You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Àquela altura, metade <strong>do</strong> sol já desaparecera no horizonte; logo seria noite.<br />
— Daqui a pouco já não vamos conseguir enxergar nada. Um espelho tem<br />
muito pouca utilidade no escuro.<br />
— É por isso que precisamos nos apressar — retrucou Mary Ann.<br />
Imaginei que talvez ela estivesse com me<strong>do</strong> de já estar tão escuro quan<strong>do</strong><br />
chegasse nossa vez que Hannah acabasse não conseguin<strong>do</strong> limpá-la direito.<br />
Também me ocorreu que Mary Ann estivesse com <strong>do</strong>res no estômago e só<br />
quisesse uma desculpa para sentar-se junto à amurada, já se preparan<strong>do</strong> para<br />
quan<strong>do</strong> precisasse vomitar. Só meia hora depois, quan<strong>do</strong> Hannah aproximou-se e<br />
perguntou se queríamos ajuda para limpar o rosto, descobri o verdadeiro motivo<br />
para a insistência de Mary Ann. A razão que surgiu em minha cabeça quan<strong>do</strong><br />
ergui os olhos para Hannah e a ouvi dizer “Muito bem. Vejo que se viraram<br />
sozinhas” foi ciúme. Mary Ann percebera os olhares que Hannah e eu<br />
trocáramos, mesmo ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> tão poucos, e tentava impedir que tivéssemos<br />
mais contato. Por um momento fui tomada pelo ressentimento por ter si<strong>do</strong><br />
manipulada dessa forma.<br />
É óbvio que eu podia estar enganada. Ao procurar uma explicação racional<br />
para esse gesto isola<strong>do</strong> de Mary Ann, eu ignorava as incontáveis vezes em que<br />
seus atos desafiaram explicações de qualquer tipo e só podiam ser interpreta<strong>do</strong>s<br />
como o comportamento de alguém sofren<strong>do</strong> de profun<strong>do</strong> e constante abalo<br />
emocional. Eu mesma tinha dificuldade de racionalizar cada um <strong>do</strong>s meus atos a<br />
bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> barco salva-vidas, por isso seria injusto de minha parte exigir ainda<br />
mais que isso de uma pessoa cujo equilíbrio psicológico era claramente precário.<br />
De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, foi isso que pensei no momento, e deixo aqui o registro por uma<br />
questão de honestidade. Também relato o fato para mostrar que, durante as<br />
intermináveis horas que passamos quase sem ocupação, nossas mentes<br />
buscavam encontrar um senti<strong>do</strong> para tu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> como buscamos dar<br />
um senti<strong>do</strong> a cada situação em que nos vemos.<br />
Mais tarde a lua ergueu-se e inun<strong>do</strong>u o barco com sua luz fria. Ao lembrar que<br />
os povos antigos veneravam a lua porque não conseguiam explicá-la, fiz, sem<br />
nem refletir, uma pequena prece para que ela nos salvasse. Por um momento<br />
me perguntei se as orações só eram ouvidas em noites de lua cheia e não na<br />
minguante, como que eu via então no céu. Depois fiz uma prece por Henry,<br />
envergonhada por mantê-lo tão distante de meus pensamentos nos últimos<br />
tempos.<br />
Àquela altura da noite, tenho quase certeza de que Mary Ann continuava<br />
sentada a meu la<strong>do</strong> junto à amurada, mas, como isso não era algo com que eu<br />
me preocupasse, não posso garantir. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o sol trouxe a manhã<br />
seguinte, ela voltara para seu lugar no banco transversal, portanto estava ao la<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> Sr. Preston, que ainda ocupava meu antigo assento. Ambos estavam<br />
acorda<strong>do</strong>s e pareciam cochichar alguma coisa, mas se afastaram quan<strong>do</strong> Mary