O olhar inocente é cego. A construção da cultura visual ... - capes

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21.07.2015 Views

O OLHAR INOCENTE É CEGO 138estética de Haussmann: “Então o barão ansiava por longas linhas retas e ‘pontosde vista’ impressionantes, e seus críticos, por aventuras em perspectiva!”. 268 Aobservação de Clark nos chama a atenção para a discussão em torno daperspectiva. Não parece haver dúvida que as avenidas parisienses trouxeramnovos pontos de vista e novas perspectivas e uma grande profundidade de campo.No entanto, isso não parecia ser compreendido pelos contemporâneos forçados aver a cidade e o mundo de outro modo. Havia perspectiva, claro, mas o moradorda cidade que havia sido sujeitado a morar em um grande canteiro de obras,parecia sentir falta das pequenas perspectivas, das narrativas encontradas em cadadobrar de esquina. Talvez por isso, as vistas amplas e as perspectivasmonumentais tenham demorado a mostrar-se na pintura, o que aconteceu apenasna década de 1890, ano em que Pisarro exibiu “um ponto de vista plenamentehaussmaniano de uma ponta a outra da Avenue de l’Opéra” 269 (Figura 67).Figura 67. Camille Pissarro, Avenue de l’Opéra, soleil, matin d’hiver, 1898.Consideramos que a rejeição às novas perspectivas encontradas na cidadeaponta para uma inabilidade em lidar com novos e surpreendentes pontos de vistaou, ainda, com uma nova forma de olhar ainda não completamente estruturada.Neste processo, as piadas sobre as formas retas podem ter funcionado comoauxiliares pedagógicos da formulação de uma nova cultura visual. Em uma destas268 CLARK, T. J. op. cit., p. 75.

O OLHAR INOCENTE É CEGO 139piadas, o personagem de um velho militar que acompanhava as mudanças deParis, sonhava com o dia em que o próprio rio Sena teria o seu curso corrigido,“porque suas curvas irregulares são realmente revoltantes”. 270 Outra anedotasugeria que o alargamento das ruas teria sido realizado devido a crinolina. 271 Asugestão de que a palavra “bulevar” seria etimologicamente ligada abouleversement, que significa mudança e perturbação, também era citada comironia. 272A haussmanização foi acompanhada de perto pela crítica social querelaciona diretamente o empreendimento ao deslocamento das classes operárias,que teriam sido empurradas (pelo aumento dos custos de moradia) para a periferiaparisiense, rompendo o laço de vizinhança as “ligava ao burguês”. 273 Esteprocesso não é compreendido como casual, ao contrário, é relacionado à tentativade impedir o surgimento de revoltas entre as classes mais pobres. A abertura deartérias sobre o tecido urbano seria um impedimento para a montagem debarricadas, além de facilitar o deslocamento do exército em caso de necessidade.A ampliação no número de empregos com a própria obra de remodelação tambémteria contribuído para desestimular o pensamento revolucionário. Estes motivostalvez tenham levado Le Corbusier a considerar os traçados de Haussmann comointeiramente arbitrários: “não eram soluções rigorosas de urbanismo, mas medidasde ordem financeira e militar”. 274 Apesar disso, o mesmo Le Corbusier afirmoualgum tempo depois: “Parecia que Paris não suportaria a cirurgia de Haussmann.Ora, Paris não vive hoje do que fez esse homem temerário e corajoso? ... Éverdadeiramente admirável o que soube fazer Haussmann”. 275Esta ambigüidade aponta para o fato, descrito por Clark, de que ospropósitos de Haussmann “eram muitos e contraditórios”. 276 A contra-revoluçãoera um deles, assim como a certeza nos benefícios gerados pelas obras públicas ea urgência em modernizar a cidade. Não se deve desconsiderar também o desejode abrilhantar uma cidade imperial para ser exibida aos estrangeiros. Walter269 CLARK, T. J. op. cit., p. 60.270 ABOUT, Edmond. L’Homme à l’oreille cassée. p. 196. apud CLARK, T. J. op. cit., p. 74.271 BENJAMIN, W. Passagens... p. 174. [E 5a,8].272 FOURNIER, Édouard. Chroniques et Légendes des Rues de Paris. Paris, 1864. p. 16. apud BENJAMIN,W. Passagens... p. 179. [E 9,1].273 LEVASSEUR, Histoire des Classes Ouvrières et de l’Industrie en France, II. Paris: 1904, p. 775.BENJAMIN, W. Passagens... p. 164. [E 2,1].274 LE CORBUSIER, Urbanisme. Paris, 1925. p. 250. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 166. [E 2a,1].275 Ibid., p. 149. apud Ibid., p. 173. [E 5a,6].

