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quisesse, <strong>do</strong> que talvez fizesse se nos comportássemos e parássemos de<br />
questionar seus planos. Mas sua posterior incapacidade de nos conseguir alimento<br />
não foi o único motivo para a raiva que crescia sub-repticiamente entre os<br />
passageiros. Ele continuava a prever uma mudança no tempo. “Quan<strong>do</strong> isso<br />
acontecer”, dizia, “vocês mesmos verão que tem gente demais neste barco”. <strong>No</strong><br />
entanto, não queríamos dar-lhe ouvi<strong>do</strong>s. Ficávamos irrita<strong>do</strong>s porque não<br />
sabíamos o que fazer a respeito, ainda que suas palavras exprimissem a verdade.<br />
Deveríamos simplesmente nos deixar morrer, como a Sra. Fleming? Mas foi só<br />
aos poucos que esses sentimentos de raiva e dúvida se acumularam em nós. <strong>No</strong><br />
final <strong>do</strong> quinto dia ainda nos sentíamos gratos a Hardie pelo milagre <strong>do</strong>s peixes.<br />
O diácono, que gostava de contar histórias bíblicas, aproveitou essa ocasião<br />
para nos falar da multiplicação <strong>do</strong>s peixes e pães. Bastava ele começar uma<br />
parábola ou um salmo para Mary Ann e Isabelle pararem o que estivessem<br />
fazen<strong>do</strong>, e Any a Robeson deixava o pequeno Charlie sentar em seu colo com os<br />
ouvi<strong>do</strong>s descobertos sempre que o diácono abria a boca. Devo admitir que eu<br />
também às vezes me deixava embalar pela familiaridade das histórias, embora<br />
algumas fossem bem sombrias. As pessoas gostam de repetições. Gostam de<br />
saber o fim de uma história, mesmo quan<strong>do</strong> no fim to<strong>do</strong>s morrem no dilúvio —<br />
to<strong>do</strong>s, menos <strong>No</strong>é. O diácono contava uma história conhecida de to<strong>do</strong>s nós,<br />
depois estabelecia paralelos com a situação no barco, e certamente a arca de<br />
<strong>No</strong>é era bem apropriada. Mas ele era criativo, sabia adaptar à nossa condição<br />
também as provações de Moisés no deserto e a divisão <strong>do</strong> <strong>mar</strong> Vermelho.<br />
Ensinou-nos o Cântico <strong>do</strong> Mar — que celebrava a salvação <strong>do</strong>s escolhi<strong>do</strong>s por<br />
Deus e o afogamento <strong>do</strong> inimigo, engoli<strong>do</strong> como uma pedra — para que<br />
pudéssemos recitá-lo quan<strong>do</strong> afinal fôssemos resgata<strong>do</strong>s.<br />
O Sr. Sinclair contou-nos que a história da arca de <strong>No</strong>é era uma adaptação de<br />
lendas pagãs antigas para a tradição cristã.<br />
— Textos babilônicos sobre inundações incluem não apenas o dilúvio, mas<br />
outros elementos familiares, como o corvo e a pomba, por exemplo. Isso não<br />
pode ser coincidência — afirmou ele.<br />
O diácono, no entanto, apressou-se a rejeitar a ideia como heresia. Mary Ann<br />
parecia preocupada, não tanto pela possível heresia quanto por não saber de que<br />
la<strong>do</strong> ficar no debate. Eu apoiava o Sr. Sinclair, falei para ela. Por sorte o Sr.<br />
Sinclair era não apenas erudito mas também concilia<strong>do</strong>r: conseguiu abrandar os<br />
sentimentos de to<strong>do</strong>s com citações de Boccaccio, que supostamente tratou da<br />
tendência humana a acreditar no mal e não no bem, e da impossibilidade de<br />
haver poesia sem mitos.<br />
Com o passar <strong>do</strong>s dias, comecei a me perguntar se Hardie de fato apanhara<br />
algum peixe ou se aquilo fora uma alucinação coletiva. O presente parecia fixo e<br />
imóvel, mas o passa<strong>do</strong>, comprimi<strong>do</strong> e distante, tão sujeito a interpretações quanto<br />
uma passagem de um denso texto teológico. A ideia de termos nasci<strong>do</strong> no barco