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uma linha vermelha. Em lugar de inspirar compaixão, a cicatriz a faz parecer<br />
um pirata. Mas quan<strong>do</strong> fiz esse comentário, ela retrucou:<br />
— Pirata, eu? Então minha aparência externa reflete bem o que sinto na alma.<br />
Antes de entrar naquele barco salva-vidas, eu nunca pensara muito no <strong>mar</strong>,<br />
nem mesmo enquanto o cruzava a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> Empress Alexandra. Naqueles dias, o<br />
oceano não passava de um cenário pitoresco para minha vida com Henry, no<br />
máximo uma grande extensão em tons variáveis de azul ou uma inconveniência<br />
desagradável, motivo de náusea, talvez, não de uma <strong>do</strong>ença real; e às vezes<br />
acredito que tive o azar — ou o privilégio — de aguentar vinte e um dias em um<br />
barco salva-vidas para nunca mais voltar a pensar em natureza como um jardim<br />
para a humanidade e para nunca mais pensar em poder como aquilo que Henry<br />
possuía quan<strong>do</strong> embolsou as chaves <strong>do</strong> cofre ou na autoridade exercida pelo juiz<br />
Potter, o magistra<strong>do</strong> responsável por nosso caso.<br />
À medida que o fato recua no tempo e hipóteses, histórias, boatos e<br />
depoimentos proliferam, o acontecimento em si cada vez perde mais clareza,<br />
tornan<strong>do</strong>-se menos uma questão de realidade objetiva — oceano, céu, fome ou<br />
frio — e mais um caldeirão de discussões teóricas de jornalistas e moralistas.<br />
Não há ninguém que não tenha algo a dizer sobre o assunto, o que leva Hannah a<br />
se perguntar por que essas observações irrelevantes de outras pessoas têm algum<br />
peso. Não sei. Posso apenas imaginar o que Henry teria pensa<strong>do</strong>. Henry era<br />
muito seguro de si. Poderia ter si<strong>do</strong> muito útil no barco, e com frequência penso<br />
no rumo que as coisas teriam toma<strong>do</strong> se eu o tivesse a meu la<strong>do</strong>. É claro que se<br />
meu <strong>mar</strong>i<strong>do</strong> estivesse comigo não teriam me acusa<strong>do</strong> de nada, pelo menos não<br />
de ser “anti-homem”, como escreveram os jornais.<br />
Sinto saudade de Henry. Com ele, eu sentia que caráter não era uma<br />
exigência prioritária em mim, já que o seu era tão bem defini<strong>do</strong> e sóli<strong>do</strong>. Acima<br />
de tu<strong>do</strong>, com Henry eu me sentia segura, o que é uma ironia, pois, se não<br />
tivéssemos nos conheci<strong>do</strong>, eu jamais teria embarca<strong>do</strong> no Empress Alexandra.<br />
Sem ele eu me sinto vulnerável, inteiramente sujeita ao julgamento <strong>do</strong>s outros. É<br />
provável que muito já tenha si<strong>do</strong> escrito sobre o assunto — não faço ideia, pois<br />
não é o meu tipo de leitura —, mas não posso deixar de pensar que os seres<br />
humanos foram feitos para viver aos pares, para enfrentar o mun<strong>do</strong> juntos,<br />
casa<strong>do</strong>s. Os benefícios disso podem ser vistos até no exemplo de Hannah e da<br />
Sra. Grant, na força que encontraram uma na outra — embora não fossem<br />
casadas, claro, e nem poderiam ser. De to<strong>do</strong>s nós, eram elas que tinham a<br />
ligação mais forte, e foram elas que se saíram menos afetadas pela experiência.<br />
Tu<strong>do</strong> bem, as duas estão na prisão, o que vale por qualquer sofrimento que<br />
tenham deixa<strong>do</strong> de sentir no <strong>mar</strong>, mas o que quero dizer é que, quanto ao perío<strong>do</strong><br />
em que estivemos no barco, elas parecem ser as que menos sofreram com tu<strong>do</strong><br />
aquilo. Às vezes me pergunto se teriam i<strong>do</strong> para a prisão se a Sra. Grant fosse<br />
homem.