No coracao do mar - Charlotte Rogan
Por causa desses ensaios, eu sabia que os promotores formulariam perguntas difíceis, que tentariam me conduzir de tal forma que eu me incriminasse ao deixar escapar algum detalhe de atos meus que eu ainda não tivesse admitido. É claro que não havia nada a admitir, e, embora eu achasse o processo desgastante, creio que me saí bastante bem. Eu só não estava preparada para a reação do Sr. Reichmann, que, embora se mostrasse muito objetivo e até sereno durante os ensaios, virou-se contra mim com uma veemência que me deixou abalada. Sua voz estrondosa fazia vibrar as luminárias, e em determinado momento ele bateu com um livro na mesa com tanta força que o juiz precisou usar seu martelo para lembrá-lo de que eu não era uma testemunha hostil e que ele deveria se acalmar. No fim do dia, estando eu morta de cansaço, o Sr. Reichmann sorriu para mim com ar exultante e desculpou-se discretamente. Eu não sabia o que pensar. Fui a primeira acusada a prestar depoimento, e senti um alívio enorme quando o interrogatório acabou. Pela expressão dos jurados, era impossível dizer se eu lhes causara uma boa impressão. Exausta e perigosamente à beira das lágrimas, baixei os olhos. Minhas mãos tremiam, e percebi que minhas forças, tão depauperadas pelas semanas passadas no barco, não haviam voltado por completo e que, em comparação com as outras acusadas, eu devia parecer infeliz e fraca. Quando penso no julgamento, vejo que desde o início o Sr. Reichmann procurou me diferenciar das outras duas acusadas, e é verdade que a Sra. Grant tem um aspecto intimidador. Está sempre vestida de preto. Seu cabelo, que no barco era mantido puxado para trás em um coque apertado, está agora cortado rente, e embora as dificuldades enfrentadas no mar a tenham deixado dez quilos mais magra, ela continua robusta, e é fácil perceber por que as outras se agarravam a ela como se fosse um pedaço de terra firme. Nunca se falou em algum Sr. Grant nem em pequenos Grants... Ela se bastava. Foi a única que não chorou pelo que estava perdido. Também não chorou durante o julgamento, mas isso, claro, contou pontos contra ela. Já Hannah é alta, pálida e tem um olhar severo, perigoso. Ela me contou que seus advogados tentaram convencê-la a suavizar a aparência para o julgamento e a usar o mesmo tipo de vestido que uso no tribunal, mas ela não lhes deu ouvidos e continua a se apresentar diante de todos de calça comprida. Só posso ficar contente por ter dado ouvidos aos conselhos que recebi a esse respeito: alterno entre um tailleur cinza-claro e um vestido azul-escuro com decote alto e punhos de renda, ambos comprados por meus advogados — com que dinheiro, não sei. Hannah contou-me que possui diversos vestidos cinza e verdes que seu marido lhe trouxe de Chicago, mas que não os usaria. Para mim foi um choque descobrir que ela era casada, pois em nenhum momento fizera menção a isso. Corria o boato de que ela não queria encontrar o marido e que pretendia divorciar-se dele, mas comigo jamais tocou no assunto. Ela tampouco tentou disfarçar a cicatriz que desce por seu rosto em
uma linha vermelha. Em lugar de inspirar compaixão, a cicatriz a faz parecer um pirata. Mas quando fiz esse comentário, ela retrucou: — Pirata, eu? Então minha aparência externa reflete bem o que sinto na alma. Antes de entrar naquele barco salva-vidas, eu nunca pensara muito no mar, nem mesmo enquanto o cruzava a bordo do Empress Alexandra. Naqueles dias, o oceano não passava de um cenário pitoresco para minha vida com Henry, no máximo uma grande extensão em tons variáveis de azul ou uma inconveniência desagradável, motivo de náusea, talvez, não de uma doença real; e às vezes acredito que tive o azar — ou o privilégio — de aguentar vinte e um dias em um barco salva-vidas para nunca mais voltar a pensar em natureza como um jardim para a humanidade e para nunca mais pensar em poder como aquilo que Henry possuía quando embolsou as chaves do cofre ou na autoridade exercida pelo juiz Potter, o magistrado responsável por nosso caso. À medida que o fato recua no tempo e hipóteses, histórias, boatos e depoimentos proliferam, o acontecimento em si cada vez perde mais clareza, tornando-se menos uma questão de realidade objetiva — oceano, céu, fome ou frio — e mais um caldeirão de discussões teóricas de jornalistas e moralistas. Não há ninguém que não tenha algo a dizer sobre o assunto, o que leva Hannah a se perguntar por que essas observações irrelevantes de outras pessoas têm algum peso. Não sei. Posso apenas imaginar o que Henry teria pensado. Henry era muito seguro de si. Poderia ter sido muito útil no barco, e com frequência penso no rumo que as coisas teriam tomado se eu o tivesse a meu lado. É claro que se meu marido estivesse comigo não teriam me acusado de nada, pelo menos não de ser “anti-homem”, como escreveram os jornais. Sinto saudade de Henry. Com ele, eu sentia que caráter não era uma exigência prioritária em mim, já que o seu era tão bem definido e sólido. Acima de tudo, com Henry eu me sentia segura, o que é uma ironia, pois, se não tivéssemos nos conhecido, eu jamais teria embarcado no Empress Alexandra. Sem ele eu me sinto vulnerável, inteiramente sujeita ao julgamento dos outros. É provável que muito já tenha sido escrito sobre o assunto — não faço ideia, pois não é o meu tipo de leitura —, mas não posso deixar de pensar que os seres humanos foram feitos para viver aos pares, para enfrentar o mundo juntos, casados. Os benefícios disso podem ser vistos até no exemplo de Hannah e da Sra. Grant, na força que encontraram uma na outra — embora não fossem casadas, claro, e nem poderiam ser. De todos nós, eram elas que tinham a ligação mais forte, e foram elas que se saíram menos afetadas pela experiência. Tudo bem, as duas estão na prisão, o que vale por qualquer sofrimento que tenham deixado de sentir no mar, mas o que quero dizer é que, quanto ao período em que estivemos no barco, elas parecem ser as que menos sofreram com tudo aquilo. Às vezes me pergunto se teriam ido para a prisão se a Sra. Grant fosse homem.
