No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

discussões — ouvi o Sr. Nilsson dizer ao coronel Marsh. — Elaborar um plano não significa que algum dia iremos colocá-lo em prática. O Sr. Hardie não era o tipo de pessoa que aceitava ordens de qualquer um, e eu tinha a sensação de que, de algum modo, éramos manipulados. Minha mente, no entanto, estava entorpecida pelo medo, e talvez seja apenas ao me lembrar disso — agora que enfrento um tipo diferente de autoridade — que penso na possibilidade de ter havido redes de influência e mentiras no barco salva-vidas desde o primeiro momento. Estranhamente, minha lucidez aumentava com o passar do tempo. Nas primeiras horas, o pavor me impedia de observar a situação com um olhar crítico: sentia calor demais ou frio demais, fome demais ou sede demais, tendência excessiva a imaginar coisas e a perguntar à jovem sentada a meu lado: “O que é aquilo lá adiante, Mary Ann? Às duas horas! Não vê alguma coisa brilhando ao sol?” Ou: “O que é aquela forma escura, Mary Ann? Não acha que pode ser um navio?” No anoitecer do segundo dia, enquanto o enorme sol laranja mergulhava no horizonte como uma bola pesada e as pessoas pareciam emergir de seu torpor o suficiente para queixar-se de músculos doloridos ou pés molhados, o Sr. Hoffman foi categórico: — Se não houver voluntários, precisaremos decidir por sorteio. A essa altura, Any a Robeson, mulher de poucas palavras mas que Mary Ann descrevera como “passageira da terceira classe”, fuzilou o Sr. Hoffman com um olhar inflexível e abraçou o filho Charles, aninhando-o sob seu casaco. Não queria que ele ouvisse o que diziam. “Atenção ao que fala, há uma criança aqui”, protestava invariavelmente cada vez que algum dos homens mencionava a morte ou usava palavras rudes. Não sei por que ela se inquietava com aquilo — talvez assim não precisasse se preocupar com o oceano sem fim, que mudava do azul para o cinza quando uma nuvem encobria o sol e do cinza para o carmim quando o sol se inflamava a caminho do horizonte. Greta Witkoppen, uma jovem alemã, debulhou-se em lágrimas, e no início pensei que chorasse porque logo seria noite ou porque havia perdido uma pessoa querida, mas depois percebi que fora a conversa dos homens que a tinha assustado. A Sra. Grant inclinou-se na direção de Greta e bateu de leve em seu ombro. — Não se preocupe — confortou-a. — Você sabe como são os homens. Greta então demonstrou um pouco de vivacidade ao reclamar bem alto: — Vocês estão assustando as pessoas. Não deviam falar essas coisas. Mais tarde, comentou diretamente com o Sr. Hardie: — Eu diria que o senhor deveria se preocupar mais com a opinião do mundo. — Do mundo! — zombou Hardie. — O mundo nem sabe que eu existo. — Algum dia saberá — ousou Greta. — E algum dia o julgará. — Deixe isso para os historiadores — gritou Hoffman. Hardie riu e também gritou, no momento em que o vento começou a soprar:

— Ainda não fazemos parte da história, por Deus! Ainda não! Greta foi, imagino, a primeira discípula da Sra. Grant. — Se eles não se preocupam com o mundo, deviam pelo menos se preocupar com Deus — ouvi Greta dizer-lhe. — Deus é onisciente. Deus tudo vê. — Os homens são assim. A maioria deles pensa que é Deus — observou a Sra. Grant. Pouco depois eu a vi tocar o braço de Greta e sussurrar: — Deixe o Sr. Hardie comigo. Três italianas e a governanta Maria eram as únicas que não falavam nenhuma palavra em inglês. As italianas, todas em capotes pretos idênticos e agarradas umas às outras na parte dianteira do barco, alternavam momentos de completo silêncio com turbilhões de palavras rápidas e incompreensíveis, como se apenas elas pudessem perceber algo prestes a explodir. Maria partira para os Estados Unidos com o objetivo de trabalhar para uma família em Beacon Hill. Estava quase sempre histérica, mas eu não conseguia apiedar-me dela; até as mais piedosas dentre as mulheres podiam ver que sua total falta de autocontrole representava uma ameaça para todos nós. No início tentara acalmá-la com as poucas palavras em espanhol que eu conhecia, mas a cada tentativa de estabelecer comunicação ela agarrava minhas roupas e se levantava, agitando os braços. Por isso, quando nos cansamos de puxá-la inutilmente de volta para seu lugar, decidimos ignorá-la o máximo possível. Confesso que me ocorreu como teria sido fácil levantar-me e, supostamente ao tentar contê-la, jogar-me contra ela e empurrá-la para fora do barco. Ela estava sentada bem ao lado da amurada, e eu não tinha dúvida de que ficaríamos muito melhor sem ela e sem sua histeria. Apresso-me, no entanto, a esclarecer que não fiz nada disso; menciono a ideia apenas para ilustrar como os limites da reflexão humana se expandem depressa em situações como a nossa. Uma parte de mim compreendia a linha de pensamento que levara o Sr. Hoffman a apresentar sua sugestão para reduzir o peso do barco, e eu tinha consciência de que, se feita, uma proposta desse tipo dificilmente seria esquecida. O que fiz, então, foi trocar de lugar com Maria para, no caso de ela perder o equilíbrio, cair em cima de Mary Ann ou de mim, não no oceano. Foi assim que passei a fazer parte do grupo que ocupava os bancos ao longo da amurada e recebia os respingos dos remos enquanto os remadores lutavam contra a corrente na tentativa de manter o barco na posição devida. Depois de muito refletir, estendi a mão para tocar a água. Estava gelada, e tive a sensação de que me atraía sedutoramente pela ponta dos dedos, embora esse efeito na verdade não se devesse a nenhuma propriedade da água, sendo um produto do movimento de nosso pequeno barco e talvez também, em parte, obra de minha imaginação.

