No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

— E por que as três sobreviveram? Por que não sucumbiram às forças da natureza? Por que não ficaram debilitadas, por que não adoeceram como tantos outros? Alguém verdadeiramente forte não escolheria o caminho mais nobre e saltaria do barco para salvar outros passageiros? — Quem é verdadeiramente nobre? — foi a resposta da Sra. Grant, na forma de uma pergunta. — O senhor é? Mas pelo visto ela não tinha direito a retrucar naquele momento, pois o juiz bateu seu martelo e informou ao júri que aquela resposta deveria ser desconsiderada. No final do dia, quando deixamos o tribunal, um grupo de repórteres estava à nossa espera. “Como as senhoras sobreviveram?”, gritavam eles. “Podem nos dizer de onde vem essa força?” Mais tarde, Hannah bateu os pés com força no chão da caminhonete da prisão e perguntou, exaltada: — O que é isto afinal? Uma caça às bruxas? O único modo de provar nossa inocência seria nos afogando? Respondi que talvez houvesse uma questão mais profunda acerca da inocência, que talvez fosse impossível uma pessoa ao mesmo tempo estar viva e ser inocente, mas Hannah lançou-me um olhar frio e voltou sua atenção à Sra. Grant. Imagino que estivesse aborrecida por ter sido eu a responder às perguntas dos repórteres sobre o motivo de termos nos salvado. A única explicação que consegui dar, mesmo que havia muito tivesse abandonado qualquer vestígio de fé tradicional, foi “A graça de Deus”. No dia seguinte, um jornal estampou uma manchete em letras garrafais: A GRAÇA DE GRACE, e o breve texto da reportagem conferia uma espécie de significado místico a meu nome. Desde o início a imprensa e um grande número de pessoas pareciam mais favoráveis a mim do que à Sra. Grant ou a Hannah, que logo percebeu a preferência e alfinetou: — Sejamos honestas, Grace. Você banca a inocente na medida exata para escapar impune. Quando alguém ouve esse tipo de observação, precisa se defender, por isso respondi que ela e a Sra. Grant é que posavam para a plateia, ao insistirem em ir na contramão das expectativas do público. Mas acabei por perceber que cabia a cada uma decidir quando combater as convenções e quando aceitá-las, e nesse ponto não éramos muito diferentes. As principais testemunhas contra nós eram o Sr. Preston e o coronel Marsh. O coronel usava um uniforme decorado com fitas em cores vivas e insígnias que indicavam sua patente. Após jurar sobre a Bíblia que diria apenas a verdade, ele passou a relatar uma série de mentiras deslavadas. Afirmou que tentara proteger o Sr. Hardie, mas que, como estávamos em muito maior número, teve medo de as mulheres se voltarem contra ele caso continuasse a fazer-lhes oposição. Levantei-me de um salto, por acreditar que o juiz precisava saber que o coronel

Marsh discutira mais de uma vez com o Sr. Hardie a respeito de nossa aproximação dos outros barcos salva-vidas e que o criticara por ocasião do julgamento organizado pela Sra. Grant. O Sr. Glover, no entanto, puxou-me de volta para meu banco, onde permaneci em silêncio absoluto enquanto ouvia o coronel declarar que, depois de empurrar o Sr. Hardie para fora do barco, fizéramos o mesmo com o Sr. Hoffman. — O Sr. Hardie constituía uma ameaça, concordo, embora não para a segurança das mulheres, mas para suas ambições. Desde o início, ficou claro que Ursula Grant queria controlar o barco, e que o Sr. Hardie e seu fiel aliado, o Sr. Hoffman, estavam em seu caminho. Eu esperava que o Sr. Preston restabelecesse a verdade quanto à natureza exata de nossos atos e ao papel desempenhado pelo coronel, mas quando por fim foi chamado à tribuna e colocou os óculos, suas mãos tremiam e ele não parecia muito seguro de si. Em todo caso, ele não fez declarações sobre o assunto, e suspeito que o promotor público o tenha advertido que deixasse de fora tudo que não correspondesse à versão do coronel. Pouco depois ele pareceu se recompor, e dava a impressão de ter voltado quase ao normal quando ajudou o promotor a estabelecer a cronologia dos fatos. Forneceu rapidamente datas e quantidades, mas, sem uma estrutura coerente para conectá-las, seu depoimento não fez muito sentido para mim, e percebi que um dos jurados sacudia a cabeça, confuso, na tentativa de manter todos os fatos e números em ordem. A exposição dos argumentos da acusação demorou poucos dias, e depois foi a vez da defesa. A única sobrevivente italiana voltara para seu país. Ninguém sabia se tinha sido ela ou uma de suas duas compatriotas falecidas quem tentara enfiar a asa de pássaro nos olhos do Sr. Hardie, mas nem a acusação nem a defesa demonstrou interesse em descobrir. Com isso restavam, além de nós três, quatorze sobreviventes mulheres, das quais doze tinham aceitado testemunhar pessoalmente a nosso favor ou redigir depoimentos sob juramento. Todas, mesmo as que admitiram não ter condições de fazer relatos confiáveis dos acontecimentos daquele dia de agosto em função da severa exaustão mental e física, afirmaram que, não fosse por Hannah e a Sra. Grant, estariam mortas. Os depoimentos foram visivelmente ensaiados, pois todas usaram as mesmas palavras e expressões, como “O Sr. Hardie era sem dúvida louco e representava um perigo para todos nós” e “A Sra. Grant era uma ilha no meio do oceano” ou “um porto seguro”, e Hannah era “o farol que nos guiava em sua direção”. Todas foram unânimes ao afirmar que “ninguém encostou a mão no Sr. Hoffman, que pulou do barco por vontade própria”. Ouvi-las era como estar ao lado de membros de uma seita religiosa que entoassem louvores a um líder adorado; assim, devido a sua demonstração de apoio incondicional, os jornais as chamaram de “doze apóstolas”. Ao longo de todos aqueles repetitivos depoimentos, a Sra. Grant observava-as com sua

