No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

NOITE Houve mais cantoria ao cair da noite. Hannah, que parecia ter feito amizade rápida com a Sra. Grant ou que talvez já a conhecesse, olhava para mim de modo muito estranho; em um reflexo, levei a mão ao cabelo e comecei a me preocupar com minha aparência. Hannah tinha olhos acinzentados e cabelo comprido e encaracolado, seus cachos se entrelaçando e formando grossas mechas quando balançavam ao vento. Ela colocara sobre os ombros um xale muito fino, que se agitava ao sabor da brisa do mesmo modo que as asas de um pássaro se agitariam caso o pássaro fosse na verdade uma deusa disfarçada. Quando chegou a vez de Hannah tirar a água do fundo do barco, ela insistiu em trocar de lugar com a pessoa a meu lado, depois passou o braço ao redor de meus ombros e sussurrou em meu ouvido que mesmo naquelas circunstâncias me achava muito bonita. Senti-me mais perto da felicidade do que nunca — de uma felicidade profunda, quero dizer. Contente por estar viva, mas também contente por ser o objeto da atenção integral de outra pessoa. Eu sentia sua respiração cálida em minha face, e, quando ela afastou-se de mim, nossos olhos se encontraram por um prolongado momento. Estendi o braço e puxei uma mecha de cabelo que se colara a seus lábios, pousando-a de volta sobre seus ombros. Minha intenção era sorrir para expressar-lhe um pouco do que eu sentia, mas creio que não consegui. Mais cedo naquele dia, eu me sentira petrificada, ao mesmo tempo pesada e leve, quando o Sr. Hardie olhara para mim com ar não só de quem parecia me enxergar por dentro, como se eu não tivesse mais substância do que o ar, mas também como se compreendesse minha essência. Fui então tomada pelo tipo de terror que a Virgem Maria deve ter sentido quando o anjo Gabriel desceu do céu. Hannah me intimidava também, embora bem menos que o Sr. Hardie, e fiquei feliz ao pensar que poderíamos vir a ser amigas. Foi então que a Sra. Cook, com seu jeito matronal, quebrou o silêncio: — Não era Penelope Cumberland no outro barco salva-vidas? Ninguém se manifestou, por isso, depois de um instante, respondi que eu também a reconhecera. — Lembra que ela e o marido davam sempre um jeito de conseguir dois lugares à mesa do comandante? Mas que nariz empinado, ah sim! A Sra. Cumberland julgava o restante dos passageiros não merecedor de sua atenção, mas o que pessoas como ela não entendem é que atenção é uma via de mão dupla. Um dia ouvi o casal brigar, e tive a impressão de que a fortuna do Sr. Cumberland não era tão sólida como os dois queriam nos fazer acreditar. Ela disse: “Não podemos sentar com ele, não tenho vestido adequado!” Ao que ele respondeu: “Ninguém vai reparar na sua roupa.” Irritada, ela explodiu: “Como se você tivesse alguma noção de quem repara no quê!”

Poucos minutos depois, a Sra. Cook acrescentou no meu ouvido, baixinho: — Claro, ela bancava a simpática comigo quando nos encontrávamos, mas sei o que pensava. Pensava que eu não tinha lugar à mesa do comandante. Que dama de companhia é uma criada qualquer, e que se não fosse pela Sra. McCain eu jamais estaria na primeira classe. Que a Sra. McCain precisava de companhia apenas porque não era casada e que uma mulher sem marido ocupa um nível social inferior ao de uma dama casada como ela. E o jeito que o comandante olhava para ela! Havia alguma coisa suspeita acontecendo, pode escrever o que eu digo. A mim parecia injusto que toda a hostilidade da Sra. Cook para com os Cumberland caísse sobre os ombros brancos como leite de Penelope Cumberland e que, sabe-se lá por quê, o Sr. Cumberland saísse impune. Em minha opinião, Penelope era encantadora e seu marido, um chato, mas eu também sabia que as esposas eram alvos mais fáceis. Tentei ressaltar que as pessoas sentam-se à mesa do comandante apenas se forem convidadas e que, a meu entender, esses convites se baseavam na posição social, o que contradizia tanto a ideia de que os Cumberland atravessavam um período difícil quanto a de que havia algo furtivo em seus atos. — É exatamente aí que quero chegar! — exclamou a Sra. Cook, ou por ser impermeável a qualquer tipo de raciocínio, ou por ser incapaz de renunciar a sua animosidade. — Eles não tinham posição social, tampouco dinheiro! Um dia escutei uma conversa dele com o comandante Sutter. Não posso afirmar que ouvi exatamente tudo que foi dito, mas o ponto principal estava claro, e depois disso o casal não perdeu uma refeição sequer, sempre chegando à sala de jantar antes dos outros e exigindo que fosse acomodado primeiro. Você se sentava à mesa do comandante, não é mesmo, Grace? Alguma vez os Cumberland explicaram por que passaram a se sentar lá? — A mim não, e eu jamais teria perguntado. Minha experiência diz que podemos imaginar cinco razões para que um fato ocorra, e a verdade será sempre a sexta. Por acaso eu de fato sabia alguma coisa sobre os Cumberland, mas havia jurado manter segredo, e não via motivo para dar explicações a uma intrometida como a Sra. Cook. É evidente que tentar acabar com essas especulações seria como tentar deter o avanço de uma onda gigantesca, portanto deixei que ela insistisse livremente nas categorizações e generalizações. Considerava-se uma grande contadora de histórias, e as pessoas sentadas perto dela ouviam-na totalmente absortas. Quando faziam perguntas, ela inventava detalhes e formulava teorias para agradá-las. — As pessoas acostumadas a ter dinheiro ficam apavoradas com a ideia de que sua condição possa mudar algum dia — prosseguiu ela. — Você e o Sr. Winter desfrutavam de uma posição muito confortável, não é mesmo, Grace?

