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No coracao do mar - Charlotte Rogan

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DIA QUATORZE<br />

To<strong>do</strong>s estavam estranhamente calmos quan<strong>do</strong>, com o dia já alto, a Sra. Grant<br />

pediu uma votação para determinar se o Sr. Hardie deveria se jogar <strong>do</strong> barco. Só<br />

posso explicar tal equanimidade pela relação de confiança que a Sra. Grant<br />

estabelecera com os outros passageiros, como descrevi antes, ou talvez pelo fato<br />

de o dia estar tranquilo, cinzento e sem vento. Apenas Anya Robeson pareceu um<br />

pouco chocada, como se só naquele momento tomasse consciência <strong>do</strong> que estava<br />

acontecen<strong>do</strong> a seu re<strong>do</strong>r.<br />

— E o outro barco salva-vidas? — perguntou ela, ten<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong> de cobrir os<br />

ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> filho com as mãos. — Se não o quer neste barco, ele não pode ser<br />

transferi<strong>do</strong> para o outro?<br />

Quan<strong>do</strong> relembro os fatos, os esforços de Any a para tentar conseguir um<br />

meio-termo me parecem louváveis, mas na hora a sugestão pareceu totalmente<br />

fora da realidade, quase oriunda de uma mente perturbada. Em primeiro lugar, o<br />

outro barco não estava visível, de mo<strong>do</strong> que não havia uma possibilidade real de<br />

pedir ajuda. Em segun<strong>do</strong>, acredito que estávamos tão acostuma<strong>do</strong>s a nos ver<br />

como seres isola<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong> tipo de sociedade humana, que a ideia de receber<br />

socorro de fora de nosso pequeno barco havia muito deixara de passar por nossa<br />

cabeça. A Sra. Grant respondeu a Anya amavelmente. Lembro-me de seu tom,<br />

mas não das palavras exatas.<br />

— Quem for favorável a sua morte diga “sim” — acrescentou Hannah, para<br />

que não houvesse dúvida quanto ao objetivo da votação.<br />

Mary Ann, no entanto, olhou-me com olhos arregala<strong>do</strong>s e perguntou:<br />

— O quê? O que ela quer dizer com isso?<br />

Cada vez mais eu me mostrava impie<strong>do</strong>sa com Mary Ann, que parecia<br />

sempre supor que seria natural que to<strong>do</strong>s cuidassem dela, apesar de suas<br />

acusações e de sua instabilidade emocional. Embora desde o início sua tímida<br />

indecisão tivesse me encoraja<strong>do</strong>, não me lembro de ela ter me ofereci<strong>do</strong> alguma<br />

coisa, apenas de ter toma<strong>do</strong>. Se a situação fosse ruim, eu não a protegeria da<br />

realidade. Não era de minha natureza procurar metáforas que ela pudesse<br />

entender ou aceitar, como Hannah teria feito. Eu considerava suas perguntas<br />

tolas e desnecessárias, mas como ela estava desesperada para acreditar que<br />

algum de nós tinha respostas, agarrava-se a cada palavra que eu dizia. Muitas<br />

vezes, logo após conseguir atrair minha atenção, ela já não tinha o que dizer, ou<br />

esperava por uma resposta sem nem ter formula<strong>do</strong> a pergunta. Eu também tinha<br />

fome de certezas, e algumas vezes era apenas o desespero implacável de Mary<br />

Ann que refreava minha compulsão a agir <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> infantil que ela. Se o<br />

Sr. Hardie dissesse “O vento virou para o oeste”, ela me perguntava “Oeste? Ele<br />

falou oeste?”.

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