— Ainda não fazemos parte da história, por Deus! Ainda não!<br />

Greta foi, imagino, a primeira discípula da Sra. Grant.<br />

— Se eles não se preocupam com o mun<strong>do</strong>, deviam pelo menos se preocupar<br />

com Deus — ouvi Greta dizer-lhe. — Deus é onisciente. Deus tu<strong>do</strong> vê.<br />

— Os homens são assim. A maioria deles pensa que é Deus — observou a Sra.<br />

Grant. Pouco depois eu a vi tocar o braço de Greta e sussurrar: — Deixe o Sr.<br />

Hardie comigo.<br />

Três italianas e a governanta Maria eram as únicas que não falavam nenhuma<br />

palavra em inglês. As italianas, todas em capotes pretos idênticos e agarradas<br />

umas às outras na parte dianteira <strong>do</strong> barco, alternavam momentos de completo<br />

silêncio com turbilhões de palavras rápidas e incompreensíveis, como se apenas<br />

elas pudessem perceber algo prestes a explodir. Maria partira para os Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s com o objetivo de trabalhar para uma família em Beacon Hill. Estava<br />

quase sempre histérica, mas eu não conseguia apiedar-me dela; até as mais<br />

pie<strong>do</strong>sas dentre as mulheres podiam ver que sua total falta de autocontrole<br />

representava uma ameaça para to<strong>do</strong>s nós. <strong>No</strong> início tentara acalmá-la com as<br />

poucas palavras em espanhol que eu conhecia, mas a cada tentativa de<br />

estabelecer comunicação ela agarrava minhas roupas e se levantava, agitan<strong>do</strong> os<br />

braços. Por isso, quan<strong>do</strong> nos cansamos de puxá-la inutilmente de volta para seu<br />

lugar, decidimos ignorá-la o máximo possível.<br />

Confesso que me ocorreu como teria si<strong>do</strong> fácil levantar-me e, supostamente<br />

ao tentar contê-la, jogar-me contra ela e empurrá-la para fora <strong>do</strong> barco. Ela<br />

estava sentada bem ao la<strong>do</strong> da amurada, e eu não tinha dúvida de que ficaríamos<br />

muito melhor sem ela e sem sua histeria. Apresso-me, no entanto, a esclarecer<br />

que não fiz nada disso; menciono a ideia apenas para ilustrar como os limites da<br />

reflexão humana se expandem depressa em situações como a nossa. Uma parte<br />

de mim compreendia a linha de pensamento que levara o Sr. Hoffman a<br />

apresentar sua sugestão para reduzir o peso <strong>do</strong> barco, e eu tinha consciência de<br />

que, se feita, uma proposta desse tipo dificilmente seria esquecida. O que fiz,<br />

então, foi trocar de lugar com Maria para, no caso de ela perder o equilíbrio, cair<br />

em cima de Mary Ann ou de mim, não no oceano.<br />

Foi assim que passei a fazer parte <strong>do</strong> grupo que ocupava os bancos ao longo da<br />

amurada e recebia os respingos <strong>do</strong>s remos enquanto os rema<strong>do</strong>res lutavam<br />

contra a corrente na tentativa de manter o barco na posição devida. Depois de<br />

muito refletir, estendi a mão para tocar a água. Estava gelada, e tive a sensação<br />

de que me atraía sedutoramente pela ponta <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s, embora esse efeito na<br />

verdade não se devesse a nenhuma propriedade da água, sen<strong>do</strong> um produto <strong>do</strong><br />

movimento de nosso pequeno barco e talvez também, em parte, obra de minha<br />

imaginação.

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