No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

pontos distantes; um bom sinal, pensei, já que o mar aberto era um lugar de relativa segurança após o caos e a turbulência que predominavam nas proximidades do naufrágio. O Sr. Hardie oferecia às mulheres mais fracas os melhores assentos e dirigiase a nós como “madame”. Preocupava-se com nosso bem-estar como se pudesse fazer alguma coisa a respeito, e no início as mulheres retribuíam a gentileza alegando excelentes condições, embora todos percebessem que o punho da Sra. Fleming estava dobrado em um ângulo estranho e que uma governanta espanhola chamada Maria apresentava graves distúrbios emocionais frutos do choque. Foi a Sra. Grant quem improvisou uma tipoia para o braço da Sra. Fleming, e foi também ela quem primeiro se perguntou em voz alta como Hardie fora parar em nosso barco. Mais tarde descobrimos que, como os protocolos de emergência exigiam um marinheiro experiente em cada barco salva-vidas, o comandante Sutter permanecera no navio com a maior parte da tripulação a fim de ajudar a transferir as pessoas para os barcos salva-vidas e também para tentar manter a ordem em meio ao pânico que se instalara. Tínhamos constatado por nós mesmos, enquanto lentamente nos afastávamos, que a pressa desesperada por parte tanto da tripulação quanto dos passageiros na hora de colocar os barcos na água era contraproducente, pois o transatlântico se inclinava de maneira dramática à medida que a água o tomava, e essa situação piorava com a força de tudo que se chocava e se quebrava no interior do navio, a tal ponto que, quando chegou nossa vez de descer, não havia mais uma linha reta no percurso do convés até a água. Não apenas a embarcação menor estava em perigo constante de colidir com a lateral já fortemente inclinada do navio ou de virar e despencar lá de cima, como também custava aos homens que controlavam as roldanas um esforço extremo para baixar as duas extremidades na mesma velocidade. Um barco que fora lançado à água logo após o nosso emborcara totalmente, despejando no oceano toda a sua carga de mulheres e crianças. Elas gritaram e se debateram na água diante de nossos olhos, mas nada fizemos para ajudá-las, e ficou claro que, sem Hardie para nos orientar, nosso destino teria sido o mesmo. Depois de tudo que aconteceu, posso dar uma resposta afirmativa às minhas próprias indagações: se o Sr. Hardie não tivesse se livrado dos náufragos que se agarraram à borda do nosso barco, eu mesma o teria feito.

NOITE Estávamos no barco salva-vidas havia talvez umas cinco horas quando o céu tingiu-se de um cor-de-rosa intenso que logo se transformou em azul, depois em roxo, enquanto o sol parecia inflar à medida que se aproximava, a oeste, da linha cada vez mais escura em que o horizonte encontrava o oceano. Ao longe podíamos ver as silhuetas escuras de outros barcos, balançando como o nosso em meio à imensidão rosada e preta, sem outra perspectiva senão esperar. Nossos destinos estavam agora nas mãos de outras tripulações e de outros comandantes, que àquela altura já deviam ter sido informados do naufrágio. Eu esperava, ansiosa, que a noite caísse, pois tinha a necessidade urgente de aliviar a bexiga. O Sr. Hardie nos indicara os procedimentos que deveríamos seguir. Para as mulheres, era preciso utilizar um dos três baldes de madeira, cuja função principal era retirar o excesso de água acumulada no fundo da embarcação. Constrangido e tropeçando nas palavras, sugerira que um dos baldes fosse confiado à Sra. Grant, a quem deveríamos nos dirigir em caso de necessidade, e que trocássemos de lugar com quem estivesse sentado junto da amurada sempre que a natureza exigisse a manobra. — Bem, é isso! — concluiu o Sr. Hardie, erguendo os olhos sob as sobrancelhas espessas com uma expressão quase cômica. — É isso! Tenho certeza de que descobrirão como proceder. Ele, que apenas alguns minutos antes parecera tão seguro de si ao repassar a lista de equipamentos contidos em cada barco salva-vidas e explicar como utilizá-los, ficava agora cada vez mais sem jeito para desempenhar essa parte de sua tarefa. Quando o contorno laranja do sol desapareceu por completo, foi a minha vez de levar o balde até a amurada do barco. Para minha aflição, porém, percebi que, embora o céu já estivesse escuro e a noite tivesse se instalado plenamente, a escuridão não era total, deixando escapar fontes de luz, sombras e, atrás das sombras, olhos. Eu me sentia angustiada por descobrir que a noite não constituía a cortina opaca que eu esperava, e também por estarmos em um local tão apinhado, onde seria impossível disfarçar o que eu estava fazendo. Mas agradecia às forças desconhecidas que comandam nosso destino por estar rodeada principalmente por mulheres, cujas discrição e perspicácia as levavam a fingir não repararem no que as outras faziam a sua volta com o balde. Afinal de contas, estávamos na mesma situação, por isso começávamos a estabelecer o acordo tácito de não encararmos nos olhos a besta selvagem da necessidade física. A ideia era ignorá-la, desafiá-la a acabar com nosso senso de decoro, preservar a civilidade mesmo diante de um desastre que quase nos matara e que ainda poderia nos matar.

