No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

— Pensei que o Empress Alexandra tivesse sido vendido a um proprietário capaz de conseguir algum lucro! O senhor acredita que o Sr. Hardie possa ter inventado essa história de um novo proprietário? O Sr. Hardie, que, é claro, o escutara, jogou contra o Sr. Preston o balde que carregava e explodiu: — Eu não continuaria a trabalhar para aquele bisbilhoteiro pão-duro que foi dono do navio. Estava farto de dar meu sangue para aquele canalha! Se isso não bastou para convencer o Sr. Preston, ele não ousou revelar. Não posso ser exageradamente crítica ao relatar como os outros usavam histórias para passar o tempo, verdadeiras ou não, pois às vezes Mary Ann e eu fazíamos o mesmo. Eu lhe contava sobre a primeira vez que vira Henry, caprichando nos detalhes por horas e horas: como ele estava vestido, como chegara ao estabelecimento onde trabalhava em um automóvel elegante, do qual descera lentamente, revelando-se como um retrato que toma forma em uma tela. Eu poderia fazer essa parte da história durar dez minutos, ou até mais se Mary Ann estivesse disposta a pedir detalhes que eu deixara de fora, e ela em geral estava. Eu tinha perdido o salto do sapato, por isso claudicava ao longo da calçada; Henry galantemente inspecionara a sarjeta de cima a baixo, nos dois lados da rua. Como não encontrou o salto perdido, levou-me para casa em seu carro. — Como a Cinderela! — exclamou Mary Ann. Foi uma das poucas vezes que ri no barco salva-vidas, pois a comparação era mais apropriada do que ela imaginava. Não contei a ela que aquele dia na calçada, ao pé da escadaria de mármore do banco onde Henry trabalhava, não foi a primeira vez que reparei nele, assim como o baile não foi a primeira vez que a Cinderela e suas meias-irmãs ouviram falar do charmoso príncipe, mas eu gostava de sonhar que tudo se passara assim. Por um lado, porque tinha sido a primeira vez que Henry pousara seus olhos azuis em mim; por outro, porque tornava a história mais interessante. Eu não gostava de me lembrar da semana que passara observando-o e imaginando seu itinerário diário, nem do dia em que esperara por ele até anoitecer, desequilibrada em meu sapato quebrado, sem que ele aparecesse. Mary Ann, por sua vez, me contava das compras que fizera em Paris para o enxoval e do noivo Robert, que lhe havia tirado a virgindade, com sua permissão, em uma encantadora clareira repleta do canto de pássaros e do perfume de madressilvas. Tinha sido uma semana antes de ela partir com a mãe para a Europa, quando Robert fora até a casa de campo da família despedir-se da noiva. — Ele não tirou sua virgindade! — quase gritei, e apenas no último segundo lembrei-me de manter a voz baixa para proteger a privacidade de Mary Ann. — Foi um presente que você deu a ele. Após um instante de reflexão, acrescentei que, em meu entendimento, quando

uma pessoa dá um presente deve receber em troca outro de valor igual ou superior, mas Mary Ann estava apavorada com a ideia de uma possível gravidez e de também não conseguir regularizar a situação de pecado diante dos olhos de Deus caso morresse no mar, embora achasse que talvez até merecesse morrer. Quando ela pediu minha opinião, fiquei surpresa ao perceber seu desejo ardente de conhecer os limites exatos entre o que era pecado e o que não era, como se houvesse uma membrana impermeável que se pudesse cruzar mas que através da qual a pecaminosidade não conseguisse passar. Ela confessou que sua preocupação era mais de natureza prática do que espiritual, o que, em sua cabeça, aumentava em muitas vezes o pecado original e a deixava em uma espiral de remorso. — Eu não deveria estar preocupada apenas por ter atentado contra as leis de Deus? — perguntou-me ela. — No entanto, acho que minha maior preocupação é comigo mesma, pois não sei o que acontecerá se eu estiver grávida na cerimônia de casamento e o vestido não couber em mim, nem o que farei se Robert me abandonar e eu tiver um filho ilegítimo. Quanto mais a escutava, mais convencida eu ficava de que Mary Ann não sabia muito bem como se engravida, muito menos como poderia verificar se estava de fato grávida ou não, mas tentei tranquilizá-la: — O vestido de casamento está perdido, não é mesmo? Então esta já é uma questão encerrada. Quando casar com Robert, você precisará comprar um novo. Como alternativa, vocês podem fazer o que Henry e eu fizemos... Uma simples formalidade legal, sem exagero, sem afetação. Não que eu não fosse gostar de um vestido bonito e de uma grande cerimônia, mas às vezes a conveniência deve prevalecer sobre o romantismo. Quanto à sua segunda preocupação, há pessoas que podem ajudá-la, se for preciso. O problema deve ser enfrentado quando surgir, não antes. Não há nada mais a ser feito. Mary Ann, no entanto, não largaria sua cruz com tanta facilidade. Ela chegou a sugerir que aquela terrível experiência no barco salva-vidas era o modo que Deus encontrara para puni-la. — Isso não faz o menor sentido! Por que Deus puniria todos nós por algo que você fez? Pelo modo como me olhou, ela devia acreditar que eu seria capaz de responder a essa pergunta melhor do que ela. Tentei explicar-lhe que minha opinião era de que ela não cometera pecado algum, que eu mesma tivera relações com Henry antes de nossa ida ao magistrado e que a ideia de transgressão apimentara a aventura. Minhas palavras, no entanto, não eram páreo para quase dois milênios de doutrina cristã. A lua banhava o barco com uma luz prateada quando Mary Ann aproximou-se discretamente do pequeno diácono e confessou-lhe ao pé do ouvido toda a sua história. Vi quando o diácono tomou entre as mãos o rosto estreito de Mary Ann e com o polegar fez o sinal da

