No coracao do mar - Charlotte Rogan
Não seria terrível considerar a possibilidade de não se encontrar nessa situação? Eu tinha aprendido que dinheiro não é um bom assunto para conversas, por isso respondi com convicção que Henry se ocupava das questões financeiras de nossa família e que eu raramente pensava nisso, se é que alguma vez pensei. As histórias da Sra. Cook eram de natureza íntima e com frequência contadas com murmúrios conspiratórios. Os ouvintes precisavam estar sentados perto dela para conseguir acompanhá-la, e mesmo assim muitas vezes tínhamos que nos inclinar em sua direção. O Sr. Sinclair, por outro lado, tinha um ar erudito e nos contava histórias sobre coisas que ele lera. Com sua voz ressonante, às vezes reivindicava o barco inteiro como plateia, em especial à noite, quando os sons parecem alcançar distância maior do que à luz do dia. Não sei como surgiu o assunto da memória, mas o Sr. Sinclair nos explicou que já no século V a.C. Aristóteles escrevia a respeito sob um ângulo científico. — Aristóteles determinou que a memória tem relação apenas com o passado, não com o presente ou o futuro — começou ele, mas logo o Sr. Hoffman interrompeu-o em tom sarcástico: — Isso eu mesmo poderia ter dito! Pedi ao Sr. Hoffman que se calasse, e o Sr. Sinclair prosseguiu: — Aristóteles faz distinção entre “memória” e “reminiscência”. Até pessoas de raciocínio lento podem ter boa memória, segundo ele, mas, no que diz respeito às reminiscências, as pessoas inteligentes se destacam. Não me lembro das palavras exatas do que ele falou depois, mas a ideia geral, pelo que entendi, era que não poderia haver memória do presente, pois este envolve apenas a percepção de nossas sensações, e que a memória é a impressão recuperável de um fato passado. A reminiscência, no entanto, é a recuperação em si, a busca ou processo mnemônico pelo qual se restaura uma lembrança que não está instantaneamente acessível. Penso nisso hoje, já que escrever este relato exige que eu me recorde de muitas coisas. Lembro-me às vezes de um fato e só mais tarde me vem à mente outro detalhe, que por sua vez leva a mais outro, e assim sucessivamente, em uma longa cadeia. Em outra ocasião o Sr. Sinclair nos falou sobre Sigmund Freud, que estava revolucionando a ciência da mente e que escrevera não tanto sobre lembrança quanto sobre esquecimento. Para ele, o esquecimento tem sempre relação com as pulsões da vida, sendo as principais a da reprodução e a da conservação da vida. Eu sem dúvida preferia ouvir o Sr. Sinclair, embora a maioria das mulheres preferisse as histórias da Sra. Cook. A noite estava sem lua e o ar se tornava cada vez mais úmido e opressivo. Dentro de mim, as boas sensações da noite pouco a pouco se dissipavam, embora nada de especialmente ruim tivesse acontecido além do fato de o Sr. Hardie ter comentado com o Sr. Hoffman que choveria antes do amanhecer. Risos sarcásticos, alguns nervosos, se propagaram pelo barco salva-vidas diante da
perspectiva dos novos inconvenientes que a chuva com certeza traria. Depois disso as conversas cessaram, e fomos deixados sozinhos com nossos pensamentos e a sonoridade musical da água batendo contra o fundo do barco. Parece estranho, mas todos dormiram naquelas primeiras noites, ou valendo-se dos turnos no dormitório ou apoiados uns contra os outros, ou com a cabeça sobre os joelhos de um vizinho prestativo. Justificávamos nosso sono com a alegação de que estávamos exaustos e chocados, sem suspeitar aonde ainda chegariam nosso choque e nossa exaustão. Continuávamos otimistas e ensaiávamos mentalmente as palavras com as quais apresentaríamos nossas experiências quando chegássemos em casa. Por volta da meia-noite, fui acordada por gritos. Um dos homens afirmava ter avistado luzes a distância. Ninguém, no entanto, conseguia confirmar a informação, e por mais que eu me esforçasse para perscrutar a escuridão, nada vi. Adormeci de novo. Quando abri os olhos, pouco antes do amanhecer, levantei-me como se para ir ao banheiro que Henry e eu utilizávamos a bordo do navio. Então lembrei-me de onde estava e deslizei um dos baldes para baixo da saia para urinar, ajeitando a roupa com um cuidado obstinado, pois queria manter a maior discrição possível. Eu tinha um leve ressentimento em relação aos homens, que podiam desabotoar a calça sem preocupação alguma e lançar aqueles jatos fortes por cima da amurada do barco. Com o tempo, no entanto, isso deixou de ser um grande problema, pois ingeríamos tão pouca água que a necessidade de nos aliviar passou a ser cada vez menos frequente. Mesmo assim, nossos ressentimentos não desapareceram. Apenas encontraram novas diferenças das quais se alimentar.