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Por causa desses ensaios, eu sabia que os promotores formulariam perguntas<br />
difíceis, que tentariam me conduzir de tal forma que eu me incriminasse ao<br />
deixar escapar algum detalhe de atos meus que eu ainda não tivesse admiti<strong>do</strong>. É<br />
claro que não havia nada a admitir, e, embora eu achasse o processo desgastante,<br />
creio que me saí bastante bem. Eu só não estava preparada para a reação <strong>do</strong> Sr.<br />
Reichmann, que, embora se mostrasse muito objetivo e até sereno durante os<br />
ensaios, virou-se contra mim com uma veemência que me deixou abalada. Sua<br />
voz estron<strong>do</strong>sa fazia vibrar as luminárias, e em determina<strong>do</strong> momento ele bateu<br />
com um livro na mesa com tanta força que o juiz precisou usar seu <strong>mar</strong>telo para<br />
lembrá-lo de que eu não era uma testemunha hostil e que ele deveria se acal<strong>mar</strong>.<br />
<strong>No</strong> fim <strong>do</strong> dia, estan<strong>do</strong> eu morta de cansaço, o Sr. Reichmann sorriu para mim<br />
com ar exultante e desculpou-se discretamente. Eu não sabia o que pensar.<br />
Fui a primeira acusada a prestar depoimento, e senti um alívio enorme quan<strong>do</strong><br />
o interrogatório acabou. Pela expressão <strong>do</strong>s jura<strong>do</strong>s, era impossível dizer se eu<br />
lhes causara uma boa impressão. Exausta e perigosamente à beira das lágrimas,<br />
baixei os olhos. Minhas mãos tremiam, e percebi que minhas forças, tão<br />
depauperadas pelas semanas passadas no barco, não haviam volta<strong>do</strong> por<br />
completo e que, em comparação com as outras acusadas, eu devia parecer<br />
infeliz e fraca.<br />
Quan<strong>do</strong> penso no julgamento, vejo que desde o início o Sr. Reichmann<br />
procurou me diferenciar das outras duas acusadas, e é verdade que a Sra. Grant<br />
tem um aspecto intimida<strong>do</strong>r. Está sempre vestida de preto. Seu cabelo, que no<br />
barco era manti<strong>do</strong> puxa<strong>do</strong> para trás em um coque aperta<strong>do</strong>, está agora corta<strong>do</strong><br />
rente, e embora as dificuldades enfrentadas no <strong>mar</strong> a tenham deixa<strong>do</strong> dez quilos<br />
mais magra, ela continua robusta, e é fácil perceber por que as outras se<br />
agarravam a ela como se fosse um pedaço de terra firme. Nunca se falou em<br />
algum Sr. Grant nem em pequenos Grants... Ela se bastava. Foi a única que não<br />
chorou pelo que estava perdi<strong>do</strong>. Também não chorou durante o julgamento, mas<br />
isso, claro, contou pontos contra ela. Já Hannah é alta, pálida e tem um olhar<br />
severo, perigoso. Ela me contou que seus advoga<strong>do</strong>s tentaram convencê-la a<br />
suavizar a aparência para o julgamento e a usar o mesmo tipo de vesti<strong>do</strong> que uso<br />
no tribunal, mas ela não lhes deu ouvi<strong>do</strong>s e continua a se apresentar diante de<br />
to<strong>do</strong>s de calça comprida. Só posso ficar contente por ter da<strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>s aos<br />
conselhos que recebi a esse respeito: alterno entre um tailleur cinza-claro e um<br />
vesti<strong>do</strong> azul-escuro com decote alto e punhos de renda, ambos compra<strong>do</strong>s por<br />
meus advoga<strong>do</strong>s — com que dinheiro, não sei. Hannah contou-me que possui<br />
diversos vesti<strong>do</strong>s cinza e verdes que seu <strong>mar</strong>i<strong>do</strong> lhe trouxe de Chicago, mas que<br />
não os usaria. Para mim foi um choque descobrir que ela era casada, pois em<br />
nenhum momento fizera menção a isso. Corria o boato de que ela não queria<br />
encontrar o <strong>mar</strong>i<strong>do</strong> e que pretendia divorciar-se dele, mas comigo jamais tocou<br />
no assunto. Ela tampouco tentou disfarçar a cicatriz que desce por seu rosto em