NOITE<br />

Estávamos no barco salva-vidas havia talvez umas cinco horas quan<strong>do</strong> o céu<br />

tingiu-se de um cor-de-rosa intenso que logo se transformou em azul, depois em<br />

roxo, enquanto o sol parecia inflar à medida que se aproximava, a oeste, da linha<br />

cada vez mais escura em que o horizonte encontrava o oceano. Ao longe<br />

podíamos ver as silhuetas escuras de outros barcos, balançan<strong>do</strong> como o nosso em<br />

meio à imensidão rosada e preta, sem outra perspectiva senão esperar. <strong>No</strong>ssos<br />

destinos estavam agora nas mãos de outras tripulações e de outros comandantes,<br />

que àquela altura já deviam ter si<strong>do</strong> informa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> naufrágio.<br />

Eu esperava, ansiosa, que a noite caísse, pois tinha a necessidade urgente de<br />

aliviar a bexiga. O Sr. Hardie nos indicara os procedimentos que deveríamos<br />

seguir. Para as mulheres, era preciso utilizar um <strong>do</strong>s três baldes de madeira, cuja<br />

função principal era retirar o excesso de água acumulada no fun<strong>do</strong> da<br />

embarcação. Constrangi<strong>do</strong> e tropeçan<strong>do</strong> nas palavras, sugerira que um <strong>do</strong>s<br />

baldes fosse confia<strong>do</strong> à Sra. Grant, a quem deveríamos nos dirigir em caso de<br />

necessidade, e que trocássemos de lugar com quem estivesse senta<strong>do</strong> junto da<br />

amurada sempre que a natureza exigisse a manobra.<br />

— Bem, é isso! — concluiu o Sr. Hardie, erguen<strong>do</strong> os olhos sob as<br />

sobrancelhas espessas com uma expressão quase cômica. — É isso! Tenho<br />

certeza de que descobrirão como proceder.<br />

Ele, que apenas alguns minutos antes parecera tão seguro de si ao repassar a<br />

lista de equipamentos conti<strong>do</strong>s em cada barco salva-vidas e explicar como<br />

utilizá-los, ficava agora cada vez mais sem jeito para desempenhar essa parte de<br />

sua tarefa.<br />

Quan<strong>do</strong> o contorno laranja <strong>do</strong> sol desapareceu por completo, foi a minha vez<br />

de levar o balde até a amurada <strong>do</strong> barco. Para minha aflição, porém, percebi<br />

que, embora o céu já estivesse escuro e a noite tivesse se instala<strong>do</strong> plenamente, a<br />

escuridão não era total, deixan<strong>do</strong> escapar fontes de luz, sombras e, atrás das<br />

sombras, olhos. Eu me sentia angustiada por descobrir que a noite não constituía a<br />

cortina opaca que eu esperava, e também por estarmos em um local tão<br />

apinha<strong>do</strong>, onde seria impossível disfarçar o que eu estava fazen<strong>do</strong>. Mas<br />

agradecia às forças desconhecidas que comandam nosso destino por estar<br />

rodeada principalmente por mulheres, cujas discrição e perspicácia as levavam<br />

a fingir não repararem no que as outras faziam a sua volta com o balde. Afinal<br />

de contas, estávamos na mesma situação, por isso começávamos a estabelecer o<br />

acor<strong>do</strong> tácito de não encararmos nos olhos a besta selvagem da necessidade<br />

física. A ideia era ignorá-la, desafiá-la a acabar com nosso senso de decoro,<br />

preservar a civilidade mesmo diante de um desastre que quase nos matara e que<br />

ainda poderia nos matar.

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