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Não seria terrível considerar a possibilidade de não se encontrar nessa situação?<br />
Eu tinha aprendi<strong>do</strong> que dinheiro não é um bom assunto para conversas, por<br />
isso respondi com convicção que Henry se ocupava das questões financeiras de<br />
nossa família e que eu raramente pensava nisso, se é que alguma vez pensei.<br />
As histórias da Sra. Cook eram de natureza íntima e com frequência contadas<br />
com murmúrios conspiratórios. Os ouvintes precisavam estar senta<strong>do</strong>s perto dela<br />
para conseguir acompanhá-la, e mesmo assim muitas vezes tínhamos que nos<br />
inclinar em sua direção. O Sr. Sinclair, por outro la<strong>do</strong>, tinha um ar erudito e nos<br />
contava histórias sobre coisas que ele lera. Com sua voz ressonante, às vezes<br />
reivindicava o barco inteiro como plateia, em especial à noite, quan<strong>do</strong> os sons<br />
parecem alcançar distância maior <strong>do</strong> que à luz <strong>do</strong> dia. Não sei como surgiu o<br />
assunto da memória, mas o Sr. Sinclair nos explicou que já no século V a.C.<br />
Aristóteles escrevia a respeito sob um ângulo científico.<br />
— Aristóteles determinou que a memória tem relação apenas com o passa<strong>do</strong>,<br />
não com o presente ou o futuro — começou ele, mas logo o Sr. Hoffman<br />
interrompeu-o em tom sarcástico:<br />
— Isso eu mesmo poderia ter dito!<br />
Pedi ao Sr. Hoffman que se calasse, e o Sr. Sinclair prosseguiu:<br />
— Aristóteles faz distinção entre “memória” e “reminiscência”. Até pessoas<br />
de raciocínio lento podem ter boa memória, segun<strong>do</strong> ele, mas, no que diz respeito<br />
às reminiscências, as pessoas inteligentes se destacam.<br />
Não me lembro das palavras exatas <strong>do</strong> que ele falou depois, mas a ideia geral,<br />
pelo que entendi, era que não poderia haver memória <strong>do</strong> presente, pois este<br />
envolve apenas a percepção de nossas sensações, e que a memória é a<br />
impressão recuperável de um fato passa<strong>do</strong>. A reminiscência, no entanto, é a<br />
recuperação em si, a busca ou processo mnemônico pelo qual se restaura uma<br />
lembrança que não está instantaneamente acessível. Penso nisso hoje, já que<br />
escrever este relato exige que eu me recorde de muitas coisas. Lembro-me às<br />
vezes de um fato e só mais tarde me vem à mente outro detalhe, que por sua vez<br />
leva a mais outro, e assim sucessivamente, em uma longa cadeia.<br />
Em outra ocasião o Sr. Sinclair nos falou sobre Sigmund Freud, que estava<br />
revolucionan<strong>do</strong> a ciência da mente e que escrevera não tanto sobre lembrança<br />
quanto sobre esquecimento. Para ele, o esquecimento tem sempre relação com<br />
as pulsões da vida, sen<strong>do</strong> as principais a da reprodução e a da conservação da<br />
vida. Eu sem dúvida preferia ouvir o Sr. Sinclair, embora a maioria das mulheres<br />
preferisse as histórias da Sra. Cook.<br />
A noite estava sem lua e o ar se tornava cada vez mais úmi<strong>do</strong> e opressivo.<br />
Dentro de mim, as boas sensações da noite pouco a pouco se dissipavam, embora<br />
nada de especialmente ruim tivesse aconteci<strong>do</strong> além <strong>do</strong> fato de o Sr. Hardie ter<br />
comenta<strong>do</strong> com o Sr. Hoffman que choveria antes <strong>do</strong> amanhecer. Risos<br />
sarcásticos, alguns nervosos, se propagaram pelo barco salva-vidas diante da