No coracao do mar - Charlotte Rogan

parecera uma emoção fraca, uma espécie de passividade declarada ou negação
arraigada; e enquanto a costa arborizada se aproximava e se ampliava à nossa
frente como a terra prometida de Moisés, decidi não me tornar uma vítima dela.
Tinham nos avisado que havia quartos reservados para nós em um hotel, além de
médicos disponíveis para nos examinar, de modo que eu sabia que disporia de
um ou dois dias para planejar aonde ir e o que fazer, sem jamais imaginar o
rumo que tomariam os acontecimentos.
Fui a última dos sobreviventes a cruzar a passarela até o cais do porto de
Boston. Dar o primeiro passo naquelas tábuas acinzentadas e gastas pelo tempo
foi como pisar em um barco balançando, tão desacostumados estávamos a
caminhar em superfície firme. Era cômico ver meus companheiros de infortúnio
tentando manter o equilíbrio, e nossas risadas eram tanto a expressão de nossa
alegria por estar em terra quanto a percepção de como havíamos desaprendido a
andar sobre terrenos não vacilantes. Parei uma vez, na metade do longo declive,
e virei-me para olhar a água cintilante do porto. Do alto, junto da amurada, o
comandante do paquete também observava ao redor antes de voltar sua atenção
para a tripulação e os preparativos necessários para seu destino seguinte. Tinha as
mãos na cintura e os olhos apertados para o forte sol da manhã que atravessava
as nuvens em feixes dourados, nos observando... Observando a mim, como
preferi pensar. Fitamo-nos por um longo momento, e vi nele o Sr. Hardie, ainda
que os dois nada tivessem em comum. Enquanto Hardie era sombrio e seco, o
comandante do paquete era alto e tinha um ar requintado e uma distinção que
faltavam em nosso ex-companheiro de naufrágio. Nossos olhos se cruzaram.
Ergui de leve a mão, e ele, em resposta, fez uma espécie de saudação. Foi
exatamente o gesto que o Sr. Hardie fez para Henry no dia do naufrágio do
Empress Alexandra, quando meu marido se aproximou dele no convés e os dois
trocaram algumas palavras que não entendi, embora eu tivesse certeza de que
alguma transação havia sido feita, pois Henry tinha o mesmo olhar fixo e
concentrado que adotara nas lojas de Londres onde comprara para mim vestidos
e joias, hoje perdidos. Depois Henry se afastou e ergueu a mão como eu fazia
agora, e o Sr. Hardie o saudou também com uma das mãos, enquanto escondia a
outra dentro do casaco. Os botões dourados de seu uniforme brilhavam ao sol.
Seu chapéu de marinheiro estava ajustado com firmeza em sua cabeça. Suas
faces, bem barbeadas naquela ocasião, já se mostravam fundas, e os olhos
encovados eram escuros e insondáveis.
Inclinei a cabeça. O comandante do paquete fez o mesmo, e foi a última vez
que o vi. Desviamos o olhar ambos no mesmo momento, e assim voltei a descer
a rampa, com o mesmo passo instável de meus companheiros. Quando
atravessei o cais e coloquei os pés em terra firme, meus passos já não vacilavam
mais, e mesmo quando tive a certeza de que não havia ninguém à minha espera,
foi com segurança que avancei na direção do futuro e do que ele me reservava.