próprio, creio que o nosso instinto nos diz que estamos na presença de umhomem simples, humilde e absolutamente sincero. Um pequeno facto, massignificativo, em que até agora, e tanto quanto eu sei, nenhum dos seus editoresreparou, parece revelar a sua genuína bondade. Quando ele tem a oportunidadede se referir a pessoas em termos de louvor, nunca deixa de registar os seusnomes. Mas quando, como por vezes acontece, ele se permite um comentáriodesfavorável, um véu de secretismo cobre o transgressor, e nós ficamos apenascom um indício da sua identidade que nos é fornecido por um nada revelador“ele” ou “eles”.* Este caridoso hábito — que podia talvez ser recomendado aalguns dos que hoje escrevem as suas memórias — merece particular atençãoem alguém cuja sensibilidade deve ter sofrido quase diariamente afrontas dasmaneiras e da sociedade de então.«Guiai-me, Zeus e Destino», diz a prece de Epicteto, «para onde quer que euseja mandado. Obedecerei sem hesitar; mesmo que venha a tornar-me cobardeou me retraia, sempre terei de ir». Estas palavras exprimem adequadamente aatitude de Marco perante a vida. Se ele observa obliquamente que se trata«mais de luta do que de dança», a sua firmeza não vacila; e a peculiar doçura edelicadeza do seu carácter exerceu uma atracção que estes laivos depessimismo não diminuem. «Santo e sábio por natureza, imperador e guerreiropor profissão», ele contempla, da solitária altura em que se encontra, as doresda mortalidade com olhos que estão desiludidos, porém serenos. «E portanto,»citando a homenagem de Mathew Arnold, «ele continua o amigo especial e oconsolador das almas escrupulosas e difíceis, mas de coração puro eempenhadas na elevação, especialmente naquelas idades em que caminham àvista, e não por fé, mas em que ainda não têm uma visão aberta: a essas almas,talvez ele não possa dar tudo aquilo por que elas anseiam, mas dá-lhes muito, eo que ele lhes dá podem eles receber». E sobre aquela sua estátua equestreque se ergue na Piazza Compidoglio, em Roma, escreveu Henry James que «nacapital da Cristandade, o retrato mais sugestivo da consciência cristã é a de umimperador pagão».Enquanto os homens continuarem a ser atraídos pelas lágrimas e triunfos dabondade humana, não faltarão leitores a Marco Aurélio. Melancólico,compassivo e desencantado, o último dos Estóicos ainda envergonha as nossasfraquezas e silencia a nossa insatisfação.Estoicismo e CristianismoEm conclusão, o leitor pode com algum proveito ser levado a pensar que ateologia da Igreja Cristã tem uma grande dívida para com o Estoicismo. Noevangelho original de Cristo predominavam os elementos morais e espirituais, eo elemento intelectual estava-lhes perfeitamente subordinado. Mas quando amensagem se espalhou para além dos confins da Palestina, e as suasimplicações foram assimiladas pelos pensadores de outras terras, fez-se sentir anecessidade de concepções mais exactas da verdade. Tornou-se evidente que a— 20 —
nova fé tinha de levantar uma multiplicidade de questões nos campos dacosmogonia, da metafísica, da psicologia e da ética; e para todas elas a Igrejatinha de descobrir um qualquer sistema coerente de respostas. Felizmente,muita da matéria necessária para a tarefa estava ali à mão. O solo já tinha sidoexplorado pelas escolas da filosofia pagã, e as suas descobertas constituíram ocorpo de conhecimento científico contemporâneo aceite. Muitos dos homens queintegraram a comunidade cristã durante o segundo século tinham sido educadosnestas doutrinas desde a juventude; a sua maioria, nos princípios do Estoicismo,uma vez que este sistema, mais do que qualquer outro, atraía o tipo de espíritonaturalmente religioso. Para eles se viraram, pois, os homens da igreja naprocura de ajuda para a construção da estrutura da sua teologia. Isto não implicauma apropriação acrítica e por atacado das ideias pagãs. Muito pelo contrário,quando uma teoria filosófica parecia sugerir as linhas ao longo das quais opensamento cristão podia procurar a sua própria solução de um problema, eraadoptada como hipótese de trabalho e testada nas suas possibilidades; após oque, numa forma adequadamente modificada, podia encontrar o seu lugar nanova religião. Nas palavras do Dr. Prestige, «era a ideia que era afeiçoada paraservir à fé cristã, e não a fé que era afeiçoada para nela poder caber aconcepção importada».*Por exemplo, o autor do quarto evangelho declara que Cristo é a Logos. Estaexpressão (que significa “razão” ou “palavra”) fora já durante muito tempo umdos principais termos do Estoicismo, escolhido originalmente com o objectivo deexplicar como a divindade entrou em relação com o universo. De acordo com osfilósofos, a Razão divina dera existência ao mundo por meio de inúmeraspartículas de si própria que habitaram e deram forma a toda a criação. Estaversão da origem do universo, já profundamente arreigada na geração suacontemporânea, foi aceite, em princípio, pelo evangelista. Ele afirma, contudo,que o meio pelo qual Deus se manifestou na criação e manutenção do mundonão é uma Logos múltipla, mas sim una e pessoal, gerada de si próprio. «Noprincípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todasas coisas foram criadas por ele, e sem ele não existia nada do que foi feito».†Assim recebe a metafísica estóica o baptismo cristão.Outro conceito estóico que inspirou a Igreja foi o do “Espírito divino”. Ao quererdar um significado mais explícito ao “fogo criador” de Zenão, Cleanthes fora oprimeiro a descobrir o termo pneuma, ou “espírito” para o descrever. Como ofogo, este “espírito” inteligente foi imaginado como uma ténue substânciasemelhante à corrente de ar ou sopro, mas possuindo essencialmente aqualidade do calor; era imanente no universo, como Deus, e no homem, comoalma e princípio criador de vida. É evidente que isto não está muito longe do“Espírito Santo” da teologia cristã, o “Senhor e Criador da vida”, manifestadovisivelmente como línguas de fogo no Pentecostes e desde então sempreassociado — no espírito cristão bem como no estóico — às ideias de fogo vital ecalor benéfico.Também na doutrina da Trindade, a concepção eclesiástica do Pai, Verbo eEspírito encontra o seu gérmen nos diferentes nomes Estóicos para a DivinaUnidade. Assim, Séneca, ao escrever sobre o supremo Poder que molda o— 21 —
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