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de encontrar outro barco? Acredito que não.<br />
— Na verdade, havia outro barco salva-vidas por perto — retrucou o Sr.<br />
Reichmann. — O barco salva-vidas 14 quase colidira com aquele em que se<br />
encontrava minha cliente apenas poucas horas antes de o Sr. Hardie ser joga<strong>do</strong><br />
ao <strong>mar</strong>.<br />
Eu jamais pensara nisso. Devo creditar ao Sr. Reichmann e seus sócios a<br />
habilidade em apreender objetivamente o caso sob to<strong>do</strong>s os ângulos e nos<br />
mínimos detalhes. Tentei captar seu olhar para deixar claro o tamanho de minha<br />
gratidão, mas consegui apenas que meus olhos cruzassem com os <strong>do</strong> advoga<strong>do</strong><br />
de Hannah, que a to<strong>do</strong> instante virava o rosto oval lívi<strong>do</strong> em minha direção,<br />
estican<strong>do</strong> o pescoço compri<strong>do</strong> em um ângulo tão estranho que a cabeça parecia<br />
presa por uma <strong>do</strong>bradiça. Seu interesse era tão grande que cheguei a me<br />
perguntar o que Hannah teria conta<strong>do</strong> a ele sobre mim.<br />
— Além disso — prosseguiu o Sr. Reichmann —, sabemos que pelo menos dez<br />
barcos salva-vidas chegaram a ser lança<strong>do</strong>s ao <strong>mar</strong> com sucesso. O Sr. Hardie<br />
teria, portanto, uma chance, ainda que pequena, de ser salvo por um deles. <strong>No</strong><br />
primeiro caso, a probabilidade de encontrar outro pedaço de madeira era maior?<br />
E como avaliar as chances de cada uma das hipóteses de dentro de uma sala de<br />
audiências? O que queremos saber se resume ao seguinte: o único mo<strong>do</strong> de uma<br />
pessoa que se encontra em um barco salva-vidas superlota<strong>do</strong> evitar um veredito<br />
de culpada é decidir se to<strong>do</strong>s devem afundar ou sobreviver juntos? Ela não tem<br />
permissão para to<strong>mar</strong> uma iniciativa que salve alguém, muito menos a si<br />
mesma? E essa passividade não vai de encontro à natureza humana e ao instinto<br />
de sobrevivência?<br />
— Imagino que existam pessoas de caráter suficientemente nobre para<br />
aban<strong>do</strong>nar o barco salva-vidas por decisão própria — retrucou o promotor,<br />
empinan<strong>do</strong> o queixo pontu<strong>do</strong> com ar agressivo.<br />
— E apelar para voluntários seria aceitável? — perguntou o advoga<strong>do</strong> da Sra.<br />
Grant.<br />
— Seria aceitável apelar, acredito eu, mas não obrigar — explicou o<br />
procura<strong>do</strong>r. — Não pode haver qualquer tipo de pressão ou coerção.<br />
O juiz então perguntou se o simples pedi<strong>do</strong> de que alguém se voluntariasse não<br />
significaria uma coerção e se havia uma obrigação especial assumida entre um<br />
<strong>mar</strong>inheiro e um passageiro, e to<strong>do</strong>s concordaram que havia.<br />
— Entretanto, não existe tal obrigação de um passageiro para com outro —<br />
reforçou o advoga<strong>do</strong> da Sra. Grant.<br />
— Nem de parte <strong>do</strong>s passageiros para com a tripulação — acrescentou o Sr.<br />
Reichmann, em tom grave. — Mas insisto em sustentar que a pergunta deve ser<br />
colocada como “Alguns devem viver?”, não como “Alguns devem morrer?”. Se<br />
assumirmos que alguns ou to<strong>do</strong>s morrerão se nenhuma medida for tomada,<br />
alguma medida deve ser tomada para salvar alguns? Esta sim me parece ser a