Meditações - PSB

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5. Nunca serás célebre pela tua sagacidade. Seja; contudo há uma série deoutras qualidades de que não poderás dizer «Não tenho tendência para isso».Cultiva-as, pois, porque elas estão totalmente ao teu alcance: a sinceridade, porexemplo, e a dignidade; o zelo e a sobriedade. Evita resmungar; sê sóbrio,discreto e franco; sê moderado nos modos e nas palavras; comporta-te comautoridade. Repara quantas qualidades há que podiam já ser tuas. Não podesalegar incapacidade ou inaptidão inata para elas; e contudo preferes aindaarrastar-te num plano menos sublime. Além disso, será a falta de dons naturaisque precisa daqueles acessos de queixume, parcimónia e lisonja bajuladora, deinvectivas contra a tua falta de saúde, de servilismo e jactância e das contínuasmudanças de humor? Certamente que não; podias ter-te visto livre de todos eleshá muito tempo, e ter ficado imputável de nada mais do que uma certa lentidão eobtusidade de compreensão — e mesmo esta, podes corrigi-la com a prática,desde que não a menosprezes ou tenhas prazer no teu próprio embotamento.6. Há pessoas que, se te prestam um serviço, não hesitam em reclamar o seucrédito. Outras que, embora não dispostas a ir tão longe, te considerarão,contudo, como seu devedor e nunca esquecerão o que fizeram. Mas há tambémaqueles de quem se poderá quase dizer que não têm consciência nenhuma doque fizeram, como a videira que produz um cacho de uvas e depois, uma vezcedido o seu fruto, não espera mais agradecimentos do que o cavalo queacabou a corrida, ou o cão que descobriu a caça, ou a abelha que guardou oseu mel. Como eles, o homem que cometeu uma boa acção não o proclama,antes passa logo para uma outra, como a videira logo enceta o processo decriação de novo cacho de uvas.«Então, de acordo contigo, devemos comparar-nos com as coisas que ageminconscientemente?» Exactamente; contudo, devemos fazê-lo conscientemente;porque, como diz o ditado, «a consciência de que as suas acções são sociais éa marca de um ser social». «Mas também o é, seguramente, o desejo de que aprópria sociedade tenha consciência disso?» É verdade, sem dúvida; contudo, tunão percebes o significado do aforismo, e portanto colocas-te dentro da mesmaclasse das pessoas que acabei de descrever e que, da mesma maneira, sãolevadas por um raciocínio enganador. Apreende o verdadeiro significado doditado, e nunca terás de temer que ele te traia, levando-te a omitir qualquerdever social.7. Os atenienses rezam, «Faz chover, chover, querido Zeus, sobre os campos eplanícies de Atenas». As orações, ou não deviam ser ditas, ou então deviam sertão simples como esta.8. Assim como nós dizemos, «Esculápio 30 prescrevia exercícios a cavalo, oubanhos frios, ou andar a pé», também a Natureza-Mundo prescreve a doença,as mutilações, as perdas, ou quaisquer outras deficiências. No primeiro caso,prescrever significava ordenar um tratamento específico no interesse da saúdedo paciente; da mesma maneira, no segundo caso, são-nos prescritas certas— 58 —

ocorrências no interesse do nosso destino. Podem, de facto, dizer-nos que nos“enquadremos” nestas desgraças no mesmo sentido em que os pedreiros dizemque as pedras quadradas das paredes ou as pirâmides se “enquadram” umasnas outras quando estão a ser ajustadas para constituírem um todo unificado.Esta integração mútua é um princípio universal. Assim como uma miríade decorpos se juntam para formar o Corpo único que é o mundo, também umamiríade de causas se combinam para formar uma única Causa que é o destino.Mesmo as pessoas vulgares compreendem isto quando dizem, «Calhou-lhe aele». Calhou, de facto; isto é, foi-lhe destinado. Aceitemos tais coisas, portanto,como aceitamos as prescrições de Esculápio; porque estas também têm muitasvezes um sabor amargo, e contudo nós engolimo-las de bom grado naesperança de ter saúde. A execução e o cumprimento das leis da Naturezadevem ser encarados da mesma maneira que encaramos a nossa saúde física:mesmo que aquilo que te acontece seja intragável, recebe-o sempre de bomgrado, porque isso concorre para a saúde do universo, e mesmo para o bemestare bem-fazer do próprio Zeus. Se isso não fosse para benefício do todo, elenunca o teria feito acontecer a um indivíduo. Não é próprio da Natureza provocaralguma coisa naquele que está sob o seu governo que não seja especificamentedestinado ao seu bem. Há portanto duas razões por que tu deves aceitar de bomgrado o que te acontece: primeiro, como te acontece a ti, foi-te prescrito a ti, ediz-te respeito a ti próprio, sendo um fio da tapeçaria da causação primordial; esegundo, porque todo o ordenamento individual é uma das causas daprosperidade, sucesso e mesmo sobrevivência d’Aquele que rege o universo.Separar qualquer partícula, por mais pequena que seja, da contínuaconcatenação — quer das causas, quer de quaisquer outros elementos — é feriro todo. E sempre que tu te entregas à insatisfação, estás a provocar, dentro dastuas limitadas capacidades, essa separação e desmembramento.9. Não te entregues à tristeza nem ao desânimo e não desistas em desespero,se de vez em quando a prática ficar aquém da norma. Volta ao ataque depois decada derrota e fica agradecido se globalmente o teu desempenho, na maioriados casos, for como deve ser o de um homem. Mas cultiva um gosto genuínopela disciplina a que regressas: não recorras à tua filosofia com o espírito de umaluno para com o professor, mas antes como aquele que, tendo uma ferida numolho, recorre à loção de ovo e esponja, ou como outros à cataplasma ou aoduche. Assim, a tua submissão à razão não se tornará uma questão deostentação pública, mas de consolação privada. Lembra-te de que, enquantoque a filosofia quer apenas aquilo que a tua própria natureza quer, tu próprioestavas a querer outra coisa diferente, em divergência com a natureza. «Sim,mas que outra coisa podia ter sido mais agradável» — não é esse o atractivocom que o prazer procura enganar-te? Pensa, porém: não seria a nobreza daalma mais agradável? Não o seria a candura, a simplicidade, a bondade, apiedade? Mais ainda: se pensares na precisão e naturalidade com que osprocessos de raciocínio e cognição operam, poderá haver alguma coisa maisagradável do que o exercício do intelecto?— 59 —