— E por que as três sobreviveram? Por que não sucumbiram às forças da<br />

natureza? Por que não ficaram debilitadas, por que não a<strong>do</strong>eceram como tantos<br />

outros? Alguém verdadeiramente forte não escolheria o caminho mais nobre e<br />

saltaria <strong>do</strong> barco para salvar outros passageiros?<br />

— Quem é verdadeiramente nobre? — foi a resposta da Sra. Grant, na forma<br />

de uma pergunta. — O senhor é?<br />

Mas pelo visto ela não tinha direito a retrucar naquele momento, pois o juiz<br />

bateu seu <strong>mar</strong>telo e informou ao júri que aquela resposta deveria ser<br />

desconsiderada. <strong>No</strong> final <strong>do</strong> dia, quan<strong>do</strong> deixamos o tribunal, um grupo de<br />

repórteres estava à nossa espera. “Como as senhoras sobreviveram?”, gritavam<br />

eles. “Podem nos dizer de onde vem essa força?”<br />

Mais tarde, Hannah bateu os pés com força no chão da caminhonete da prisão<br />

e perguntou, exaltada:<br />

— O que é isto afinal? Uma caça às bruxas? O único mo<strong>do</strong> de provar nossa<br />

inocência seria nos afogan<strong>do</strong>?<br />

Respondi que talvez houvesse uma questão mais profunda acerca da<br />

inocência, que talvez fosse impossível uma pessoa ao mesmo tempo estar viva e<br />

ser inocente, mas Hannah lançou-me um olhar frio e voltou sua atenção à Sra.<br />

Grant. Imagino que estivesse aborrecida por ter si<strong>do</strong> eu a responder às perguntas<br />

<strong>do</strong>s repórteres sobre o motivo de termos nos salva<strong>do</strong>. A única explicação que<br />

consegui dar, mesmo que havia muito tivesse aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> qualquer vestígio de fé<br />

tradicional, foi “A graça de Deus”. <strong>No</strong> dia seguinte, um jornal estampou uma<br />

manchete em letras garrafais: A GRAÇA DE GRACE, e o breve texto da<br />

reportagem conferia uma espécie de significa<strong>do</strong> místico a meu nome.<br />

Desde o início a imprensa e um grande número de pessoas pareciam mais<br />

favoráveis a mim <strong>do</strong> que à Sra. Grant ou a Hannah, que logo percebeu a<br />

preferência e alfinetou:<br />

— Sejamos honestas, Grace. Você banca a inocente na medida exata para<br />

escapar impune.<br />

Quan<strong>do</strong> alguém ouve esse tipo de observação, precisa se defender, por isso<br />

respondi que ela e a Sra. Grant é que posavam para a plateia, ao insistirem em ir<br />

na contramão das expectativas <strong>do</strong> público. Mas acabei por perceber que cabia a<br />

cada uma decidir quan<strong>do</strong> combater as convenções e quan<strong>do</strong> aceitá-las, e nesse<br />

ponto não éramos muito diferentes.<br />

As principais testemunhas contra nós eram o Sr. Preston e o coronel Marsh. O<br />

coronel usava um uniforme decora<strong>do</strong> com fitas em cores vivas e insígnias que<br />

indicavam sua patente. Após jurar sobre a Bíblia que diria apenas a verdade, ele<br />

passou a relatar uma série de mentiras deslavadas. Afirmou que tentara proteger<br />

o Sr. Hardie, mas que, como estávamos em muito maior número, teve me<strong>do</strong> de<br />

as mulheres se voltarem contra ele caso continuasse a fazer-lhes oposição.<br />

Levantei-me de um salto, por acreditar que o juiz precisava saber que o coronel

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