No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

Ann percebeu que eu os observava. Lembrei-me da noite anterior, quando ela fizera questão de sentar-se junto à amurada do barco e insistira para que eu a acompanhasse, e minha interpretação daqueles fatos começou a mudar. Passei a considerar a possibilidade de que a intenção de Mary Ann fosse na verdade falar em particular com o Sr. Preston, não tendo nada a ver comigo ou com Hannah, embora eu temesse que minha imaginação estivesse correndo solta. Mas os ocupantes do barco começavam a se agitar, e os acontecimentos dos dias seguintes afastariam de minha mente toda aquela questão banal de descobrir as motivações de Mary Ann.

DIA TREZE No dia seguinte à chuva de pássaros, um dos outros barcos salva-vidas reapareceu a distância. Não foi possível saber se era um dos dois que já havíamos visto ou outro, embora Hardie parecesse ter certeza da primeira opção. O Sr. Hoffman estava encarregado de vigiar o quadrante nordeste do oceano e foi o primeiro a avistar o barco, que logo desapareceu de seu campo de visão, por isso durante algum tempo contamos apenas com sua palavra. Naquele momento, a notícia foi recebida como fruto de uma alucinação e não provocou emoção imediata. Houve, claro, uma espécie de sonho coletivo, mas nada que indicasse que as pessoas de fato acreditavam naquilo. O buraco no barco nos deixara em uma situação perigosa, e ainda havia o medo não declarado de, caso o mau tempo voltasse, precisarmos aliviar ainda mais o peso. — Não dá para fazer um remendo, Sr. Hardie? — perguntou a Sra. Grant assim que o sol apareceu no horizonte. — Tenho certeza de que o senhor consegue encontrar uma solução! Entretanto, por mais que ele tentasse vedar o buraco com cobertores, o fluxo de água não podia ser interrompido. — Não se trata de um simples furo. Veja com os próprios olhos como a madeira rebentou. De tempos em tempos, porém, a Sra. Grant voltava à carga: — É claro que o senhor consegue pensar em uma solução. Um homem com sua experiência! Por fim o Sr. Hardie perdeu a paciência e gritou: — Faça a senhora mesma o remendo, então! Dê um jeito nessa droga toda! Fiquei chocada ao vê-lo perder o controle diante de uma simples provocação, sobretudo porque tínhamos nos alimentado no dia anterior e ainda havia pedaços de carne secando sobre a cobertura de lona do barco para o café da manhã. Tentei dirigir para Hannah um olhar inquiridor, mas ela sem dúvida estava mergulhada nos próprios pensamentos e parecia insensível ao que acontecia ao redor, até a Sra. Grant pedir-lhe que distribuísse dois pedaços da carne de pássaro para cada um. Na maior parte do tempo, era o Sr. Hardie o encarregado do tonel de água, mas dessa vez ele murmurou algumas palavras para o Sr. Hoffman, que assumiu a função de fazer a caneca circular. Com tão pouco líquido para umedecer nossas bocas, ficava difícil engolir a carne, e me perguntei se teria valido a pena secá-la. Vi quando Isabelle mergulhou seu pedaço no oceano, mas era evidente que, embora a carne molhada fosse mais fácil de mastigar e engolir, o sal adicional só serviria para ajudar a retirar o precioso estoque de água de seu corpo e aumentar a sede.

DIA TREZE<br />

<strong>No</strong> dia seguinte à chuva de pássaros, um <strong>do</strong>s outros barcos salva-vidas<br />

reapareceu a distância. Não foi possível saber se era um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is que já<br />

havíamos visto ou outro, embora Hardie parecesse ter certeza da primeira opção.<br />

O Sr. Hoffman estava encarrega<strong>do</strong> de vigiar o quadrante nordeste <strong>do</strong> oceano e<br />

foi o primeiro a avistar o barco, que logo desapareceu de seu campo de visão,<br />

por isso durante algum tempo contamos apenas com sua palavra. Naquele<br />

momento, a notícia foi recebida como fruto de uma alucinação e não provocou<br />

emoção imediata. Houve, claro, uma espécie de sonho coletivo, mas nada que<br />

indicasse que as pessoas de fato acreditavam naquilo.<br />

O buraco no barco nos deixara em uma situação perigosa, e ainda havia o<br />

me<strong>do</strong> não declara<strong>do</strong> de, caso o mau tempo voltasse, precisarmos aliviar ainda<br />

mais o peso.<br />

— Não dá para fazer um remen<strong>do</strong>, Sr. Hardie? — perguntou a Sra. Grant<br />

assim que o sol apareceu no horizonte. — Tenho certeza de que o senhor<br />

consegue encontrar uma solução!<br />

Entretanto, por mais que ele tentasse vedar o buraco com cobertores, o fluxo<br />

de água não podia ser interrompi<strong>do</strong>.<br />

— Não se trata de um simples furo. Veja com os próprios olhos como a<br />

madeira rebentou.<br />

De tempos em tempos, porém, a Sra. Grant voltava à carga:<br />

— É claro que o senhor consegue pensar em uma solução. Um homem com<br />

sua experiência!<br />

Por fim o Sr. Hardie perdeu a paciência e gritou:<br />

— Faça a senhora mesma o remen<strong>do</strong>, então! Dê um jeito nessa droga toda!<br />

Fiquei chocada ao vê-lo perder o controle diante de uma simples provocação,<br />

sobretu<strong>do</strong> porque tínhamos nos alimenta<strong>do</strong> no dia anterior e ainda havia pedaços<br />

de carne secan<strong>do</strong> sobre a cobertura de lona <strong>do</strong> barco para o café da manhã.<br />

Tentei dirigir para Hannah um olhar inquiri<strong>do</strong>r, mas ela sem dúvida estava<br />

mergulhada nos próprios pensamentos e parecia insensível ao que acontecia ao<br />

re<strong>do</strong>r, até a Sra. Grant pedir-lhe que distribuísse <strong>do</strong>is pedaços da carne de pássaro<br />

para cada um. Na maior parte <strong>do</strong> tempo, era o Sr. Hardie o encarrega<strong>do</strong> <strong>do</strong> tonel<br />

de água, mas dessa vez ele murmurou algumas palavras para o Sr. Hoffman, que<br />

assumiu a função de fazer a caneca circular. Com tão pouco líqui<strong>do</strong> para<br />

umedecer nossas bocas, ficava difícil engolir a carne, e me perguntei se teria<br />

vali<strong>do</strong> a pena secá-la. Vi quan<strong>do</strong> Isabelle mergulhou seu pedaço no oceano, mas<br />

era evidente que, embora a carne molhada fosse mais fácil de mastigar e<br />

engolir, o sal adicional só serviria para ajudar a retirar o precioso estoque de<br />

água de seu corpo e aumentar a sede.

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