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No coracao do mar - Charlotte Rogan

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NOITE<br />

Houve mais cantoria ao cair da noite. Hannah, que parecia ter feito amizade<br />

rápida com a Sra. Grant ou que talvez já a conhecesse, olhava para mim de<br />

mo<strong>do</strong> muito estranho; em um reflexo, levei a mão ao cabelo e comecei a me<br />

preocupar com minha aparência. Hannah tinha olhos acinzenta<strong>do</strong>s e cabelo<br />

compri<strong>do</strong> e encaracola<strong>do</strong>, seus cachos se entrelaçan<strong>do</strong> e forman<strong>do</strong> grossas<br />

mechas quan<strong>do</strong> balançavam ao vento. Ela colocara sobre os ombros um xale<br />

muito fino, que se agitava ao sabor da brisa <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que as asas de um<br />

pássaro se agitariam caso o pássaro fosse na verdade uma deusa disfarçada.<br />

Quan<strong>do</strong> chegou a vez de Hannah tirar a água <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> barco, ela insistiu em<br />

trocar de lugar com a pessoa a meu la<strong>do</strong>, depois passou o braço ao re<strong>do</strong>r de<br />

meus ombros e sussurrou em meu ouvi<strong>do</strong> que mesmo naquelas circunstâncias<br />

me achava muito bonita. Senti-me mais perto da felicidade <strong>do</strong> que nunca — de<br />

uma felicidade profunda, quero dizer. Contente por estar viva, mas também<br />

contente por ser o objeto da atenção integral de outra pessoa. Eu sentia sua<br />

respiração cálida em minha face, e, quan<strong>do</strong> ela afastou-se de mim, nossos olhos<br />

se encontraram por um prolonga<strong>do</strong> momento. Estendi o braço e puxei uma<br />

mecha de cabelo que se colara a seus lábios, pousan<strong>do</strong>-a de volta sobre seus<br />

ombros. Minha intenção era sorrir para expressar-lhe um pouco <strong>do</strong> que eu sentia,<br />

mas creio que não consegui. Mais ce<strong>do</strong> naquele dia, eu me sentira petrificada, ao<br />

mesmo tempo pesada e leve, quan<strong>do</strong> o Sr. Hardie olhara para mim com ar não<br />

só de quem parecia me enxergar por dentro, como se eu não tivesse mais<br />

substância <strong>do</strong> que o ar, mas também como se compreendesse minha essência.<br />

Fui então tomada pelo tipo de terror que a Virgem Maria deve ter senti<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><br />

o anjo Gabriel desceu <strong>do</strong> céu. Hannah me intimidava também, embora bem<br />

menos que o Sr. Hardie, e fiquei feliz ao pensar que poderíamos vir a ser amigas.<br />

Foi então que a Sra. Cook, com seu jeito matronal, quebrou o silêncio:<br />

— Não era Penelope Cumberland no outro barco salva-vidas?<br />

Ninguém se manifestou, por isso, depois de um instante, respondi que eu<br />

também a reconhecera.<br />

— Lembra que ela e o <strong>mar</strong>i<strong>do</strong> davam sempre um jeito de conseguir <strong>do</strong>is<br />

lugares à mesa <strong>do</strong> comandante? Mas que nariz empina<strong>do</strong>, ah sim! A Sra.<br />

Cumberland julgava o restante <strong>do</strong>s passageiros não merece<strong>do</strong>r de sua atenção,<br />

mas o que pessoas como ela não entendem é que atenção é uma via de mão<br />

dupla. Um dia ouvi o casal brigar, e tive a impressão de que a fortuna <strong>do</strong> Sr.<br />

Cumberland não era tão sólida como os <strong>do</strong>is queriam nos fazer acreditar. Ela<br />

disse: “Não podemos sentar com ele, não tenho vesti<strong>do</strong> adequa<strong>do</strong>!” Ao que ele<br />

respondeu: “Ninguém vai reparar na sua roupa.” Irritada, ela explodiu: “Como se<br />

você tivesse alguma noção de quem repara no quê!”

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