— Pensei que o Empress Alexandra tivesse si<strong>do</strong> vendi<strong>do</strong> a um proprietário<br />

capaz de conseguir algum lucro! O senhor acredita que o Sr. Hardie possa ter<br />

inventa<strong>do</strong> essa história de um novo proprietário?<br />

O Sr. Hardie, que, é claro, o escutara, jogou contra o Sr. Preston o balde que<br />

carregava e explodiu:<br />

— Eu não continuaria a trabalhar para aquele bisbilhoteiro pão-duro que foi<br />

<strong>do</strong>no <strong>do</strong> navio. Estava farto de dar meu sangue para aquele canalha!<br />

Se isso não bastou para convencer o Sr. Preston, ele não ousou revelar.<br />

Não posso ser exageradamente crítica ao relatar como os outros usavam<br />

histórias para passar o tempo, verdadeiras ou não, pois às vezes Mary Ann e eu<br />

fazíamos o mesmo. Eu lhe contava sobre a primeira vez que vira Henry,<br />

caprichan<strong>do</strong> nos detalhes por horas e horas: como ele estava vesti<strong>do</strong>, como<br />

chegara ao estabelecimento onde trabalhava em um automóvel elegante, <strong>do</strong> qual<br />

descera lentamente, revelan<strong>do</strong>-se como um retrato que toma forma em uma<br />

tela. Eu poderia fazer essa parte da história durar dez minutos, ou até mais se<br />

Mary Ann estivesse disposta a pedir detalhes que eu deixara de fora, e ela em<br />

geral estava. Eu tinha perdi<strong>do</strong> o salto <strong>do</strong> sapato, por isso claudicava ao longo da<br />

calçada; Henry galantemente inspecionara a sarjeta de cima a baixo, nos <strong>do</strong>is<br />

la<strong>do</strong>s da rua. Como não encontrou o salto perdi<strong>do</strong>, levou-me para casa em seu<br />

carro.<br />

— Como a Cinderela! — exclamou Mary Ann.<br />

Foi uma das poucas vezes que ri no barco salva-vidas, pois a comparação era<br />

mais apropriada <strong>do</strong> que ela imaginava. Não contei a ela que aquele dia na<br />

calçada, ao pé da escadaria de mármore <strong>do</strong> banco onde Henry trabalhava, não<br />

foi a primeira vez que reparei nele, assim como o baile não foi a primeira vez<br />

que a Cinderela e suas meias-irmãs ouviram falar <strong>do</strong> charmoso príncipe, mas eu<br />

gostava de sonhar que tu<strong>do</strong> se passara assim. Por um la<strong>do</strong>, porque tinha si<strong>do</strong> a<br />

primeira vez que Henry pousara seus olhos azuis em mim; por outro, porque<br />

tornava a história mais interessante. Eu não gostava de me lembrar da semana<br />

que passara observan<strong>do</strong>-o e imaginan<strong>do</strong> seu itinerário diário, nem <strong>do</strong> dia em que<br />

esperara por ele até anoitecer, desequilibrada em meu sapato quebra<strong>do</strong>, sem que<br />

ele aparecesse.<br />

Mary Ann, por sua vez, me contava das compras que fizera em Paris para o<br />

enxoval e <strong>do</strong> noivo Robert, que lhe havia tira<strong>do</strong> a virgindade, com sua permissão,<br />

em uma encanta<strong>do</strong>ra clareira repleta <strong>do</strong> canto de pássaros e <strong>do</strong> perfume de<br />

madressilvas. Tinha si<strong>do</strong> uma semana antes de ela partir com a mãe para a<br />

Europa, quan<strong>do</strong> Robert fora até a casa de campo da família despedir-se da noiva.<br />

— Ele não tirou sua virgindade! — quase gritei, e apenas no último segun<strong>do</strong><br />

lembrei-me de manter a voz baixa para proteger a privacidade de Mary Ann. —<br />

Foi um presente que você deu a ele.<br />

Após um instante de reflexão, acrescentei que, em meu entendimento, quan<strong>do</strong>

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