No coracao do mar - Charlotte Rogan
DIA DOIS Quando acordamos, na manhã do segundo dia, o Sr. Hardie tinha elaborado uma lista de tarefas, que incluía revezamento nos remos para os mais fortes. A Sra. Grant e todos os homens, com exceção do frágil Sr. Turner, sentaram-se junto aos oito toletes dos remos e se revezaram em puxar os quatro remos para trás e para a frente sempre que o Sr. Hardie lhes pedia para remar. Ele levou algum tempo avaliando o vento e a corrente, e eu o ouvi explicar a um de seus vizinhos que o uso dos remos compensaria a distância que percorríamos à deriva, pois nossa maior chance seria permanecer nas proximidades do navio naufragado. Os outros se revezariam com os baldes. Navegávamos rentes à água, e, apesar do pouco vento, com frequência uma onda invadia o barco por cima da amurada — o Sr. Hardie chama de apostura —, ameaçando o tempo inteiro molhar nossas roupas e os cobertores que faziam parte do pequeno estoque de provisões de emergência do barco. Era pior para os passageiros sentados nas extremidades ou nos dois longos bancos que corriam de um lado e do outro no sentido do comprimento. Eles formavam uma barreira de proteção para o restante de nós, que tínhamos a sorte de ocupar os bancos transversais. Após distribuir uma porção de biscoito e água, o Sr. Hardie pediu que colocássemos a cobertura de lona e os cobertores na quina da frente do barco de tal modo que a lona protegesse os cobertores da água que poderia se acumular no fundo e dos respingos que passavam por cima da amurada. Então determinou que as mulheres poderiam descansar naquele canto, três de cada vez, por um período não superior a duas horas. Como havia trinta e uma mulheres, se contássemos o pequeno Charles, significava que cada uma teria direito a um turno por dia no que foi imediatamente apelidado de dormitório. O tempo extra poderia ser cedido aos homens que desejassem. Depois de acertado isso, o Sr. Hardie encarregou os remadores de ficar de olho nos outros barcos salva-vidas, cobrindo a maior distância possível. Designei a mim mesma a tarefa de ajudá-los, por isso passava o dia atenta ao horizonte, a mão cobrindo os olhos para bloquear o reflexo ofuscante do sol no oceano. Assim eu tinha a sensação de contribuir para o bem-estar de meus companheiros. O Sr. Nilsson, que afirmava ter trabalhado para uma companhia de navegação e parecia obcecado por organização, perguntou ao Sr. Hardie quanto tempo ainda duraria nosso estoque de alimentos, mas o Sr. Hardie não lhe deu muita atenção, respondendo apenas que comida não seria problema contanto que fôssemos resgatados, o que ele sinceramente acreditava que aconteceria. Durante a maior parte do tempo as pessoas não conversavam, e a julgar pelos olhares vazios e as pupilas dilatadas de muitas mulheres, eu poderia jurar que estavam em choque. Àquela altura eu só sabia o nome de dois passageiros: o coronel Marsh, um
homem forte e de ar distinto, cuja esposa havia morrido alguns anos antes, e que se sentara à mesa do comandante comigo e com Henry; e a Sra. Forester, uma mulher calada e de olhar desconfiado que eu vira muitas vezes passeando pelo Empress Alexandra com um livro ou uma peça de tricô nas mãos. O coronel fez um discreto movimento com a cabeça em minha direção, mas, quando dirigi um sorriso à Sra. Forester, ela desviou o olhar. Passamos o restante da manhã e o início da tarde com os olhos grudados na água ao longe, na esperança de ver algum navio passar, enquanto o Sr. Hardie oscilava entre um silêncio estoico e algumas histórias recheadas de fatos geográficos e folclore do mar. Achei confuso seu breve monólogo a respeito do efeito do sol sobre as águas equatoriais em oposição a seu efeito sobre a superfície curva dos polos, mas lembro-me claramente de outras considerações suas. O Sr. Hardie também chamava o barco salva-vidas 14 de cúter e dizia que tinha sido concebido para navegar com remo e vela; na verdade, e de fato havia um buraco em um dos bancos da proa, no qual podia ser inserida uma vela, mas não tínhamos isso, tampouco mastro. Ele nos explicou que, como a velocidade da rotação da Terra é