha morrido diante de nossos olhos. Ficamos sentados em nossos lugares,
tremendo como cães escorraçados, enquanto a Sra. Grant se aproximava de
Rebecca com passos prudentes para confortá-la. O barco balançava, o Sr. Hardie
gritava com o pessoal que escoava a água e as italianas emitiam um coro de
lamentos operístico com os rostos trágicos voltados para o céu. A Sra. Cook, que,
quando não estava contando histórias, mostrava-se estranhamente submissa, não
cansava de passar um pano úmido no cabelo de Rebecca, sabe-se lá para quê.
Hardie ergueu a lata de biscoitos na direção do céu sombrio de final da tarde
enquanto o diácono, imprimindo um falso entusiasmo à voz, fazia as repetidas
menções a Jesus Cristo, e por fim, desanimados e tristes, comemos nossa porção
de biscoitos duros.
Não sei no que Rebecca estava pensando, se é que pensava em algo. Durante
muito tempo permaneceu agachada no dormitório, calada. Em determinado
momento, falou:
— Se pelo menos o pequeno Hans estivesse aqui...