No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

enquanto o escutava. Como percebi mais tarde, esse carisma desaparecia quando ele abordava assuntos que estavam fora de sua alçada, mas quando se tratava de oração ele sentia segurança, sua voz se elevava acima do ruído da água e sua palavra nos unia. Era evidente que ele descobrira sua vocação, e eu me perguntei, não pela primeira vez, se parte da tragédia da vida não aparecia quando as pessoas se colocavam em situações para as quais suas naturezas não estavam aptas. Mais tarde eu viria a repensar minha opinião sobre o diácono, sua voz de tenor me parecendo uma prova de sua fraqueza geral, mas por enquanto eu me contentava em observar como a fé lhe revigorava as feições e em ouvir como sua voz trazia vida às tão antigas palavras das orações. Apesar de nosso propósito comum, não tardaram a aparecer desimportantes manifestações de ciúmes. Os passageiros sentados nos bancos compridos ao longo da amurada estavam mais sujeitos a receber os respingos dos remos do que os instalados no meio do barco, e quando o Sr. Hardie determinou a ordem em que seria feito o revezamento no dormitório, a Sra. McCain, uma senhora de maneiras rudes, insistiu em que as mulheres mais velhas tivessem o direito de ocupá-lo primeiro. A Sra. McCain acabou conseguindo o que queria, mas bastaram alguns minutos sobre os cobertores para ela reclamar que o lugar era abominável, que fazia muito calor embaixo da lona e que ela preferia o horário noturno. Por causa da superlotação, a locomoção no barco era difícil, de forma que quando a Sra. McCain perdeu o equilíbrio ao voltar para seu lugar, uma onda ultrapassou a amurada, fazendo o Sr. Hardie gritar: — Tratem de ficar nos seus lugares até que eu dê ordens em contrário! Foi o Sr. Hoffmann quem primeiro expressou o que todos nós pensávamos: o barco não fora concebido para carregar tanta gente. Poucos minutos depois, o coronel Marsh apontou para uma placa de latão pregada perto do segundo tolete a estibordo na qual estava gravado “CAPACIDADE: 40 PESSOAS”. Mesmo com trinta e nove, era evidente para todos que, com o excesso de peso, o barco navegava afundado demais na água e que só o tempo bom impedira que isso representasse um grande perigo até o momento. A placa nos deixou perplexos, em especial o coronel Marsh, homem que prezava a ordem e esperava não apenas certa uniformidade universal como também um acordo de cavalheiros sobre o sentido das palavras entre usuários da língua inglesa. — A palavra falada é uma coisa — observou —, mas alguém teve o trabalho de mandar gravar este número em uma placa. Ele esfregava o dedo na inscrição incessantemente, depois recontava as trinta e nove cabeças no barco enquanto sacudia pesadamente a sua, confuso. Em determinado momento ele tentou abordar a questão com o Sr. Hardie, que apenas respondeu: — E o que propõe que seja feito? Quer escrever aos fabricantes deste maldito barco e dar entrada em uma reclamação formal?

Mais tarde viríamos a descobrir que o barco media sete metros de comprimento, dois metros e vinte de extensão no ponto mais largo e apenas noventa centímetros de profundidade no centro. Ficamos sabendo também que os primeiros proprietários do Empress Alexandra tinham, por uma questão de economia, produzido os barcos salva-vidas de acordo com especificações adulteradas, de forma que a capacidade final ficou reduzida a apenas oitenta por cento dos quarenta originais. Ao que parecia, os dizeres das placas nunca haviam sido retificados. Talvez o barco não tenha afundado logo no primeiro dia porque a maioria a bordo era de mulheres, sempre menores em estatura do que a média dos homens. O Sr. Hoffman e o Sr. Nilsson conversavam com frequência, sentados com as cabeças próximas, por isso tive a impressão de que se conheciam, mas como estavam sempre na traseira do barco e eu bem mais perto da proa, era pouco provável que conseguisse me dirigir a eles ou ouvir o que diziam. Uma vez ou outra incluíam o Sr. Hardie nas discussões, embora ele em geral se mantivesse à parte. Não tínhamos o hábito de nos deslocar a bordo, e quando o grupo seguinte de mulheres seguiu desatentamente para o dormitório, a água de novo invadiu o barco. O Sr. Nilsson fez uma brincadeira, perguntando se alguém estava disposto a dar um mergulho, talvez até duas pessoas, ao que o coronel Marsh retrucou: — Boa ideia. Por que não pula primeiro? — Sou o único aqui, além do Sr. Hardie, que conhece alguma coisa de barco — argumentou o Sr. Nilsson, que então pôs-se a contar que crescera em Estocolmo, onde barcos eram tão comuns quanto automóveis. — Se alguém decidir me jogar na água, será por sua conta e risco — acrescentou, com uma expressão mais desafiadora do que seria de se esperar de alguém que estivesse apenas fazendo uma brincadeira. — Não se trata de jogar alguém na água — interveio o Sr. Hoffman em tom conciliador. — Estamos falando de voluntários. Mas fazia menos de quarenta e oito horas que estávamos no barco. O mar estava tranquilo e ainda tínhamos a certeza de que seríamos logo resgatados. No decorrer da tarde, no entanto, o Sr. Hardie, que de início havia rejeitado os argumentos do Sr. Hoffman, deu a impressão de que começava a considerá-los. Naquela manhã, quando alguém perguntara se deveríamos fazer contato com outros barcos salva-vidas, ele tinha declarado: — Não há necessidade de uma ação drástica. Sem dúvida logo avistaremos um navio ou um barco pesqueiro. No entanto, vez ou outra os três começaram a ser vistos conversando em voz baixa, e naquela tarde, quando o Sr. Hoffman voltou a falar de um plano de emergência, Hardie concordou com um aceno de cabeça e pousou os olhos no horizonte, como se examinasse algo que eu não conseguia enxergar. — Se o vento soprar forte, não teremos tempo para argumentos nem

