No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

DECISÕES Não me importei de ser taxada de indecisa durante todo o julgamento. É verdade que não tomei uma posição firme contra ou a favor do plano de matar Hardie, e por isso tenho sido criticada pelos dois lados; mas se esse foi o preço pago por aqueles dias no barco salva-vidas ou se não faz parte de minha natureza envolver-me a fundo nesse tipo de coisa, eu não saberia dizer. Nem o casamento com Henry, que me deixava extremamente feliz por inúmeras razões, provocava em mim o constante entusiasmo que Mary Ann demonstrava sempre que falava de Robert. Vez ou outra eu sentia algo parecido, mas não se tratava de um sentimento agradável... Eu o comparava a uma espécie de histeria, que imaginava precisar suprimir ou controlar. Além disso, vejam o que aconteceu com quem expressou emoções fortes: o diácono jogou-se do barco; Hardie e Mary Ann morreram; e a Sra. Grant e Hannah estão na prisão. Eu também estou, claro, mas não me incluo no grupo delas agora, assim como nunca me incluí. Além disso, quando me pareceu que a Sra. Grant conseguiria o que queria, resolvi sem nenhum problema unir minha aposta à dela e à do restante das mulheres, e no final apenas o Sr. Hoffman manteve-se firme em seu apoio incondicional a Hardie. Depois que me decidi, não fiquei indo e voltando, nem me arrependi da decisão tomada. Não fui forçada a nada e, apesar da insistência de meu advogado, eu não poderia declarar sob juramento que fui obrigada a me unir às mulheres sob ameaça explícita ou implícita de violência física. O Sr. Reichmann teve que se contentar em declarar: — Coloquem-se na triste posição de Grace, confinada com essas mulheres intimidadoras em um barco de sete metros de comprimento, rodeada apenas pela imensidão do oceano. Você acaba de ver um homem ser condenado à morte por essas mesmas mulheres. Você, por temer por sua vida, não teria também feito qualquer coisa que lhe pedissem? Eu não diria no depoimento que foi isso que passou por minha cabeça quando empurrei o Sr. Hardie para fora do barco. Até contradisse o Sr. Reichmann quando chegou minha vez de depor, mas ele virou-se para os jurados e afirmou: — É claro que até hoje Grace tem medo delas. Essa linha de condução de raciocínio foi utilizada diversas vezes durante o julgamento. O promotor me perguntou em determinado momento se alguma das mulheres foi ameaçada diretamente pelo Sr. Hardie, e precisei dar uma resposta negativa. Meu advogado então inverteu a pergunta e quis saber se alguma vez eu havia sido ameaçada por Hannah ou pela Sra. Grant, subentendendo claramente que se eu tivesse me recusado a segui-las, poderia ter tido o mesmo destino do Sr. Hardie.

— Diretamente não — respondi. — Em algum momento a senhora temeu por sua vida? — Sim — admiti, pois é claro que eu sentia medo desde o momento da explosão a bordo do Empress Alexandra. Mesmo depois de eu responder, o Sr. Reichmann continuou a fazer perguntas correlatas, em um tom cada vez mais hostil. — Sra. Winter, acredito que esteja mentindo. A senhora se sentia ameaçada? — perguntava ele insistentemente, assustando-me com sua veemência. — Sim! — gritei por fim. — Eu me sentia ameaçada todos os dias! Apenas mais tarde percebi que a genialidade da técnica do Sr. Reichmann estava em induzir o júri a supor erradamente, a partir da justaposição das respostas, que eu tinha medo de Hannah e da Sra. Grant. Durante o recesso seguinte, o Sr. Reichmann puxou-me de lado e disse: — A senhora sobreviveu àquele barco, agora precisa sobreviver a isto aqui. E não cometa o erro de pensar que a situação atual é diferente. — O que quer dizer com isso? Ele dirigiu-me um olhar de cumplicidade, do tipo que os advogados trocam durante depoimentos questionáveis ou do tipo que Hannah e a Sra. Grant trocavam o tempo inteiro, tanto no tribunal quanto antes, no barco. — Se precisar sacrificar alguém para se salvar, garanto que desta vez não será condenada por isso. Na preparação para meu depoimento, o Sr. Reichmann passara vários dias me bombardeando com uma série de perguntas que o Sr. Ligget e o Sr. Glover haviam elaborado. Os dois advogados assistentes se mantinham na retaguarda; então ocasionalmente um ou outro desempenhava o papel de promotor e fazia uma pergunta diferente, mais agressiva. Durante esse procedimento, até o pálido Sr. Ligget se transformava: suas feições se contorciam e seus lábios vermelhos se deformavam em um terrível riso de escárnio. Olhei com ar de ofendida na direção do Sr. Glover, que sempre se mostrara gentil e pronto a me tranquilizar, mas ele simplesmente me ignorou, como se não tivesse me visto. Na sua vez de fazer o papel de promotor e me interrogar, detectei nele uma satisfação apenas velada por estar agora de certo modo no comando, como se nossas posições tivessem sofrido uma inversão e ele me punisse por alguma desfeita que eu não fazia ideia de ter cometido. Não pude deixar de pensar que sua personalidade não era tão tranquila quanto eu imaginara, e senti-me aliviada quando o Sr. Reichmann retomou a palavra, pois ele era invariavelmente respeitoso e gentil em todas as circunstâncias, sempre autêntico, sempre firme em defender meu nome nos confrontos com a acusação e representado com muita habilidade por seus colaboradores. Em diversas ocasiões elogiou-me por meu “diário”, que, segundo ele, fora muito útil na preparação de nossa defesa, mas a opinião geral era de que meu relato não deveria fazer parte das provas.

