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O OLHAR INOCENTE É CEGO 60Por outro lado, dentre essas pessoas havia poucas que, sendo ou nãopintores tinham a capacidade de desenvolver o que hoje poderíamos chamar deobservação crítica. Provavelmente devido ao raro acesso à pouca literaturadisponível sobre arte à época, a maior parte das pessoas para quem o pintortrabalhava possuía algumas poucas categorias para qualificar os quadros:“escorço”, ultramarino a dois florins a onça, a “roupagem” 75 e, talvez, uma ououtra expressão sobre as figuras religiosas representadas. Lembrando ainda que amaior parte desses termos freqüentava a “literatura” dos contratos que precediama execução da obras.Um outro fator importante da construção da cultura renascentista era aeducação comercial que constituía a base da formação escolar laica do século XV.A formação educacional secundária da época era voltada para práticas úteis nocomércio, valorizando técnicas matemáticas, como métodos de medição e a regrade três. 76 Até o século XIX, as mercadorias não eram transportadas nemcomercializadas em recipientes padronizados. Deste modo, um barril, saco oufardo era único e seu volume deveria poder ser calculado com relativa rapidez.Aparentemente, cada região tinha os seus próprios métodos para lidar com estaquestão. De qualquer forma, esta prática aponta para um tipo determinado decapacidades e para a existência de hábitos analíticos 77 que, de certa forma, deveter exercido algum tipo de influência na forma como as pessoas avaliavam aproporcionalidade pictórica de uma obra. Parece lógico que isso tenha sidocompreendido – e utilizado - pelos realizadores de imagens. De fato, em umaépoca onde não existiam considerações sobre “criatividade” ou “novidade”, aexibição de habilidades e o emprego de técnicas eram extremamente valorizados.No entanto, todas essas evidencias de valoração “tecnicista” não podem nosofuscar a força da cultura religiosa sobre a visualidade do período.Apesar da permanência da ligação do homem renascentista aos dogmas daIgreja e da Idade Média, a invenção da perspectiva se insere de formacomplementar à estrutura de mundo do início da Idade Moderna. O universo eraconcebido de acordo com os mesmos padrões hierárquicos de sociedade feudal. Apirâmide feudal se encontrava centrada no imperador. O universo se situava sobre75 Ibid., p.45.76 Ibid., p.177.77 Ibid., p.168.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 61o trono de Deus. Este padrão repetia-se em todas as esferas: humana, divina enatural 78 . Do mesmo modo, a perspectiva também estabelecia um ponto focalúnico: “a perspectiva torna o olho como sendo ele o ponto de fuga do infinito. Omundo visível é organizado para o espectador assim como o Universo já foi antesorganizado para Deus”. 79 Por outro lado, a perspectiva também pode sugerir umdeslocamento do olhar divino, ou pelo menos, algo próximo de umcompartilhamento. Se antes era Deus quem tudo via, agora ao homem é dada apossibilidade de estabelecer o ponto de vista da realidade e assumir para si próprioessa construção. Deste modo, a perspectiva é a técnica que estabelece asistematização do espaço, criando um mundo mensurável. Não obstante, a idéia deextensão do espaço “interminável” (interminatum) 80 parece encaminhar para orompimento, de um lado, com o espaço Aristotélico, onde não havia lugar para oinfinito e, de outro, com a atribuição escolástica do conceito de infinito como algoda ordem do divino. Assim, a perspectiva parece fazer a translação do espaçopsicológico para o espaço matemático, constituído por três dimensões físicas 81 .Hanna Arendt traduz muito bem este contexto ao afirmar que “nada que possa sermedido pode permanecer imenso”. 82 A perspectiva se estabelece, então, comoprática reguladora desta visão que começa a se apartar da teologia.A existência de uma série de procedimentos capazes de reproduzir arealidade “tal como ela é” implica na experiência de “um modo correto de ver” ena existência – ou na crença de existência – de uma realidade que pode serreproduzida. Neste sentido, a capacidade dos órgãos do sentido e, principalmentedo olhar, de captar o mundo “real” irá se apoiar em um sistema de “procedimentoscientíficos”. A perspectiva garante a adequação da capacidade de observação, ouseja, a possibilidade de estabelecer uma relação com a verdade do que éobservado - desde que certos princípios sejam adotados.Através da implementação de regras de controle, a técnica da perspectivaestabeleceu um elo entre arte e ciência – que, na entrada da era Moderna,começam a se constituir como tais. Ao pintor-cientista cabe o aprimoramento do78 HAUSER, Arnold. Maneirismo. São Paulo: Ed. Perspectiva / Ed. Universidade de São Paulo, 1976. p. 4379 BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.18.80 Como forma de evitar o confronto com a Igreja, os filósofos,que já supunham o mundo infinito, evitavamusar este termo. KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Editora ForenseUniversitária, 2006.81 PANOFSKY, E., op. cit., p.66.82 ARENDT, H., op. cit., p.262.
