O olhar inocente é cego. A construção da cultura visual ... - capes

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21.07.2015 Views

O OLHAR INOCENTE É CEGO 1863.3. Novas percepções no tempo e no espaçoA partir da segunda metade do século XIX pode-se observar uma crescentealteração dos conceitos de tempo e espaço em paralelo ao desenvolvimento denovas tecnologias de transporte e comunicação. A concepção temporal iluminista,recentemente formulada, começa a se desfazer 370 , tornando relativas as percepçõesde tempo e de espaço. Uma nova compreensão das distâncias passa a se constituir,inclusive em relação aos eventos ocorridos em outros lugares e países. O tempo écapturado, reorganizado e disponibilizado, produzindo transformações sobre osmodos de olhar.A compressão tempo-espaço, observada a partir do século XIX, passou aexercer influência sobre diversos campos da atuação humana como, por exemplo,o trabalho industrial. Em 1913, mas ainda no “espírito do século XIX”, HenryFord instituiu uma outra forma de organização da produção – relacionando aaceleração do tempo à fragmentação das tarefas - na sua linha de montagem.Neste contexto, as ferrovias colocam-se como signo paradigmático damodernização do período. Neste segmento do trabalho, iremos analisar como estanova tecnologia, apesar de não se tratar de um processo diretamente relacionado àvisualidade, atuou na construção de um novo olhar – que se encontra na raiz donosso contemporâneo modo de ver. Nossa intenção com esta passagem é acentuaro modo como as tecnologias modificadoras da relação tempo-espaço atuam sobrea construção do olhar moderno, ampliando e multiplicando suas possibilidades, aomesmo tempo em que fixam padrões e convenções que a delimitam e organizam.3.3.1. As ferroviasNenhuma tecnologia exerceu maior influência sobre as percepções de tempoe espaço do que a ferrovia, ao mesmo tempo produzindo mudanças na forma deolhar. A expansão das ferrovias pode ser considerada emblemática das mudançasperceptivas que definem a experiência cultural da modernidade e o trem, seu signopor excelência.370 HARVEY, D. op. cit., p. 238.

O OLHAR INOCENTE É CEGO 187Apesar do trilho de madeira ser usado há séculos em minas de carvão, foi atecnologia a vapor que possibilitou aos trens ultrapassarem a velocidade doscavalos. Como afirmou Nadar, em transcrição de Walter Benjamin: “como sefosse de um mágico ou de um diretor de teatro, o primeiro apito da primeiralocomotiva deu o sinal de despertar, o sinal de decolagem para todas as coisas”. 371As conseqüências imediatas da nova tecnologia foram rapidamente observadas nafacilitação do transporte de bens e pessoas. Se, de um lado, as ferroviasfavoreceram o surgimento de grandes indústrias e o aumento da produção dematérias-primas e mercadorias acabadas, de outro, também ampliou a circulaçãode pessoas e idéias, participando da criação de um novo estilo de vida baseado nacompressão tempo-espaço que alicerçou a modernidade. Em 1780 uma diligênciagastava de quatro a cinco dias para cobrir a distância entre Londres e Manchesterenquanto, um século depois, um trem cobria o mesmo trecho em quatro ou cincohoras 372 .Textos da primeira metade do século XIX expressavam as alteraçõestemporais em termos de encolhimento do espaço 373 , relativizando os conceitos decidade e país. Em 1850, Lardner escrevia que “as distâncias praticamentediminuem na exata proporção da velocidade de locomoção”. 374 Em um artigo noQuartely Review de 1839, um autor contemporâneo considera que as nações quepareciam situar-se apartadas no espaço de maneira inalterável, iam aos poucossendo aproximadas pela redução gradual do espaço e da distância que as haviaseparado. Na medida em que as distâncias iam sendo aniquiladas, a superfície dopaís encolhia, tornando-se não maior do que uma imensa cidade. 375 De fato, comoconsidera Wolfgang Schivelbusch, a sensação de diminuição das distânciasproduzida pelos meios de transporte parece ter criado uma nova geografia que,para além de uma simples contração do espaço, sugere um processo dual onde oespaço é ao mesmo tempo reduzido e expandido. Esta dialética é observada, deum lado, pela relação entre a diminuição do espaço através do encolhimento dotempo de deslocamento e, de outro, pela expansão do espaço através daincorporação de novas áreas territoriais à rede de transportes. Deste modo, a nação371 Nadar, Quand J’étais Photographe, Paris, p. 281, apud BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 129. [C 3a,4].372 LOWE, Donald. History of bourgeois perception. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. p. 38.373 SCHIVELBUSCH, Wolfgang. The Railway Journey: the Industrialization of Time and Space in theNineteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1986. p. 34.374 LARDNER, D. Railway Economy. London, 1850 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 33.

O OLHAR INOCENTE É CEGO 1863.3. Novas percepções no tempo e no espaçoA partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX pode-se observar uma crescentealteração dos conceitos de tempo e espaço em paralelo ao desenvolvimento denovas tecnologias de transporte e comunicação. A concepção temporal iluminista,recentemente formula<strong>da</strong>, começa a se desfazer 370 , tornando relativas as percepçõesde tempo e de espaço. Uma nova compreensão <strong>da</strong>s distâncias passa a se constituir,inclusive em relação aos eventos ocorridos em outros lugares e países. O tempo <strong>é</strong>capturado, reorganizado e disponibilizado, produzindo transformações sobre osmodos de <strong>olhar</strong>.A compressão tempo-espaço, observa<strong>da</strong> a partir do s<strong>é</strong>culo XIX, passou aexercer influência sobre diversos campos <strong>da</strong> atuação humana como, por exemplo,o trabalho industrial. Em 1913, mas ain<strong>da</strong> no “espírito do s<strong>é</strong>culo XIX”, HenryFord instituiu uma outra forma de organização <strong>da</strong> produção – relacionando aaceleração do tempo à fragmentação <strong>da</strong>s tarefas - na sua linha de montagem.Neste contexto, as ferrovias colocam-se como signo paradigmático <strong>da</strong>modernização do período. Neste segmento do trabalho, iremos analisar como estanova tecnologia, apesar de não se tratar de um processo diretamente relacionado à<strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de, atuou na <strong>construção</strong> de um novo <strong>olhar</strong> – que se encontra na raiz donosso contemporâneo modo de ver. Nossa intenção com esta passagem <strong>é</strong> acentuaro modo como as tecnologias modificadoras <strong>da</strong> relação tempo-espaço atuam sobrea <strong>construção</strong> do <strong>olhar</strong> moderno, ampliando e multiplicando suas possibili<strong>da</strong>des, aomesmo tempo em que fixam padrões e convenções que a delimitam e organizam.3.3.1. As ferroviasNenhuma tecnologia exerceu maior influência sobre as percepções de tempoe espaço do que a ferrovia, ao mesmo tempo produzindo mu<strong>da</strong>nças na forma de<strong>olhar</strong>. A expansão <strong>da</strong>s ferrovias pode ser considera<strong>da</strong> emblemática <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nçasperceptivas que definem a experiência <strong>cultura</strong>l <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e o trem, seu signopor excelência.370 HARVEY, D. op. cit., p. 238.

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