— Diretamente não — respondi.<br />

— Em algum momento a senhora temeu por sua vida?<br />

— Sim — admiti, pois é claro que eu sentia me<strong>do</strong> desde o momento da<br />

explosão a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> Empress Alexandra.<br />

Mesmo depois de eu responder, o Sr. Reichmann continuou a fazer perguntas<br />

correlatas, em um tom cada vez mais hostil.<br />

— Sra. Winter, acredito que esteja mentin<strong>do</strong>. A senhora se sentia ameaçada?<br />

— perguntava ele insistentemente, assustan<strong>do</strong>-me com sua veemência.<br />

— Sim! — gritei por fim. — Eu me sentia ameaçada to<strong>do</strong>s os dias!<br />

Apenas mais tarde percebi que a genialidade da técnica <strong>do</strong> Sr. Reichmann<br />

estava em induzir o júri a supor erradamente, a partir da justaposição das<br />

respostas, que eu tinha me<strong>do</strong> de Hannah e da Sra. Grant.<br />

Durante o recesso seguinte, o Sr. Reichmann puxou-me de la<strong>do</strong> e disse:<br />

— A senhora sobreviveu àquele barco, agora precisa sobreviver a isto aqui. E<br />

não cometa o erro de pensar que a situação atual é diferente.<br />

— O que quer dizer com isso?<br />

Ele dirigiu-me um olhar de cumplicidade, <strong>do</strong> tipo que os advoga<strong>do</strong>s trocam<br />

durante depoimentos questionáveis ou <strong>do</strong> tipo que Hannah e a Sra. Grant<br />

trocavam o tempo inteiro, tanto no tribunal quanto antes, no barco.<br />

— Se precisar sacrificar alguém para se salvar, garanto que desta vez não será<br />

condenada por isso.<br />

Na preparação para meu depoimento, o Sr. Reichmann passara vários dias me<br />

bombardean<strong>do</strong> com uma série de perguntas que o Sr. Ligget e o Sr. Glover<br />

haviam elabora<strong>do</strong>. Os <strong>do</strong>is advoga<strong>do</strong>s assistentes se mantinham na retaguarda;<br />

então ocasionalmente um ou outro desempenhava o papel de promotor e fazia<br />

uma pergunta diferente, mais agressiva. Durante esse procedimento, até o páli<strong>do</strong><br />

Sr. Ligget se transformava: suas feições se contorciam e seus lábios vermelhos se<br />

deformavam em um terrível riso de escárnio. Olhei com ar de ofendida na<br />

direção <strong>do</strong> Sr. Glover, que sempre se mostrara gentil e pronto a me tranquilizar,<br />

mas ele simplesmente me ignorou, como se não tivesse me visto. Na sua vez de<br />

fazer o papel de promotor e me interrogar, detectei nele uma satisfação apenas<br />

velada por estar agora de certo mo<strong>do</strong> no coman<strong>do</strong>, como se nossas posições<br />

tivessem sofri<strong>do</strong> uma inversão e ele me punisse por alguma desfeita que eu não<br />

fazia ideia de ter cometi<strong>do</strong>. Não pude deixar de pensar que sua personalidade não<br />

era tão tranquila quanto eu imaginara, e senti-me aliviada quan<strong>do</strong> o Sr.<br />

Reichmann retomou a palavra, pois ele era invariavelmente respeitoso e gentil<br />

em todas as circunstâncias, sempre autêntico, sempre firme em defender meu<br />

nome nos confrontos com a acusação e representa<strong>do</strong> com muita habilidade por<br />

seus colabora<strong>do</strong>res. Em diversas ocasiões elogiou-me por meu “diário”, que,<br />

segun<strong>do</strong> ele, fora muito útil na preparação de nossa defesa, mas a opinião geral<br />

era de que meu relato não deveria fazer parte das provas.

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