No coracao do mar - Charlotte Rogan

30.05.2016 Views

da vela, o que nos parecera uma boa ideia, ainda que o barco estivesse lotado demais para que essa fosse uma opção viável. Depois, criticara em voz alta a ideia do sorteio, sem, no entanto, a veemência necessária para impedir que se realizasse. Embora a morte dos homens tenha beneficiado a todos, foi a Sra. Grant quem emergiu do incidente no patamar mais alto de superioridade moral. Enquanto Hardie procurava algum peixe, seus ombros ficavam todos curvados, o que acentuava seu aspecto animal. Seus olhos estavam fundos, e de vez em quando ele nos encarava como se tivesse uma leve e velada suspeita. Por instinto, eu sabia que ele não tinha mais certeza da própria autoridade. Assim como todos os outros, estava fisicamente enfraquecido e comunicava suas decisões, antes tão inspiradoras de coragem, com muito menos convicção. Cada vez mais as mulheres passaram a pedir a opinião da Sra. Grant, como antes faziam com o Sr. Hardie, e uma vez, quando ele caiu em um sono profundo após uma noite inteira sem descanso, a Sra. Grant, sem qualquer cerimônia, foi até os tonéis de água e espiou dentro. — Há menos do que eu esperava — declarou ela em resposta às nossas perguntas, e em seguida sussurrou alguma coisa no ouvido de Hannah, cujos olhos se estreitaram como os de um gato. — Ele acha que somos incapazes de entender as coisas — reclamou Hannah, e quando Hardie acordou, ela perguntou-lhe de pronto quanto de água havia nos tonéis. — O suficiente para pelo menos quatro dias — respondeu ele, e presumimos que fosse mentira, pois a Sra. Grant acabara de inspecionar ela mesma os recipientes. — Não minta para nós — retrucou Greta. — Não somos crianças! Hardie ficou surpreso, mas sustentou a estimativa. — Abra os tonéis e mostre a água, então — insistiu Hannah. — Isto não é uma democracia — retrucou ele, e voltou a medir o ângulo do sol. O vento era agora apenas uma brisa regular, e navegávamos a uma velocidade boa, mas o incidente da água e o erro de direção durante a manhã tinham afetado seriamente a autoridade do Sr. Hardie. E, com três homens a menos, ele perdera importantes aliados naturais. Se tivesse nos explicado tudo em termos claros, talvez conseguisse recuperar sua posição, mas o modo grosseiro como discorria sobre vento aparente versus vento verdadeiro, ausência de bússolas e cronômetros e pessoas que possuíam muito dinheiro e pouco bom senso indicava certa desordem mental. A nosso entender, a pessoa sabia ou não sabia navegar. Não queríamos ouvir preleções sobre distúrbios atmosféricos, correntes dominantes, mudanças do vento ou casos de força maior. Naquela noite, a Sra. Grant e Hannah — seguidas de Mary Ann, como uma sombra — foram até os fundos do barco e de novo pediram que os tonéis de água

fossem abertos para que pudéssemos avaliar nós mesmos a gravidade da situação. Mais uma vez o Sr. Hardie disse não. Eu só conseguia ver seu rosto de relance, porque as três mulheres bloqueavam minha visão. Talvez por causa da má alimentação ou pela exposição às forças da natureza, meus sentidos falhavam às vezes, de modo que foi muito difícil entender com exatidão o que estava acontecendo, embora alguns detalhes se encaixem quando penso nos fatos ocorridos durante aqueles dias. Por um lado, eu queria acreditar em Hardie quando ele dizia que havia água suficiente para o futuro imediato, um período que encolhera para não mais que um ou dois dias, pois eu tinha certeza de que estaríamos todos mortos depois disso. Por outro, a verdade me interessava sob um ponto de vista intelectual. Eu tinha consciência, contudo, de me sentir aborrecida com a Sra. Grant e com Hannah por introduzirem uma nova tensão no barco, e também com o Sr. Hardie, por todas as mentiras que talvez nos tivesse contado ou pelos erros que talvez tivesse cometido. Acima de tudo, porém, eu não queria perceber o medo que em breves momentos se notava nos olhos do Sr. Hardie. Não queria ver exposto qualquer sinal de fraqueza, já que depositara nele minhas esperanças de sobrevivência. E eu sentia em muitos outros a mesma relutância a qualquer tipo de confronto. A Sra. Grant talvez até estivesse certa em suas exigências, mas nós nos agarrávamos às nossas ilusões, ou pelo menos ao que restava delas.

