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algum motivo, não a quisesse mais após nossa trágica experiência.<br />
— Nesse caso, você poderia trabalhar como governanta — consolei-a. —<br />
Assim teria muitos filhos, de certa maneira.<br />
Ela olhou-me com uma expressão estranha, enquanto uma pequena lágrima<br />
escorria por sua face salgada. Mais tarde, ela me perguntou se Henry e eu não<br />
queríamos filhos, e respondi que sim, claro. Mas eu queria um filho pelo mesmo<br />
motivo que uma rainha: para ter um herdeiro, não para me distrair.<br />
Falei para o Dr. Cole que eu tinha consciência de estar sen<strong>do</strong> indelicada, mas<br />
que Mary Ann me provocava e também que estávamos com os nervos à flor da<br />
pele, o que às vezes nos fazia dar voz a irritações que em circunstâncias normais<br />
teríamos reprimi<strong>do</strong>.<br />
— Que tipo de irritação a senhora costuma reprimir? — quis saber o Dr. Cole,<br />
e, por alguma razão, achei a pergunta extremamente irritante.<br />
— Creio que eu esteja irritada agora mesmo — respondi. — E se o senhor não<br />
tivesse pergunta<strong>do</strong> isso, eu teria reprimi<strong>do</strong> a vontade de dizer que o senhor me<br />
lembra meu pai, que bem ou mal conseguiu se manter enquanto seus sócios o<br />
apoiaram, mas que no final das contas não foi páreo para os esquemas calculistas<br />
deles.<br />
Não sei por que tu<strong>do</strong> isso, pois metade <strong>do</strong> que eu dizia era influenciada pelo<br />
fato de eu ver nossos encontros como um jogo, não como uma forma de me<br />
aprofundar nos mistérios de meu ego. <strong>No</strong> entanto, minhas consultas com o<br />
psiquiatra faziam meus dias passarem mais depressa, e eu sempre voltava<br />
renovada para a cela, satisfeita com a possibilidade de falar com alguém que não<br />
fosse Florence — ela agora começara a pensar que to<strong>do</strong> o sistema judicial<br />
criminal havia si<strong>do</strong> elabora<strong>do</strong> com o único propósito de destruí-la; às vezes<br />
murmurava coisas como “Lamento que você tenha se envolvi<strong>do</strong> em tu<strong>do</strong> isso,<br />
mas você entende, não é? Eles não recuarão por nada. Você viu bem como estão<br />
atrás de mim desde o início”.<br />
Um dia ela perguntou se eu tinha mata<strong>do</strong> alguém, e respondi que achava que<br />
sim. A maior parte <strong>do</strong> tempo eu a ignorava, mas havia dias em que ela grudava o<br />
rosto nas barras da cela e fica horas ali murmuran<strong>do</strong> coisas sobre os filhos, o<br />
<strong>mar</strong>i<strong>do</strong> ou o juiz encarrega<strong>do</strong> de seu caso; e vez ou outra alguma coisa que ela<br />
dizia despertava meu interesse. Eu acabara de voltar <strong>do</strong> banheiro, e quan<strong>do</strong> a<br />
carcereira fechou a porta da cela às minhas costas, pensei ter ouvi<strong>do</strong> Florence<br />
mencionar o nome <strong>do</strong> Dr. Cole. Na mesma hora comecei a prestar atenção. Por<br />
um momento me perguntei se devia responder ou não, e, em caso positivo, o que<br />
dizer. Por fim, falei: “Perdão? Disse algo?”, mas ela já mudara de assunto, agora<br />
falava sobre defesa por insanidade e transferência para um manicômio, por isso<br />
não ousei fazer outras perguntas, por me<strong>do</strong> de contar mais sobre mim <strong>do</strong> que<br />
queria que ela soubesse. Um calafrio percorreu meu corpo, e comecei a<br />
suspeitar de que Florence tivesse si<strong>do</strong> colocada na cela diante da minha para