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No coracao do mar - Charlotte Rogan

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triste, pois fui invadida por uma mistura de alegria e espanto que nunca sentira<br />

antes e com certeza jamais voltaria a sentir.<br />

— A senhora espera que um barco pesqueiro islandês apareça no horizonte<br />

agora que vai enfrentar um julgamento? — perguntou ele.<br />

Respondi que sim, e que um já tinha apareci<strong>do</strong>. Ele não se imaginava o<br />

comandante?<br />

Isabelle, sempre muito séria e devota, insistia em que não tocássemos na<br />

refeição antes de dar graças, por isso deixávamos a comida esfrian<strong>do</strong> nos pratos<br />

enquanto passávamos longos minutos com a cabeça curvada, ouvin<strong>do</strong>-a<br />

enumerar as muitas coisas pelas quais precisávamos ser gratos. Ela agradecia ao<br />

<strong>mar</strong>, que nos mantivera à tona e nos sustentara, embora também nos ameaçasse,<br />

depois aos peixes e pássaros, que tinham se ofereci<strong>do</strong> como nosso sustento, e por<br />

fim às pessoas que haviam morri<strong>do</strong> para que pudéssemos viver, e ao mesmo<br />

tempo eu orava baixinho por um milagre que me trouxesse Henry de volta.<br />

Outros interrompiam a prece de Isabelle para fazer as próprias orações, e<br />

compreendi que também eles, supersticiosamente, faziam barganhas<br />

desesperadas em favor de seus entes queri<strong>do</strong>s, embora não quisessem dar a<br />

impressão de desprezar o que já haviam recebi<strong>do</strong>.<br />

Quanto tempo duraria essa nova devoção?, eu me perguntava. Então me<br />

lembrei de uma reflexão que o Sr. Sinclair fizera em determinada ocasião.<br />

— To<strong>do</strong>s aqueles que criam uma divindade precisam um dia destruí-la —<br />

disse-me ele, antes de argumentar que a relação <strong>do</strong> homem com Deus reproduz<br />

o ciclo da vida. — Quan<strong>do</strong> somos crianças — prosseguiu —, precisamos de uma<br />

figura com autoridade que nos oriente e cuide de nós. Não questionamos essa<br />

autoridade, e imaginamos que o pequeno círculo de nossa vida familiar seja o<br />

limite <strong>do</strong> universo e que o que vemos diante de nós é o que existe em toda parte e<br />

que é bom que seja assim. Depois, à medida que crescemos, nossos horizontes se<br />

expandem e começamos a questionar nossas certezas. E prosseguimos até o<br />

momento de aniquilar para sempre nossos cria<strong>do</strong>res, isto é, nossos pais, a fim de<br />

assumir o lugar deles como a força criativa em nossas vidas ou substituí-los por<br />

outros, porque o me<strong>do</strong> e a responsabilidade são grandes demais. As pessoas<br />

tomam um caminho ou o outro, e essa tem si<strong>do</strong> a causa de to<strong>do</strong>s os grandes<br />

conflitos pessoais e políticos ao longo da história.<br />

Eu admirava o radicalismo dessa teoria, a forma como incluía todas as<br />

pessoas em todas as épocas e não admitia as inconvenientes nuances ou<br />

exceções. Após o resgate, vi como tínhamos si<strong>do</strong> reduzi<strong>do</strong>s a crianças indefesas<br />

pela trágica situação que enfrentáramos, mas na ocasião de minha conversa com<br />

o Sr. Sinclair tive a impressão de que suas palavras eram mais pertinentes a<br />

Miranda e a mim em nossa família de origem <strong>do</strong> que a qualquer coisa maior e<br />

mais abrangente. Miranda procurou substituir nossos pais por uma autoridade<br />

exterior, enquanto eu me sentia feliz por estar livre deles. Quan<strong>do</strong> contei isso ao

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