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O OLHAR INOCENTE É CEGO 262devemos primeiramente considerar as diferenças nos modos de olhar da época e onosso modo atual. É possível que hoje os móveis de escritório sejam mais comunsdo que eram no século XIX. Ou, há, ainda, a possibilidade que a grande discussãoda época, relacionada à ornamentação, tenha conduzido a observação do crítico,“ocultando” estas peças. Estas possibilidades levantam a inexistência do olharinocente. Em qualquer contexto, o olhar se alimenta dos registros do ouvido e damente, da necessidade e dos preconceitos. Nada é visto em sua estrutura geral, istoé, simplesmente moderna, mas sempre coberto por uma camada de seleções,discriminações, análises e interpretações.4.4.1. Gosto e bom gostoHavia à época da Exposição Universal de 1851 uma discussão sobre aquestão do gosto e a possibilidade desta qualidade, ou pendor, poder seraprendida. Neste contexto, Ralph Nicholson Wornum discute como asmanufaturas, presentes à Exposição, poderiam atuar no desenvolvimento do bomgosto. 562 Partindo da questão do ornamento, Wornum estabelece que este secoloca sob o domínio da visualidade: “o ornamento é uma necessidade da menteque encontra gratificação a partir do olhar”.Em 1851, o bom gosto era discutido no seio da profusão de formasexuberantemente decoradas. Para Greenhalgh, a inobservância a demandas denatureza simbólica levou a equívocos em relação à compreensão da nova estéticaindustrial como uma simples questão de gosto, estabelecendo uma correlaçãoentre a produção mecânica e a feiúra das formas. 563 Neste contexto, o bom gostoera uma questão a ser estimulada, algo que deveria ser ensinado juntamente com amaestria artesanal. 564 Comentando a tendência observada na Exposição de 1851para a utilização de ornamentos baseados em elementos naturalísticos, RichardRedgrave chega a afirmar a importância de se ensinar o “modo correto de ver e deutilizar as formas da natureza em representações”. 565 O “modo correto” de verencontrava-se diretamente relacionado à simetria e à geometria encontradas na562 WORNUM, R. op. cit., p. I***.563 GREENHALGH, P. op. cit., p. 144.564 REDGRAVE, G. op. cit., p. 17.565 Ibid., p. 18.

O OLHAR INOCENTE É CEGO 263natureza e às restrições ao ornamento, exemplificadas pelos pequenos detalhesobservados na vida natural, como por exemplo, nos pontos salientes que criamcontraste com as folhagens.Deste modo, para Redgrave, o propósito de cada objeto ou edifício deveriaser sempre a primeira coisa a ser considerada: “a utilidade sempre precedendo oornamento”. 566 Além disso, considera Redgrave, a sua época era a dos novosmateriais e processos para os quais tornava-se necessário um novo design – maisconsistente e apropriado para cada material. 567 O crítico inglês procura deixarclaro que design e ornamento são coisas distintas. “Design” inclui construção eornamento, sendo que este último deve ser alcançado naturalmente a partir doemprego apropriado de materiais e da decoração. “Design” relaciona-se com aconstrução de um objeto para uso ou apreciação estética, compreendendo, destemodo, também a ornamentação. “Ornamento” implica apenas na decoração de umobjeto construído anteriormente. Assim, o ornamento será sempre secundário. Docontrário, o objeto não seria um trabalho ornamentado, mas um meroornamento. 568 Na compreensão desta diferenciação se encontraria o caminho parao bom gosto. 569A discussão sobre o ornamento na indústria não se restringiu apenas aoperíodo da Exposição de 1851, mas estendeu-se até o final do século,fundamentando o movimento Arts and Crafts no final do século XIX e, depois, jáno início do século XX, com o grito de guerra, “ornamento e crime”. 570 Mas, háum importante precedente anterior, geralmente relegado pelos estudos históricos:o esetilo Biedermeier.O Biedermeier floresceu nos países de língua alemã a partir de 1815, ano doCongresso de Viena que pôs fim às guerras napoleônicas até 1848 e o início dasrevoluções européias. Sua estética, que pode ser observada em móveis construídosa partir 1818 571 , apresenta um ideal de beleza que valoriza a simplicidade e aqualidade do material utilizado, realçado pela ausência de ornamentos. O566 Ibid., p. 36.567 Ibid., p. 34.568 Ibid., p. 56.569 REDGRAVE, Gilbert R. Manual of design. Compiled from the writings and addresses of RichardRedgrave, R. A. London: Chapman and Hall, 1890. p. 38.570 “Ornamento e crime” é um texto de 1908 escrito por Adolf Loos que considera o ornamento incompatívelcom a evolução cultural. LOOS, Adolf. Ornamento e Crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004. pp. 223-234.571 OTTOMEYER, H. ; ALBRECHT, K. A.; WINTERS, Laurie. Biedermeyer. The invention of simplicity.Milwaukee, Vienna, Berlin: Hatje Cantz Publishers, 2006. p. 52