Poucos minutos depois, a Sra. Cook acrescentou no meu ouvi<strong>do</strong>, baixinho:<br />

— Claro, ela bancava a simpática comigo quan<strong>do</strong> nos encontrávamos, mas sei<br />

o que pensava. Pensava que eu não tinha lugar à mesa <strong>do</strong> comandante. Que<br />

dama de companhia é uma criada qualquer, e que se não fosse pela Sra. McCain<br />

eu jamais estaria na primeira classe. Que a Sra. McCain precisava de companhia<br />

apenas porque não era casada e que uma mulher sem <strong>mar</strong>i<strong>do</strong> ocupa um nível<br />

social inferior ao de uma dama casada como ela. E o jeito que o comandante<br />

olhava para ela! Havia alguma coisa suspeita acontecen<strong>do</strong>, pode escrever o que<br />

eu digo.<br />

A mim parecia injusto que toda a hostilidade da Sra. Cook para com os<br />

Cumberland caísse sobre os ombros brancos como leite de Penelope Cumberland<br />

e que, sabe-se lá por quê, o Sr. Cumberland saísse impune. Em minha opinião,<br />

Penelope era encanta<strong>do</strong>ra e seu <strong>mar</strong>i<strong>do</strong>, um chato, mas eu também sabia que as<br />

esposas eram alvos mais fáceis. Tentei ressaltar que as pessoas sentam-se à<br />

mesa <strong>do</strong> comandante apenas se forem convidadas e que, a meu entender, esses<br />

convites se baseavam na posição social, o que contradizia tanto a ideia de que os<br />

Cumberland atravessavam um perío<strong>do</strong> difícil quanto a de que havia algo furtivo<br />

em seus atos.<br />

— É exatamente aí que quero chegar! — exclamou a Sra. Cook, ou por ser<br />

impermeável a qualquer tipo de raciocínio, ou por ser incapaz de renunciar a sua<br />

animosidade. — Eles não tinham posição social, tampouco dinheiro! Um dia<br />

escutei uma conversa dele com o comandante Sutter. Não posso afir<strong>mar</strong> que<br />

ouvi exatamente tu<strong>do</strong> que foi dito, mas o ponto principal estava claro, e depois<br />

disso o casal não perdeu uma refeição sequer, sempre chegan<strong>do</strong> à sala de jantar<br />

antes <strong>do</strong>s outros e exigin<strong>do</strong> que fosse acomoda<strong>do</strong> primeiro. Você se sentava à<br />

mesa <strong>do</strong> comandante, não é mesmo, Grace? Alguma vez os Cumberland<br />

explicaram por que passaram a se sentar lá?<br />

— A mim não, e eu jamais teria pergunta<strong>do</strong>. Minha experiência diz que<br />

podemos imaginar cinco razões para que um fato ocorra, e a verdade será<br />

sempre a sexta.<br />

Por acaso eu de fato sabia alguma coisa sobre os Cumberland, mas havia<br />

jura<strong>do</strong> manter segre<strong>do</strong>, e não via motivo para dar explicações a uma intrometida<br />

como a Sra. Cook.<br />

É evidente que tentar acabar com essas especulações seria como tentar deter<br />

o avanço de uma onda gigantesca, portanto deixei que ela insistisse livremente<br />

nas categorizações e generalizações. Considerava-se uma grande conta<strong>do</strong>ra de<br />

histórias, e as pessoas sentadas perto dela ouviam-na totalmente absortas. Quan<strong>do</strong><br />

faziam perguntas, ela inventava detalhes e formulava teorias para agradá-las.<br />

— As pessoas acostumadas a ter dinheiro ficam apavoradas com a ideia de<br />

que sua condição possa mudar algum dia — prosseguiu ela. — Você e o Sr.<br />

Winter desfrutavam de uma posição muito confortável, não é mesmo, Grace?

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