Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Explosões luminosas e manchas escuras como tinta me cegavam, como se eu<br />
flutuasse no meio de um céu noturno estrela<strong>do</strong>. A to<strong>do</strong> momento eu sentia que<br />
estava à beira <strong>do</strong> desmaio, e uma vez caí sobre a Sra. McCain, derruban<strong>do</strong>-a.<br />
Permanecemos no chão em um estranho abraço, esgotadas demais para nos<br />
levantar, e ali teríamos continua<strong>do</strong> se a Sra. Grant não tivesse grita<strong>do</strong> para<br />
voltarmos à razão.<br />
A fronteira entre o sono e a consciência se tornara indistinta, e eu nunca estava<br />
inteiramente segura <strong>do</strong> que era sonho e o que era realidade. O exemplo mais<br />
terrível disso foi quan<strong>do</strong> tive certeza de que Henry estivera conosco no barco<br />
salva-vidas o tempo inteiro, mas sob outra identidade. Com pavor crescente, deime<br />
conta de que ele vestira um uniforme de <strong>mar</strong>inheiro e a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> o nome de Sr.<br />
Hardie para entrar no barco comigo. Isso significava que a pessoa que eu<br />
ajudara a matar era Henry ! Apoiei-me na amurada e arrastei-me até chegar a<br />
Hannah, ao la<strong>do</strong> de quem me sentei. Eu tremia, e, quan<strong>do</strong> falei, estava tomada<br />
por um pânico que até então desconhecia:<br />
— Acredito que o Sr. Hardie não era um membro da tripulação.<br />
— Quem era ele, então?<br />
— Henry! — sussurrei, tentan<strong>do</strong> articular as palavras com uma língua que<br />
insistia em não colaborar. — Acho que matamos Henry!<br />
Eu teria chora<strong>do</strong> se em meu corpo ainda houvesse água suficiente para<br />
lágrimas.<br />
— Não, não — murmurou ela, tocan<strong>do</strong> meu rosto com sua mão áspera. —<br />
Não matamos Henry . Ele não estava em nosso barco.<br />
Foi então que despertei (se estava a<strong>do</strong>rmecida) ou recobrei a razão (se já<br />
estivesse acordada). Percebi estar sentada ao la<strong>do</strong> de Hannah, que continuava<br />
com os olhos fecha<strong>do</strong>s e se apoiava em meu ombro <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> como eu<br />
me apoiava no dela. Passei o resto <strong>do</strong> dia perambulan<strong>do</strong> por meu Palácio de<br />
Inverno, mais como fantasma <strong>do</strong> que como arquiteta.<br />
Mais tarde naquela noite, ou talvez na seguinte, o céu se abriu e uma tromba<br />
d’água desabou sobre nós. Levamos alguns minutos para perceber o que estava<br />
acontecen<strong>do</strong> e quase meia hora para conseguir baixar a vela o suficiente para<br />
capturar a água que caía e canalizá-la para os tonéis vazios, como Hardie nos<br />
ensinara a fazer. <strong>No</strong>sso esta<strong>do</strong> de extrema fraqueza tornava o trabalho quase<br />
impossível, mas no final da chuvarada tínhamos bebi<strong>do</strong> tanta água que quase nos<br />
sentimos mal e acumula<strong>do</strong> uma reserva suficiente para enfrentar o que nos<br />
restasse de futuro.<br />
Durante aqueles últimos dias no barco salva-vidas, a estrutura rígida de nossa<br />
existência se desintegrou por completo. A Sra. Grant não dera continuidade à<br />
divisão de tarefas instaurada pelo Sr. Hardie, e se alguma coisa precisasse ser<br />
feita, ela ou Hannah se encarregava de fazer, pois mesmo que ela pedisse a<br />
algum de nós, estávamos quase to<strong>do</strong>s muito debilita<strong>do</strong>s e sem ânimo para