No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

de pé no barco, sem a ajuda de ninguém, face a face com o Sr. Hardie, e não vi nele o menor resquício de humanidade. Depois, as engrenagens do tempo voltaram a funcionar. Não sei dizer o que eu estava pensando, nem se estava de fato pensando. Sei apenas que quaisquer perigos que tivéssemos enfrentado se transformaram em algo maior e mais ameaçador, e parecia caber a mim decidir — não o destino do Sr. Hardie, mas se o resto de nós sobreviveria. O rosto de Hannah era horrível de se ver, exangue à exceção do risco vermelho do corte, os olhos sem cor, seu cabelo como serpentes negras. Ela e a Sra. Grant agarraram o Sr. Hardie cada uma por um braço. Hannah gritou: — Grace, segure o pescoço deste maldito canalha! Segurei. Envolvi o pescoço magro de Hardie com as mãos. Estava gelado como um peixe, rijo e fibroso, como ossos descarnados. No instante em que agarrei minha presa, senti sua respiração em meu rosto. O cheiro parecia uma prova do que havia em seu interior: apenas morte e deterioração. Apertei-o com toda a força que consegui reunir; senti a traqueia se mexer sob meus dedos e o pomo de adão palpitar como um coração encanecido. — Mais força, minha querida — insistiu a Sra. Grant, com sua voz estranhamente reconfortante. Ela não tinha a raiva fria nem a histeria delirante da italiana que de novo cutucava o rosto de Hardie com o osso da asa de um pássaro. O Sr. Hardie tinha um olhar enlouquecido, e eu sentia medo de soltá-lo porque, se o fizesse, ele com certeza me mataria. Hannah estava a meu lado, alta e imponente, e Hardie parecia encolher-se diante dela. Senti que meus braços voltavam a ganhava força. Até hoje lembrome daquela sensação incrível, mesmo que não consiga reproduzir a força em si. Não sei como mantínhamos o equilíbrio, mesmo com o barco balançando violentamente. Não sei se era o vaivém das ondas ou nosso embate ali dentro que criava tamanha instabilidade, mas eu tinha a impressão de que as duas coisas eram manifestações da mesma força vital que precisa existir enquanto os seres humanos respirarem. O rosto espectral do Sr. Hardie aproximou-se do meu quando Hannah e eu o forçamos a ficar de pé. Eu sentia sua barba espetando meu rosto e seu hálito sobrepondo-se ao cheiro fétido dos pássaros em decomposição e a meu próprio fedor pútrido. As italianas ainda cantavam e gritavam às nossas costas, e havia alguém curvado sobre a figura prostrada — desmaiada — de Mary Ann, acariciando seu cabelo e beijando suas faces. Vi tudo isso, portanto devo ter me distraído de meu alvo por um instante, e foi só quando ouvi a Sra. Grant gritar meu nome que me virei, a tempo de evitar um golpe que com certeza teria me mandado como uma flecha para dentro do mar. — Chute as pernas dele! — gritou Hannah. Como se fôssemos uma só pessoa, chutamos ao mesmo tempo. Hardie

desabou em cima de nós, seu peso forçando nossos ombros. Ele me pareceu surpreendentemente leve, ou talvez eu fosse mais forte do que imaginava, embora a origem de minha força fosse inconstante: vinha em breves explosões, depois vacilava e sumia. Naquele momento, portanto, tive a chance e as condições de enfiar a mão dentro do casaco dele para tentar recuperar a caixa que eu julgava ainda estar em sua posse, mas, como mais tarde jurei diante de meus advogados, não a encontrei. E então, com um enorme esforço conjunto, jogamos no mar revolto a única pessoa entre nós que possuía algum conhecimento sobre barcos e correntes. Durante vários minutos o observamos. Ele debateu-se em desespero. Mais de uma vez submergiu e voltou à superfície, cuspindo água e insultos cada vez que reaparecia. Praguejou contra nós. Acho que as palavras que usou foram “Morram como cachorros!”, antes de gorgolejar e ser engolido pelo oceano. Mantivemos os olhos fixos no buraco formado na água até que uma onda enorme o desfez. A mesma onda ergueu nosso pequeno barco para a luz acinzentada do crepúsculo prematuro, mas nossos olhos continuaram fixos no oceano, possuídos por uma ânsia comum de compreender o que tínhamos feito, ou talvez de justificar nosso gesto ou até esquecê-lo; e poderíamos ter conseguido. Poderíamos ter nos virado para verificar como estava Mary Ann, para nos reunir às italianas, que agora cantavam uma espécie de ária ou hino, ou poderíamos ter comentado que o céu parecia um pouco mais brilhante a... leste? — seria ainda manhã? —, onde as nuvens agora abandonavam o cinza e assumiam formas douradas pelo sol, se o Sr. Hardie não tivesse reaparecido, agitando cabeça e braços na superfície, tão perto do barco que era possível ver a água sair de sua boca por entre as amareladas pedras sepulcrais de seus dentes. Havia muito ele deixara de ter uma aparência humana, mas agora assemelhava-se àquelas criaturas demoníacas descritas nos textos religiosos antigos com o propósito de assustar as crianças e assim fazê-las se comportar. Depois, graças a Deus, ele sumiu de vez; e então finalmente voltamos a olhar uns para os outros. E nesse momento, livres de um propósito comum, foi como se recuperássemos nossas personalidades individuais. A Sra. Grant reencontrou sua tradicional racionalidade prática; Hannah voltou a demonstrar afetada preocupação com os demais ocupantes do barco — afinal, acabáramos de matar uma pessoa por eles, isso não era uma prova de quanto eram importantes para nós? Mas eu não queria falar com ninguém nem pensar no que havíamos feito. Comecei então a recolher os restos dos pássaros mortos e a jogá-los para fora. Há outro momento que permanece gravado em minha mente. Foi logo depois de Hardie cair no mar, mas antes que reaparecesse para afundar de vez logo depois. Eu estava de pé junto à amurada, dividida entre a enérgica satisfação e o horror pelo nosso ato, os olhos fixos no espaço vazio que Hardie antes ocupara e onde ele ressurgiria um instante depois. Hannah continuava por perto, à minha