ocorrências no interesse do nosso destino. Podem, de facto, dizer-nos que nos“enquadremos” nestas desgraças no mesmo sentido em que os pedreiros dizemque as pedras quadradas das paredes ou as pirâmides se “enquadram” umasnas outras quando estão a ser ajustadas para constituírem um todo unificado.Esta integração mútua é um princípio universal. Assim como uma miríade decorpos se juntam para formar o Corpo único que é o mundo, também umamiríade de causas se combinam para formar uma única Causa que é o destino.Mesmo as pessoas vulgares compreendem isto quando dizem, «Calhou-lhe aele». Calhou, de facto; isto é, foi-lhe destinado. Aceitemos tais coisas, portanto,como aceitamos as prescrições de Esculápio; porque estas também têm muitasvezes um sabor amargo, e contudo nós engolimo-las de bom grado naesperança de ter saúde. A execução e o cumprimento das leis da Naturezadevem ser encarados da mesma maneira que encaramos a nossa saúde física:mesmo que aquilo que te acontece seja intragável, recebe-o sempre de bomgrado, porque isso concorre para a saúde do universo, e mesmo para o bemestare bem-fazer do próprio Zeus. Se isso não fosse para benefício do todo, elenunca o teria feito acontecer a um indivíduo. Não é próprio da Natureza provocaralguma coisa naquele que está sob o seu governo que não seja especificamentedestinado ao seu bem. Há portanto duas razões por que tu deves aceitar de bomgrado o que te acontece: primeiro, como te acontece a ti, foi-te prescrito a ti, ediz-te respeito a ti próprio, sendo um fio da tapeçaria da causação primordial; esegundo, porque todo o ordenamento individual é uma das causas daprosperidade, sucesso e mesmo sobrevivência d’Aquele que rege o universo.Separar qualquer partícula, por mais pequena que seja, da contínuaconcatenação — quer das causas, quer de quaisquer outros elementos — é feriro todo. E sempre que tu te entregas à insatisfação, estás a provocar, dentro dastuas limitadas capacidades, essa separação e desmembramento.9. Não te entregues à tristeza nem ao desânimo e não desistas em desespero,se de vez em quando a prática ficar aquém da norma. Volta ao ataque depois decada derrota e fica agradecido se globalmente o teu desempenho, na maioriados casos, for como deve ser o de um homem. Mas cultiva um gosto genuínopela disciplina a que regressas: não recorras à tua filosofia com o espírito de umaluno para com o professor, mas antes como aquele que, tendo uma ferida numolho, recorre à loção de ovo e esponja, ou como outros à cataplasma ou aoduche. Assim, a tua submissão à razão não se tornará uma questão deostentação pública, mas de consolação privada. Lembra-te de que, enquantoque a filosofia quer apenas aquilo que a tua própria natureza quer, tu próprioestavas a querer outra coisa diferente, em divergência com a natureza. «Sim,mas que outra coisa podia ter sido mais agradável» — não é esse o atractivocom que o prazer procura enganar-te? Pensa, porém: não seria a nobreza daalma mais agradável? Não o seria a candura, a simplicidade, a bondade, apiedade? Mais ainda: se pensares na precisão e naturalidade com que osprocessos de raciocínio e cognição operam, poderá haver alguma coisa maisagradável do que o exercício do intelecto?— 59 —

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