O OLHAR INOCENTE É CEGO 262devemos primeiramente considerar as diferenças nos modos de <strong>olhar</strong> <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca e onosso modo atual. É possível que hoje os móveis de escritório sejam mais comunsdo que eram no s<strong>é</strong>culo XIX. Ou, há, ain<strong>da</strong>, a possibili<strong>da</strong>de que a grande discussão<strong>da</strong> <strong>é</strong>poca, relaciona<strong>da</strong> à ornamentação, tenha conduzido a observação do crítico,“ocultando” estas peças. Estas possibili<strong>da</strong>des levantam a inexistência do <strong>olhar</strong><strong>inocente</strong>. Em qualquer contexto, o <strong>olhar</strong> se alimenta dos registros do ouvido e <strong>da</strong>mente, <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de e dos preconceitos. Na<strong>da</strong> <strong>é</strong> visto em sua estrutura geral, isto<strong>é</strong>, simplesmente moderna, mas sempre coberto por uma cama<strong>da</strong> de seleções,discriminações, análises e interpretações.4.4.1. Gosto e bom gostoHavia à <strong>é</strong>poca <strong>da</strong> Exposição Universal de 1851 uma discussão sobre aquestão do gosto e a possibili<strong>da</strong>de desta quali<strong>da</strong>de, ou pendor, poder seraprendi<strong>da</strong>. Neste contexto, Ralph Nicholson Wornum discute como asmanufaturas, presentes à Exposição, poderiam atuar no desenvolvimento do bomgosto. 562 Partindo <strong>da</strong> questão do ornamento, Wornum estabelece que este secoloca sob o domínio <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de: “o ornamento <strong>é</strong> uma necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> menteque encontra gratificação a partir do <strong>olhar</strong>”.Em 1851, o bom gosto era discutido no seio <strong>da</strong> profusão de formasexuberantemente decora<strong>da</strong>s. Para Greenhalgh, a inobservância a deman<strong>da</strong>s denatureza simbólica levou a equívocos em relação à compreensão <strong>da</strong> nova est<strong>é</strong>ticaindustrial como uma simples questão de gosto, estabelecendo uma correlaçãoentre a produção mecânica e a feiúra <strong>da</strong>s formas. 563 Neste contexto, o bom gostoera uma questão a ser estimula<strong>da</strong>, algo que deveria ser ensinado juntamente com amaestria artesanal. 564 Comentando a tendência observa<strong>da</strong> na Exposição de 1851para a utilização de ornamentos baseados em elementos naturalísticos, RichardRedgrave chega a afirmar a importância de se ensinar o “modo correto de ver e deutilizar as formas <strong>da</strong> natureza em representações”. 565 O “modo correto” de verencontrava-se diretamente relacionado à simetria e à geometria encontra<strong>da</strong>s na562 WORNUM, R. op. cit., p. I***.563 GREENHALGH, P. op. cit., p. 144.564 REDGRAVE, G. op. cit., p. 17.565 Ibid., p. 18.

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