desabou em cima de nós, seu peso forçan<strong>do</strong> nossos ombros. Ele me pareceu<br />

surpreendentemente leve, ou talvez eu fosse mais forte <strong>do</strong> que imaginava,<br />

embora a origem de minha força fosse inconstante: vinha em breves explosões,<br />

depois vacilava e sumia. Naquele momento, portanto, tive a chance e as<br />

condições de enfiar a mão dentro <strong>do</strong> casaco dele para tentar recuperar a caixa<br />

que eu julgava ainda estar em sua posse, mas, como mais tarde jurei diante de<br />

meus advoga<strong>do</strong>s, não a encontrei. E então, com um enorme esforço conjunto,<br />

jogamos no <strong>mar</strong> revolto a única pessoa entre nós que possuía algum<br />

conhecimento sobre barcos e correntes.<br />

Durante vários minutos o observamos. Ele debateu-se em desespero. Mais de<br />

uma vez submergiu e voltou à superfície, cuspin<strong>do</strong> água e insultos cada vez que<br />

reaparecia. Praguejou contra nós. Acho que as palavras que usou foram<br />

“Morram como cachorros!”, antes de gorgolejar e ser engoli<strong>do</strong> pelo oceano.<br />

Mantivemos os olhos fixos no buraco forma<strong>do</strong> na água até que uma onda enorme<br />

o desfez. A mesma onda ergueu nosso pequeno barco para a luz acinzentada <strong>do</strong><br />

crepúsculo prematuro, mas nossos olhos continuaram fixos no oceano, possuí<strong>do</strong>s<br />

por uma ânsia comum de compreender o que tínhamos feito, ou talvez de<br />

justificar nosso gesto ou até esquecê-lo; e poderíamos ter consegui<strong>do</strong>.<br />

Poderíamos ter nos vira<strong>do</strong> para verificar como estava Mary Ann, para nos reunir<br />

às italianas, que agora cantavam uma espécie de ária ou hino, ou poderíamos ter<br />

comenta<strong>do</strong> que o céu parecia um pouco mais brilhante a... leste? — seria ainda<br />

manhã? —, onde as nuvens agora aban<strong>do</strong>navam o cinza e assumiam formas<br />

<strong>do</strong>uradas pelo sol, se o Sr. Hardie não tivesse reapareci<strong>do</strong>, agitan<strong>do</strong> cabeça e<br />

braços na superfície, tão perto <strong>do</strong> barco que era possível ver a água sair de sua<br />

boca por entre as a<strong>mar</strong>eladas pedras sepulcrais de seus dentes. Havia muito ele<br />

deixara de ter uma aparência humana, mas agora assemelhava-se àquelas<br />

criaturas demoníacas descritas nos textos religiosos antigos com o propósito de<br />

assustar as crianças e assim fazê-las se comportar.<br />

Depois, graças a Deus, ele sumiu de vez; e então finalmente voltamos a olhar<br />

uns para os outros. E nesse momento, livres de um propósito comum, foi como se<br />

recuperássemos nossas personalidades individuais. A Sra. Grant reencontrou sua<br />

tradicional racionalidade prática; Hannah voltou a demonstrar afetada<br />

preocupação com os demais ocupantes <strong>do</strong> barco — afinal, acabáramos de matar<br />

uma pessoa por eles, isso não era uma prova de quanto eram importantes para<br />

nós? Mas eu não queria falar com ninguém nem pensar no que havíamos feito.<br />

Comecei então a recolher os restos <strong>do</strong>s pássaros mortos e a jogá-los para fora.<br />

Há outro momento que permanece grava<strong>do</strong> em minha mente. Foi logo depois<br />

de Hardie cair no <strong>mar</strong>, mas antes que reaparecesse para afundar de vez logo<br />

depois. Eu estava de pé junto à amurada, dividida entre a enérgica satisfação e o<br />

horror pelo nosso ato, os olhos fixos no espaço vazio que Hardie antes ocupara e<br />

onde ele ressurgiria um instante depois. Hannah continuava por perto, à minha

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