da vela, o que nos parecera uma boa ideia, ainda que o barco estivesse lota<strong>do</strong><br />

demais para que essa fosse uma opção viável. Depois, criticara em voz alta a<br />

ideia <strong>do</strong> sorteio, sem, no entanto, a veemência necessária para impedir que se<br />

realizasse. Embora a morte <strong>do</strong>s homens tenha beneficia<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s, foi a Sra.<br />

Grant quem emergiu <strong>do</strong> incidente no pata<strong>mar</strong> mais alto de superioridade moral.<br />

Enquanto Hardie procurava algum peixe, seus ombros ficavam to<strong>do</strong>s<br />

curva<strong>do</strong>s, o que acentuava seu aspecto animal. Seus olhos estavam fun<strong>do</strong>s, e de<br />

vez em quan<strong>do</strong> ele nos encarava como se tivesse uma leve e velada suspeita. Por<br />

instinto, eu sabia que ele não tinha mais certeza da própria autoridade. Assim<br />

como to<strong>do</strong>s os outros, estava fisicamente enfraqueci<strong>do</strong> e comunicava suas<br />

decisões, antes tão inspira<strong>do</strong>ras de coragem, com muito menos convicção. Cada<br />

vez mais as mulheres passaram a pedir a opinião da Sra. Grant, como antes<br />

faziam com o Sr. Hardie, e uma vez, quan<strong>do</strong> ele caiu em um sono profun<strong>do</strong> após<br />

uma noite inteira sem descanso, a Sra. Grant, sem qualquer cerimônia, foi até os<br />

tonéis de água e espiou dentro.<br />

— Há menos <strong>do</strong> que eu esperava — declarou ela em resposta às nossas<br />

perguntas, e em seguida sussurrou alguma coisa no ouvi<strong>do</strong> de Hannah, cujos<br />

olhos se estreitaram como os de um gato.<br />

— Ele acha que somos incapazes de entender as coisas — reclamou Hannah,<br />

e quan<strong>do</strong> Hardie acor<strong>do</strong>u, ela perguntou-lhe de pronto quanto de água havia nos<br />

tonéis.<br />

— O suficiente para pelo menos quatro dias — respondeu ele, e presumimos<br />

que fosse mentira, pois a Sra. Grant acabara de inspecionar ela mesma os<br />

recipientes.<br />

— Não minta para nós — retrucou Greta. — Não somos crianças!<br />

Hardie ficou surpreso, mas sustentou a estimativa.<br />

— Abra os tonéis e mostre a água, então — insistiu Hannah.<br />

— Isto não é uma democracia — retrucou ele, e voltou a medir o ângulo <strong>do</strong><br />

sol.<br />

O vento era agora apenas uma brisa regular, e navegávamos a uma<br />

velocidade boa, mas o incidente da água e o erro de direção durante a manhã<br />

tinham afeta<strong>do</strong> seriamente a autoridade <strong>do</strong> Sr. Hardie. E, com três homens a<br />

menos, ele perdera importantes alia<strong>do</strong>s naturais. Se tivesse nos explica<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> em<br />

termos claros, talvez conseguisse recuperar sua posição, mas o mo<strong>do</strong> grosseiro<br />

como discorria sobre vento aparente versus vento verdadeiro, ausência de<br />

bússolas e cronômetros e pessoas que possuíam muito dinheiro e pouco bom<br />

senso indicava certa desordem mental. A nosso entender, a pessoa sabia ou não<br />

sabia navegar. Não queríamos ouvir preleções sobre distúrbios atmosféricos,<br />

correntes <strong>do</strong>minantes, mudanças <strong>do</strong> vento ou casos de força maior.<br />

Naquela noite, a Sra. Grant e Hannah — seguidas de Mary Ann, como uma<br />

sombra — foram até os fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> barco e de novo pediram que os tonéis de água

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