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O OLHAR INOCENTE É CEGO 204postes e fios do telégrafo integraram-se como parte do conjunto mecânico dasferrovias, ocupando um campo à frente da paisagem descortinada pela janela dotrem, mediando esta visão. A “passagem” acelerada dos postes pela janela do trempassou a criar um ritmo visual, através do qual era possível supor a velocidadeempreendida pelo equipamento.3.3.2. Vista e visão panorâmicasApesar das inúmeras críticas que acompanharam a implementação dasferrovias, não havia unanimidade em relação às mudanças perceptivas resultantesdas transformações geradas por este meio de transporte. Nem todos viam asferrovias como ruína e prejuízo, nem com enfado. O escritor Christian Andersen,por exemplo, afirmou com veemência, em meados do século XIX, uma opiniãobastante positiva. Para ele a poesia sucumbia à estreiteza das viagens dediligência. O calor e a poeira incomodavam no verão, enquanto o invernoproporcionava péssimas estradas. O trem era um cavalo mágico que voava comoas nuvens em uma tempestade, fazendo o espaço desaparecer. 411 Para Andersen, averdadeira oportunidade de observar a paisagem se encontrava sobre os trilhos.Esta outra interpretação ao mesmo tempo em que nos conduz a uma novacapacidade de observação também apresenta uma nova paisagem criada pelaferrovia. Os objetos modificam-se a partir do apelo da velocidade. O movimentocria novas associações entre objetos que se encontram separados no espaço. Oselementos que foram apontados por alguns com o significado de perda oudetrimento passam a ser assumidos como enriquecedores. A velocidade étransformada em estímulo para a nova percepção e dá nova vida à antigapaisagem.Neste contexto, Wolfgang Schivelbusch apresenta um excelente apanhadode depoimentos e textos de autores contemporâneos através dos quais é possívelconstatar as respostas à experiência visual trazida pelo movimento das ferroviasno século XIX. Um viajante americano, por exemplo, escreveu em 1853 que as411 Railway Readings. Oxford: J. Vincent, 1848. p. 8.

O OLHAR INOCENTE É CEGO 205belezas da Inglaterra nunca apareceram tão charmosas do que quando seprecipitam sobre uma locomotiva a 40 milhas por hora . 412Nada pelo caminho requer uma observação atenta, e apesar dos objetos maispróximos parecerem rasgar-se em descontrole, os campos distantes e suas árvoresdispersas não parecem determinados a iludir a observação; eles permanecem otempo necessário sob o olhar para [que possam] deixar uma impressão eterna.Tudo é tão tranquilo, tão fresco, tão pleno e destituído de objetos proeminentescapazes de aprisionar o olho ou distrair a atenção do charme do todo, que me fazamar o sonho de navegar no ar, rapidamente, como se estivesse montado em umtornado. 413Um certo Benjamin Gastineau, cujos ensaios publicados em diversos jornaisforam reunidos no ano de 1861 em um livro chamado La Vie en chemin de fer 414 ,considera que o movimento do trem através da paisagem transfigura-se nomovimento da própria paisagem. A ferrovia coreografa a paisagem. “Antes dacriação das estradas de ferro, a natureza não criava mais; era uma BelaAdormecida no bosque...; até os céus pareciam imutáveis. A estrada de ferroanimou tudo...”. 415 O movimento do trem encolhe o espaço e, deste modo, exibeuma sucessão de objetos e elementos cênicos que originalmente pertenciam adiversos domínios espaciais. O viajante que observa o mundo a partir da janela dotrem adquire uma nova habilidade que Gastineau chama de “filosofia sintética dorelance” (la philosophie synthétique du coup d’oeil) e que consiste em perceberelementos descontínuos indiscriminadamente à medida que estes se sucedem soba janela. Embora Gastineau não utilize a palavra “panorama”, o cenário que eledescreve corresponde a esta forma de visualização: a partir da mudança contínuade ponto de vista vêem-se, em rápida sucessão, cenas diversas - alegres ou tristes,burlescas ou brilhantes, de vida ou de morte. Todas as imagens desaparecem tãologo sejam vistas.Em outro texto contemporâneo de 1865, Jules Clarétie, jornalista epublicitário parisiense, utiliza o termo panorama para caracterizar a vista da janelado trem: uma paisagem evanescente, capaz de ser captada em sua totalidadegraças à velocidade do movimento. Clarétie escreve que em poucas horas a412 WARD, Matthew E. English Items or, Microcosmic Views of England and Englishmen. Liverpool, 1830.pp. 47-8 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 60.413 Id.414 GASTINEAU, Benjamin. La Vie en chemin de fer. Paris, 1861. p. 31. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit.,p. 60.415 Ibid., pp. 37-38. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 631 [U 10a,1].

O OLHAR INOCENTE É CEGO 204postes e fios do tel<strong>é</strong>grafo integraram-se como parte do conjunto mecânico <strong>da</strong>sferrovias, ocupando um campo à frente <strong>da</strong> paisagem descortina<strong>da</strong> pela janela dotrem, mediando esta visão. A “passagem” acelera<strong>da</strong> dos postes pela janela do trempassou a criar um ritmo <strong>visual</strong>, atrav<strong>é</strong>s do qual era possível supor a veloci<strong>da</strong>deempreendi<strong>da</strong> pelo equipamento.3.3.2. Vista e visão panorâmicasApesar <strong>da</strong>s inúmeras críticas que acompanharam a implementação <strong>da</strong>sferrovias, não havia unanimi<strong>da</strong>de em relação às mu<strong>da</strong>nças perceptivas resultantes<strong>da</strong>s transformações gera<strong>da</strong>s por este meio de transporte. Nem todos viam asferrovias como ruína e prejuízo, nem com enfado. O escritor Christian Andersen,por exemplo, afirmou com veemência, em meados do s<strong>é</strong>culo XIX, uma opiniãobastante positiva. Para ele a poesia sucumbia à estreiteza <strong>da</strong>s viagens dediligência. O calor e a poeira incomo<strong>da</strong>vam no verão, enquanto o invernoproporcionava p<strong>é</strong>ssimas estra<strong>da</strong>s. O trem era um cavalo mágico que voava comoas nuvens em uma tempestade, fazendo o espaço desaparecer. 411 Para Andersen, aver<strong>da</strong>deira oportuni<strong>da</strong>de de observar a paisagem se encontrava sobre os trilhos.Esta outra interpretação ao mesmo tempo em que nos conduz a uma novacapaci<strong>da</strong>de de observação tamb<strong>é</strong>m apresenta uma nova paisagem cria<strong>da</strong> pelaferrovia. Os objetos modificam-se a partir do apelo <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de. O movimentocria novas associações entre objetos que se encontram separados no espaço. Oselementos que foram apontados por alguns com o significado de per<strong>da</strong> oudetrimento passam a ser assumidos como enriquecedores. A veloci<strong>da</strong>de <strong>é</strong>transforma<strong>da</strong> em estímulo para a nova percepção e dá nova vi<strong>da</strong> à antigapaisagem.Neste contexto, Wolfgang Schivelbusch apresenta um excelente apanhadode depoimentos e textos de autores contemporâneos atrav<strong>é</strong>s dos quais <strong>é</strong> possívelconstatar as respostas à experiência <strong>visual</strong> trazi<strong>da</strong> pelo movimento <strong>da</strong>s ferroviasno s<strong>é</strong>culo XIX. Um viajante americano, por exemplo, escreveu em 1853 que as411 Railway Readings. Oxford: J. Vincent, 1848. p. 8.

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