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NOITE<br />
Era níti<strong>do</strong> o bem que um pouco de comida no estômago fazia para nosso esta<strong>do</strong><br />
de espírito. Enquanto nos apertávamos uns contra os outros para combater a<br />
friagem noturna, a Sra. Cook se lançava em mais uma de suas histórias<br />
recheadas de fofocas e suposições, citan<strong>do</strong> detalhes pessoais sobre a família real<br />
que simplesmente não poderiam ter chega<strong>do</strong> a seu conhecimento. Ainda assim,<br />
ela nos distraía, e eu me pegava atenta a cada uma de suas palavras, como todas<br />
as outras mulheres perto de mim. Quan<strong>do</strong> seu estoque de comentários maliciosos<br />
sobre o assunto se esgotava, era a vez de Mary Ann nos falar das pessoas de seu<br />
círculo social, mas as histórias careciam de coesão e eram tão cheias de suspiros<br />
e exclamações quanto de palavras.<br />
Havia outro tipo de história que proliferava no barco, em especial à noite,<br />
quan<strong>do</strong> buscávamos passar o tempo como fosse possível. Eram histórias secretas,<br />
histórias contadas com sussurros, fiapos de histórias talvez baseadas em uma<br />
simples impressão, em um fragmento de diálogo ou em um brilho diferente no<br />
olho de alguém. Isabelle sabia como ninguém diagnosticar expressões: “Viu o<br />
olhar que o Sr. Hardie me dirigiu agora mesmo?”, ela perguntava, por exemplo,<br />
com um estremecimento, para depois acrescentar: “Só uma pessoa sem o<br />
mínimo de civilidade olharia assim para alguém.” Um único olhar ensejava<br />
biografias especulativas completas, e foi esse tipo de especulação que tanto<br />
interessou aos promotores e que eles to<strong>mar</strong>am como fato. Isabelle creditava a<br />
Hannah e à Sra. Grant a invenção de um código de comunicação que não incluía<br />
palavras, apenas movimentos de cabeça e olhares, os quais Isabelle costumava<br />
decifrar para quem estivesse por perto. Um dia ela me contou que quan<strong>do</strong><br />
Hannah fitara o Sr. Hoffman com uma expressão mais sombria que o normal<br />
tratava-se, na verdade, de bruxaria, de uma maldição silenciosa; e quan<strong>do</strong> mais<br />
tarde Hoffman quase caiu <strong>do</strong> barco ao tropeçar, ela me dirigiu um olhar cheio de<br />
significa<strong>do</strong> e articulou com os lábios sem emitir som: “Está ven<strong>do</strong>?”<br />
Às vezes alguém se apropriava de uma história que lhe fora contada em<br />
segre<strong>do</strong>, retransmitin<strong>do</strong>-a como se fosse sua. O resulta<strong>do</strong>, claro, era que as<br />
histórias acabavam modificadas. O que eu contara a Mary Ann sobre como<br />
planejava conquistar a mãe de Henry voltou depois para mim na versão de que<br />
minha sogra se recusara a me receber. Não há nada que se possa fazer para<br />
combater rumores falsos sem que acabemos pioran<strong>do</strong> a situação, por isso não<br />
tentei esclarecer o caso, mas desde então decidi guardar para mim to<strong>do</strong> e<br />
qualquer assunto pessoal.<br />
Ouvi por acaso a Sra. Cook contar à Sra. McCain que testemunhara uma<br />
discussão entre o Sr. Hardie e o comandante Sutter no dia em que partimos. Ela<br />
falou que na ocasião não sabia quem era o Sr. Hardie, e que só mais tarde fez a