muito maior no equador do que nos polos, havia, na superfície do globo, várias correntes. Vínhamos navegando na direção oeste a aproximadamente quarenta e três graus latitude norte quando o navio afundou, uma posição que nos colocava, segundo Hardie, bem dentro de uma corrente predominantemente do oeste. Ele explicou que ventos ocidentais sopravam em geral do oeste, não para o oeste, e que nos encontrávamos no meio de uma rota marítima muito movimentada, que fora inaugurada na era da navegação a vela para tirar proveito desses ventos. Disse também que, se de modo geral ventos e correntes dificultavam as viagens de leste para oeste, como no nosso caso, o advento dos navios a vapor permitira que se tomasse a rota norte mais curta, ainda que isso significasse ir contra o vento. Suas histórias nos evocavam visões de enormes embarcações a vapor superlotadas, a tal ponto que começamos a imaginar uma infinidade de navios vindo para nos salvar. Apenas o Sr. Nilsson se manifestou com um comentário ácido: — Quem estaria vindo para a Europa agora? Estamos no meio de uma guerra! À menção da guerra, o coronel jogou os ombros para trás e concordou: — É bem verdade. O Sr. Hardie, no entanto, dirigiu-lhes um olhar sombrio e retrucou: — Há navios circulando nas duas direções. Mantenham os olhos bem abertos para que um deles não nos atropele. Enquanto vigiávamos em conjunto, na esperança de que algum tipo de navio aparecesse, o homem franzino, que agora se identificava como diácono, nos conduziu em uma oração. O diácono tinha uma bela voz, e, embora fosse o tipo de pessoa que não chamaria atenção na maioria das situações, eu não conseguia desviar o olhar
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DIA DOIS<br />
Quan<strong>do</strong> acordamos, na manhã <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> dia, o Sr. Hardie tinha elabora<strong>do</strong> uma<br />
lista de tarefas, que incluía revezamento nos remos para os mais fortes. A Sra.<br />
Grant e to<strong>do</strong>s os homens, com exceção <strong>do</strong> frágil Sr. Turner, sentaram-se junto<br />
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comprimento. Eles formavam uma barreira de proteção para o restante de nós,<br />
que tínhamos a sorte de ocupar os bancos transversais.<br />
Após distribuir uma porção de biscoito e água, o Sr. Hardie pediu que<br />
colocássemos a cobertura de lona e os cobertores na quina da frente <strong>do</strong> barco de<br />
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que as mulheres poderiam descansar naquele canto, três de cada vez, por um<br />
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contássemos o pequeno Charles, significava que cada uma teria direito a um<br />
turno por dia no que foi imediatamente apelida<strong>do</strong> de <strong>do</strong>rmitório. O tempo extra<br />
poderia ser cedi<strong>do</strong> aos homens que desejassem.<br />
Depois de acerta<strong>do</strong> isso, o Sr. Hardie encarregou os rema<strong>do</strong>res de ficar de<br />
olho nos outros barcos salva-vidas, cobrin<strong>do</strong> a maior distância possível. Designei<br />
a mim mesma a tarefa de ajudá-los, por isso passava o dia atenta ao horizonte, a<br />
mão cobrin<strong>do</strong> os olhos para bloquear o reflexo ofuscante <strong>do</strong> sol no oceano. Assim<br />
eu tinha a sensação de contribuir para o bem-estar de meus companheiros. O Sr.<br />
Nilsson, que afirmava ter trabalha<strong>do</strong> para uma companhia de navegação e<br />
parecia obceca<strong>do</strong> por organização, perguntou ao Sr. Hardie quanto tempo ainda<br />
duraria nosso estoque de alimentos, mas o Sr. Hardie não lhe deu muita atenção,<br />
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resgata<strong>do</strong>s, o que ele sinceramente acreditava que aconteceria. Durante a maior<br />
parte <strong>do</strong> tempo as pessoas não conversavam, e a julgar pelos olhares vazios e as<br />
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Àquela altura eu só sabia o nome de <strong>do</strong>is passageiros: o coronel Marsh, um