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O OLHAR INOCENTE É CEGO 61o trono de Deus. Este padrão repetia-se em to<strong>da</strong>s as esferas: humana, divina enatural 78 . Do mesmo modo, a perspectiva tamb<strong>é</strong>m estabelecia um ponto focalúnico: “a perspectiva torna o olho como sendo ele o ponto de fuga do infinito. Omundo visível <strong>é</strong> organizado para o espectador assim como o Universo já foi antesorganizado para Deus”. 79 Por outro lado, a perspectiva tamb<strong>é</strong>m pode sugerir umdeslocamento do <strong>olhar</strong> divino, ou pelo menos, algo próximo de umcompartilhamento. Se antes era Deus quem tudo via, agora ao homem <strong>é</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> apossibili<strong>da</strong>de de estabelecer o ponto de vista <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e assumir para si próprioessa <strong>construção</strong>. Deste modo, a perspectiva <strong>é</strong> a t<strong>é</strong>cnica que estabelece asistematização do espaço, criando um mundo mensurável. Não obstante, a id<strong>é</strong>ia deextensão do espaço “interminável” (interminatum) 80 parece encaminhar para orompimento, de um lado, com o espaço Aristot<strong>é</strong>lico, onde não havia lugar para oinfinito e, de outro, com a atribuição escolástica do conceito de infinito como algo<strong>da</strong> ordem do divino. Assim, a perspectiva parece fazer a translação do espaçopsicológico para o espaço matemático, constituído por três dimensões físicas 81 .Hanna Arendt traduz muito bem este contexto ao afirmar que “na<strong>da</strong> que possa sermedido pode permanecer imenso”. 82 A perspectiva se estabelece, então, comoprática reguladora desta visão que começa a se apartar <strong>da</strong> teologia.A existência de uma s<strong>é</strong>rie de procedimentos capazes de reproduzir areali<strong>da</strong>de “tal como ela <strong>é</strong>” implica na experiência de “um modo correto de ver” ena existência – ou na crença de existência – de uma reali<strong>da</strong>de que pode serreproduzi<strong>da</strong>. Neste sentido, a capaci<strong>da</strong>de dos órgãos do sentido e, principalmentedo <strong>olhar</strong>, de captar o mundo “real” irá se apoiar em um sistema de “procedimentoscientíficos”. A perspectiva garante a adequação <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de observação, ouseja, a possibili<strong>da</strong>de de estabelecer uma relação com a ver<strong>da</strong>de do que <strong>é</strong>observado - desde que certos princípios sejam adotados.Atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> implementação de regras de controle, a t<strong>é</strong>cnica <strong>da</strong> perspectivaestabeleceu um elo entre arte e ciência – que, na entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> era Moderna,começam a se constituir como tais. Ao pintor-cientista cabe o aprimoramento do78 HAUSER, Arnold. Maneirismo. São Paulo: Ed. Perspectiva / Ed. Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, 1976. p. 4379 BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.18.80 Como forma de evitar o confronto com a Igreja, os filósofos,que já supunham o mundo infinito, evitavamusar este termo. KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Editora ForenseUniversitária, 2006.81 PANOFSKY, E., op. cit., p.66.82 ARENDT, H., op. cit., p.262.