Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
— Não havia joia alguma, Mary Ann — respondi, ou talvez não tenha<br />
respondi<strong>do</strong>, pois meus pensamentos estavam tão erráticos que era possível que<br />
tu<strong>do</strong> aquilo na verdade não passasse de um pesadelo.<br />
Faz quase um ano que o Dr. Cole insiste nos fatos ocorri<strong>do</strong>s no barco salvavidas.<br />
Seu discurso começa a soar exatamente como o <strong>do</strong> promotor. Já lhe disse<br />
que não falarei mais sobre as histórias <strong>do</strong> barco. Claro que tu<strong>do</strong> aquilo me afetou,<br />
mas não <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como ele imagina! Isso ele se recusa a aceitar. Não enten<strong>do</strong><br />
como reviver cada um desses dias em detalhes revelará a origem de minha<br />
angústia, que está bem mais ligada ao processo na Justiça e à preocupação<br />
quanto a meu futuro <strong>do</strong> que a qualquer coisa que tenha aconteci<strong>do</strong> na<br />
embarcação. Não foi o oceano que se mostrou cruel, foram as pessoas. Por que<br />
alguém se surpreenderia com isso? Por que os jura<strong>do</strong>s ficam de queixo caí<strong>do</strong> e<br />
olhos arregala<strong>do</strong>s? Por que os repórteres nos seguem como cães famintos?<br />
Criancice, pensei. Eu jamais voltaria a ser criança.<br />
Perdi a paciência com a ideia de um ser humano insignificante, seja ele<br />
padre, juiz ou <strong>do</strong>utor, colocar-se acima de nós e aos gritos nos fazer sermões<br />
sobre isto ou aquilo. Assim que alguém começa a pontificar nesse senti<strong>do</strong>, tenho<br />
vontade de interromper seu discurso e sair da sala ou, se for impossível fazer isso<br />
impunemente, <strong>do</strong>u um jeito de esboçar aquele <strong>do</strong>ce sorriso malicioso que me foi<br />
muito útil ao longo <strong>do</strong> julgamento mas que tanto enfurece o Dr. Cole. Afinal de<br />
contas, já medi o tamanho de minha insignificância, e sobrevivi.<br />
Quan<strong>do</strong> falei sobre isso, o Dr. Cole começou a me fazer uma preleção sobre<br />
culpa e a dizer que as pessoas não são responsáveis pela sorte ou pelo azar que<br />
lhes cabe. Insisto com ele que não me pergunto “Por que eu?” mais <strong>do</strong> que me<br />
pergunto sobre o acaso de meu nascimento. O que sinto é que sou ao mesmo<br />
tempo afortunada e azarada por ter passa<strong>do</strong> por isso, e sufocada por uma<br />
estranha felicidade pelo mun<strong>do</strong> inteiramente novo que a experiência me revelou,<br />
um mun<strong>do</strong> livre da dependência de outras pessoas, livre até <strong>do</strong> me<strong>do</strong> da morte e<br />
da crença em Deus. Talvez seja exatamente isso que desconcerta o Dr. Cole, e<br />
suspeito que ele esteja tão interessa<strong>do</strong> em me curar quanto em curar a si mesmo.<br />
Hoje comuniquei ao Dr. Cole que iria embora, mesmo sem saber exatamente<br />
para onde.<br />
— Mas nosso tratamento ainda não acabou! — exclamou ele.<br />
Expliquei que estava prestes a embarcar em uma grande e nova aventura<br />
agora que a <strong>do</strong> naufrágio estava encerrada.<br />
— Vai se casar de novo! — sugeriu ele.<br />
— Que falta de imaginação! As possibilidades são infinitas. Como posso saber<br />
o que farei?<br />
Senti-me livre e aliviada com o que disse, mas receio que o mun<strong>do</strong> seja tão<br />
pouco imaginativo quanto o Dr. Cole e que precisarei aceitar a proposta de<br />
casamento <strong>do</strong> Sr. Reichmann por falta de solução melhor. A mãe de Henry tem