No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

DIA DOZE Em nosso décimo segundo dia no barco, um bando de pássaros caiu do céu de maneira inexplicável. — É sinal de que vamos sobreviver! — exultou a Sra. Hewitt. — É sinal de que vamos morrer! — gritou Mary Ann, que nos últimos dias era tomada pelo pânico por qualquer motivo. — Claro que vamos morrer — disse Hardie, rindo, em resposta aos questionamentos surgidos de todos os lados do barco. — Só não sabemos quando. — É um presente de Deus — afirmou Isabelle, séria e com seu eterno ar de devota; e, ao ouvir isso, Maria fez o sinal da cruz. No mesmo instante, o Sr. Hoffman e o Sr. Nilsson pegaram seus remos e começaram a puxar os pássaros para perto do barco, de forma que pudéssemos pegá-los. O promotor disse ao Sr. Reichmann que pretendia usar esse incidente no julgamento como prova de que não precisávamos matar uns aos outros, pois quem poderia saber se Deus não nos mandaria uma nova chuva de pássaros? “Como seria possível contar com mais pássaros?”, perguntei a mim mesma, incrédula, já que nenhum de nós havia escutado uma história dessas antes. Passamos o dia inteiro tentando descobrir de qual espécie eram aquelas aves. Para Hannah, que assumira as funções do diácono de abençoar a comida e falar sobre Deus e a Providência, os pássaros, ainda que apenas sob um ponto de vista simbólico, eram pombas, no sentido em que pássaros e mensageiros são sempre pombas ou falcões. E como estávamos todos loucos para acreditar que nos aproximávamos de terra firme, concordamos tacitamente em dizer que eram pombas, ao mesmo tempo em que ríamos, arrancávamos suas penas amareladas, devorávamos a carne crua e roíamos os ossos frágeis. Foi Hardie quem acabou com nossa alegria: — Não é por estarmos perto da costa que esses pássaros caíram em nosso colo, é por estarmos longe da costa que eles caíram mortos. Total exaustão, esse foi o motivo para despencarem sobre nós. Nós o ouvimos; nós o compreendemos, até, mas já sabíamos que estávamos no meio do oceano, longe da costa e de tudo que nos era familiar. Não queríamos ser lembrados disso, não no momento de tão grande bênção. Depois de nos fartarmos, a Sra. Grant sugeriu que deixássemos secar ao sol uma parte da carne para termos o que comer no dia seguinte. — É pouco provável que um milagre desses aconteça duas vezes — argumentou ela. Não perdemos um minuto sequer: logo estávamos cobertos de penas e vísceras, como funcionários de um abatedouro. A Sra. McCain, que desde o

início mostrara um ar severo e parecia não ter senso de humor, surpreendeu a todos ao dizer: — Ah, se minha irmã pudesse me ver agora! Rimos muito ao ouvir uma pessoa tão sisuda fazer um comentário que só podia ser interpretado como uma brincadeira. A carne dos pássaros tinha gosto de óleo e também um pouquinho de peixe. Eu fazia de mim mesma uma pálida imagem de predadora, até que olhei ao redor e percebi que éramos todos predadores e que sempre tínhamos sido. No entanto, o que não me saía da cabeça era o que o Sr. Preston me dissera sobre o tempo de sobrevivência do corpo humano sem alimento. Recebêramos a oportunidade de adiar a morte por inanição em mais um ou dois dias, o que me parecia a maior das bênçãos que poderíamos pedir. E quando penso naquele dia, percebo que havíamos renunciado à esperança de sermos resgatados e começáramos a pensar que nossa única chance de salvação seria resgatar a nós mesmos. Eu não era a única a sentir uma estranha afinidade com tudo que me rodeava: o céu, o oceano, o barco repleto de companheiros que tinham agora sangue escorrendo pelo queixo e os lábios com fissuras dolorosas que rachavam e sangravam toda vez que arriscavam sorrir.

DIA DOZE<br />

Em nosso décimo segun<strong>do</strong> dia no barco, um ban<strong>do</strong> de pássaros caiu <strong>do</strong> céu de<br />

maneira inexplicável.<br />

— É sinal de que vamos sobreviver! — exultou a Sra. Hewitt.<br />

— É sinal de que vamos morrer! — gritou Mary Ann, que nos últimos dias era<br />

tomada pelo pânico por qualquer motivo.<br />

— Claro que vamos morrer — disse Hardie, rin<strong>do</strong>, em resposta aos<br />

questionamentos surgi<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> barco. — Só não sabemos quan<strong>do</strong>.<br />

— É um presente de Deus — afirmou Isabelle, séria e com seu eterno ar de<br />

devota; e, ao ouvir isso, Maria fez o sinal da cruz.<br />

<strong>No</strong> mesmo instante, o Sr. Hoffman e o Sr. Nilsson pegaram seus remos e<br />

começaram a puxar os pássaros para perto <strong>do</strong> barco, de forma que pudéssemos<br />

pegá-los.<br />

O promotor disse ao Sr. Reichmann que pretendia usar esse incidente no<br />

julgamento como prova de que não precisávamos matar uns aos outros, pois<br />

quem poderia saber se Deus não nos mandaria uma nova chuva de pássaros?<br />

“Como seria possível contar com mais pássaros?”, perguntei a mim mesma,<br />

incrédula, já que nenhum de nós havia escuta<strong>do</strong> uma história dessas antes.<br />

Passamos o dia inteiro tentan<strong>do</strong> descobrir de qual espécie eram aquelas aves.<br />

Para Hannah, que assumira as funções <strong>do</strong> diácono de abençoar a comida e falar<br />

sobre Deus e a Providência, os pássaros, ainda que apenas sob um ponto de vista<br />

simbólico, eram pombas, no senti<strong>do</strong> em que pássaros e mensageiros são sempre<br />

pombas ou falcões. E como estávamos to<strong>do</strong>s loucos para acreditar que nos<br />

aproximávamos de terra firme, concordamos tacitamente em dizer que eram<br />

pombas, ao mesmo tempo em que ríamos, arrancávamos suas penas<br />

a<strong>mar</strong>eladas, devorávamos a carne crua e roíamos os ossos frágeis.<br />

Foi Hardie quem acabou com nossa alegria:<br />

— Não é por estarmos perto da costa que esses pássaros caíram em nosso<br />

colo, é por estarmos longe da costa que eles caíram mortos. Total exaustão, esse<br />

foi o motivo para despencarem sobre nós.<br />

Nós o ouvimos; nós o compreendemos, até, mas já sabíamos que estávamos<br />

no meio <strong>do</strong> oceano, longe da costa e de tu<strong>do</strong> que nos era familiar. Não queríamos<br />

ser lembra<strong>do</strong>s disso, não no momento de tão grande bênção. Depois de nos<br />

fartarmos, a Sra. Grant sugeriu que deixássemos secar ao sol uma parte da carne<br />

para termos o que comer no dia seguinte.<br />

— É pouco provável que um milagre desses aconteça duas vezes —<br />

argumentou ela.<br />

Não perdemos um minuto sequer: logo estávamos cobertos de penas e<br />

vísceras, como funcionários de um abate<strong>do</strong>uro. A Sra. McCain, que desde o

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!