O OLHAR INOCENTE É CEGO 139pia<strong>da</strong>s, o personagem de um velho militar que acompanhava as mu<strong>da</strong>nças deParis, sonhava com o dia em que o próprio rio Sena teria o seu curso corrigido,“porque suas curvas irregulares são realmente revoltantes”. 270 Outra anedotasugeria que o alargamento <strong>da</strong>s ruas teria sido realizado devido a crinolina. 271 Asugestão de que a palavra “bulevar” seria etimologicamente liga<strong>da</strong> abouleversement, que significa mu<strong>da</strong>nça e perturbação, tamb<strong>é</strong>m era cita<strong>da</strong> comironia. 272A haussmanização foi acompanha<strong>da</strong> de perto pela crítica social querelaciona diretamente o empreendimento ao deslocamento <strong>da</strong>s classes operárias,que teriam sido empurra<strong>da</strong>s (pelo aumento dos custos de moradia) para a periferiaparisiense, rompendo o laço de vizinhança as “ligava ao burguês”. 273 Esteprocesso não <strong>é</strong> compreendido como casual, ao contrário, <strong>é</strong> relacionado à tentativade impedir o surgimento de revoltas entre as classes mais pobres. A abertura deart<strong>é</strong>rias sobre o tecido urbano seria um impedimento para a montagem debarrica<strong>da</strong>s, al<strong>é</strong>m de facilitar o deslocamento do ex<strong>é</strong>rcito em caso de necessi<strong>da</strong>de.A ampliação no número de empregos com a própria obra de remodelação tamb<strong>é</strong>mteria contribuído para desestimular o pensamento revolucionário. Estes motivostalvez tenham levado Le Corbusier a considerar os traçados de Haussmann comointeiramente arbitrários: “não eram soluções rigorosas de urbanismo, mas medi<strong>da</strong>sde ordem financeira e militar”. 274 Apesar disso, o mesmo Le Corbusier afirmoualgum tempo depois: “Parecia que Paris não suportaria a cirurgia de Haussmann.Ora, Paris não vive hoje do que fez esse homem temerário e corajoso? ... Éver<strong>da</strong>deiramente admirável o que soube fazer Haussmann”. 275Esta ambigüi<strong>da</strong>de aponta para o fato, descrito por Clark, de que ospropósitos de Haussmann “eram muitos e contraditórios”. 276 A contra-revoluçãoera um deles, assim como a certeza nos benefícios gerados pelas obras públicas ea urgência em modernizar a ci<strong>da</strong>de. Não se deve desconsiderar tamb<strong>é</strong>m o desejode abrilhantar uma ci<strong>da</strong>de imperial para ser exibi<strong>da</strong> aos estrangeiros. Walter269 CLARK, T. J. op. cit., p. 60.270 ABOUT, Edmond. L’Homme à l’oreille cass<strong>é</strong>e. p. 196. apud CLARK, T. J. op. cit., p. 74.271 BENJAMIN, W. Passagens... p. 174. [E 5a,8].272 FOURNIER, Édouard. Chroniques et L<strong>é</strong>gendes des Rues de Paris. Paris, 1864. p. 16. apud BENJAMIN,W. Passagens... p. 179. [E 9,1].273 LEVASSEUR, Histoire des Classes Ouvrières et de l’Industrie en France, II. Paris: 1904, p. 775.BENJAMIN, W. Passagens... p. 164. [E 2,1].274 LE CORBUSIER, Urbanisme. Paris, 1925. p. 250. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 166. [E 2a,1].275 Ibid., p. 149. apud Ibid., p. 173. [E 5a,6].

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