enquanto o escutava. Como percebi mais tarde, esse carisma desaparecia quan<strong>do</strong><br />

ele abordava assuntos que estavam fora de sua alçada, mas quan<strong>do</strong> se tratava de<br />

oração ele sentia segurança, sua voz se elevava acima <strong>do</strong> ruí<strong>do</strong> da água e sua<br />

palavra nos unia. Era evidente que ele descobrira sua vocação, e eu me<br />

perguntei, não pela primeira vez, se parte da tragédia da vida não aparecia<br />

quan<strong>do</strong> as pessoas se colocavam em situações para as quais suas naturezas não<br />

estavam aptas. Mais tarde eu viria a repensar minha opinião sobre o diácono, sua<br />

voz de tenor me parecen<strong>do</strong> uma prova de sua fraqueza geral, mas por enquanto<br />

eu me contentava em observar como a fé lhe revigorava as feições e em ouvir<br />

como sua voz trazia vida às tão antigas palavras das orações.<br />

Apesar de nosso propósito comum, não tardaram a aparecer desimportantes<br />

manifestações de ciúmes. Os passageiros senta<strong>do</strong>s nos bancos compri<strong>do</strong>s ao<br />

longo da amurada estavam mais sujeitos a receber os respingos <strong>do</strong>s remos <strong>do</strong><br />

que os instala<strong>do</strong>s no meio <strong>do</strong> barco, e quan<strong>do</strong> o Sr. Hardie determinou a ordem<br />

em que seria feito o revezamento no <strong>do</strong>rmitório, a Sra. McCain, uma senhora de<br />

maneiras rudes, insistiu em que as mulheres mais velhas tivessem o direito de<br />

ocupá-lo primeiro. A Sra. McCain acabou conseguin<strong>do</strong> o que queria, mas<br />

bastaram alguns minutos sobre os cobertores para ela recla<strong>mar</strong> que o lugar era<br />

abominável, que fazia muito calor embaixo da lona e que ela preferia o horário<br />

noturno. Por causa da superlotação, a locomoção no barco era difícil, de forma<br />

que quan<strong>do</strong> a Sra. McCain perdeu o equilíbrio ao voltar para seu lugar, uma onda<br />

ultrapassou a amurada, fazen<strong>do</strong> o Sr. Hardie gritar:<br />

— Tratem de ficar nos seus lugares até que eu dê ordens em contrário!<br />

Foi o Sr. Hoffmann quem primeiro expressou o que to<strong>do</strong>s nós pensávamos: o<br />

barco não fora concebi<strong>do</strong> para carregar tanta gente. Poucos minutos depois, o<br />

coronel Marsh apontou para uma placa de latão pregada perto <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> tolete<br />

a estibor<strong>do</strong> na qual estava grava<strong>do</strong> “CAPACIDADE: 40 PESSOAS”. Mesmo<br />

com trinta e nove, era evidente para to<strong>do</strong>s que, com o excesso de peso, o barco<br />

navegava afunda<strong>do</strong> demais na água e que só o tempo bom impedira que isso<br />

representasse um grande perigo até o momento. A placa nos deixou perplexos,<br />

em especial o coronel Marsh, homem que prezava a ordem e esperava não<br />

apenas certa uniformidade universal como também um acor<strong>do</strong> de cavalheiros<br />

sobre o senti<strong>do</strong> das palavras entre usuários da língua inglesa.<br />

— A palavra falada é uma coisa — observou —, mas alguém teve o trabalho<br />

de mandar gravar este número em uma placa.<br />

Ele esfregava o de<strong>do</strong> na inscrição incessantemente, depois recontava as trinta<br />

e nove cabeças no barco enquanto sacudia pesadamente a sua, confuso. Em<br />

determina<strong>do</strong> momento ele tentou abordar a questão com o Sr. Hardie, que<br />

apenas respondeu:<br />

— E o que propõe que seja feito? Quer escrever aos fabricantes deste maldito<br />

barco e dar entrada em uma reclamação formal?

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