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Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação - capes

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Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo – USPFaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCHDepartamento <strong>de</strong> Ciência PolíticaConrado Hübner Men<strong>de</strong>s<strong>Direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res e <strong>de</strong>liberaçãoSão Paulo2008


Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo – USPFaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCHDepartamento <strong>de</strong> Ciência Política<strong>Direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res e <strong>de</strong>liberaçãoConrado Hübner Men<strong>de</strong>sTese apresentada aoDepartamento <strong>de</strong> Ciência Políticada Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letrase Ciências Humanas da Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> São Paulo, para a obtenção dotítulo <strong>de</strong> Doutor em Ciência Política.Orientador: Prof. Álvaro <strong>de</strong> VitaSão Paulo20082


Ninguém tem a última palavra porque não há última palavra.Hanna Pitkin 11 “No one has the last word because there is no last word”. (“Obligation and Consent—II”, p. 52)3


ResumoO controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leis sempre foi objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança da teoria<strong>de</strong>mocrática. Sob qual justificativa juízes não eleitos po<strong>de</strong>m ter a última palavrasobre o significado <strong>de</strong> direitos <strong>fundamentais</strong>? É assim que a questão costumou serformulada pela tradição. Alguns a respon<strong>de</strong>ram em favor <strong>de</strong>sse arranjo, outros em<strong>de</strong>fesa da supremacia do parlamento. Essa seria uma encruzilhada da <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res e as “teorias da última palavra” se enfrentam nesses termos. A tese investigauma saída alternativa para esse dilema, oferecida pelas “teorias do diálogoinstitucional”. Segundo essa corrente, a última palavra, na <strong>de</strong>mocracia, não existe. Otrabalho <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que ambas as perspectivas, última palavra e diálogo, têm papelanalítico importante a cumprir. Propõe que uma interação <strong>de</strong> caráter <strong>de</strong>liberativo, enão somente adversarial, entre os po<strong>de</strong>res, tem maiores possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>, ao longo dotempo, produzir boas respostas sobre os direitos <strong>fundamentais</strong>. Torna a <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res sensível ao bom argumento.AbstractThe judicial review of legislation has always been un<strong>de</strong>r the distrust of <strong>de</strong>mocratictheory. Un<strong>de</strong>r what justification can unelected judges have the last word uponfundamental rights? That’s the way the question has been formulated by the tradition.Some are favourable to this institutional arrangement, whereas others <strong>de</strong>fend thesupremacy of parliament. This would be the crossroads of the separation of powersand “theories of last word” face the dispute on the basis of these terms. The thesisinvestigates an alternative response to this dilemma, offered by “theories ofinstitutional dialogue”. According to it, there is no last word in a <strong>de</strong>mocracy. Thedissertation <strong>de</strong>fends that both perspectives – last word and dialogue – have animportant analytical role to play. It proposes that an interaction of a <strong>de</strong>liberative kindrather than adversarial is more likely, in the long term, to produce better answersabout rights. It turns separation of powers sensitive to the quality of argument.4


ÍNDICECapítulo 1 6O mesmo velho problemaCapítulo 2 61A inclinação por juízes e cortes constitucionaisCapítulo 3 85A inclinação por legisladores e parlamentosCapítulo 4 104A inclinação por ambos: diálogo sem última palavraCapítulo 5 169Auto-governo e direito ao erroCapitulo 6 176Separação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e os tempos da política: diálogo ou última palavra?Capítulo 7 198Separação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e legitimida<strong>de</strong>: <strong>de</strong>liberação inter-institucionalCapítulo 8 224Constitucionalismo brasileiro: entre a retórica do guardião entrincheirado e aprática do guardião acanhadoConclusões 2565


Capítulo 1O mesmo velho problema1. IntroduçãoCerto senso comum costuma supor que parlamentos seriam a expressão maisdireta da <strong>de</strong>mocracia, enquanto que constituições e <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> direitos, somados àrevisão judicial, 2 a manifestação auto-explicativa do constitucionalismo. 3Controvérsias sobre quem <strong>de</strong>veria ter a última palavra em conflitos sobre direitos<strong>fundamentais</strong>, <strong>de</strong>ssa maneira, são percebidas como uma tensão não apenas entre duasinstituições – parlamentos e cortes – mas também entre dois i<strong>de</strong>ais políticos –respectivamente, <strong>de</strong>mocracia e constitucionalismo. Se o primeiro se propõe a realizaralgum tipo <strong>de</strong> governo do povo, o segundo busca assegurar que o po<strong>de</strong>r tenhalimites. 4 - 5 Por trás da interação entre aquelas duas instituições, portanto, encontra-se oproblema do balanceamento das <strong>de</strong>mandas procedimentais e substantivas <strong>de</strong>sses doisi<strong>de</strong>ais. 6 Várias dificulda<strong>de</strong>s conceituais, morais e institucionais <strong>de</strong>correm <strong>de</strong>ssesslogans abstratos, particularmente se o mesmo sistema político persegue acombinação dos dois i<strong>de</strong>ais como fundamento <strong>de</strong> sua legitimida<strong>de</strong> e da cobrançajustificada <strong>de</strong> obediência. Essa combinação foi a escolha da maioria dos regimespolíticos oci<strong>de</strong>ntais durante o séc. XX, e a expressão “<strong>de</strong>mocracia constitucional” o2 Pela simplicida<strong>de</strong>, opto pela expressão “revisão judicial” para referir-me ao controle judicial <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong>.3 Abor<strong>de</strong>i essa associação entre, <strong>de</strong> um lado, <strong>de</strong>mocracia e parlamento, e, <strong>de</strong> outro, constitucionalismoe corte constitucional, no cap. 1 <strong>de</strong> minha dissertação <strong>de</strong> mestrado (cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong>e Democracia, p. 10).4 Frank Michelman resume melhor essa tensão: “‘Democracy’ appears to mean something like this:popular political self-government – the people of a country <strong>de</strong>ciding for themselves the content (…) ofthe laws that organize and regulate their political association. ‘Constitutionalism’ appears to meansomething like this: the containment of popular political <strong>de</strong>cision-making by a basic law, theConstitution – ‘a law of lawmaking’, we shall sometimes call it – <strong>de</strong>signed to control which furtherlaws can be ma<strong>de</strong>, by whom, and by what procedures” (cf. Brennan and Democracy, p. 5).5 Cf. os argumentos <strong>de</strong> Dworkin sobre a inter<strong>de</strong>pendência, ao invés <strong>de</strong> tensão, entre esses dois i<strong>de</strong>ais etambém a tese sobre a “unida<strong>de</strong> do valor” e a inseparabilida<strong>de</strong> entre os conceitos políticos. Freedom’sLaw, “Introduction”; “Hart’s Postcript and the Character of Political Philosophy”; e Justice forHedgehogs.6 Os problemas oriundos <strong>de</strong> se conceber <strong>de</strong>mandas procedimentais e substantivas, tanto da <strong>de</strong>mocraciaquanto do constitucionalismo, serão melhor abordados no tópico 5 abaixo, on<strong>de</strong> tento sistematizaralguns dos principais níveis teóricos em que essa discussão da teoria política geralmente ocorre, etambém no capítulo 7.6


nome convencionado para se referir a eles. Apesar das diferenças, esses regimescompartilham alguns <strong>de</strong>nominadores comuns do ponto <strong>de</strong> vista institucional. Para ospropósitos <strong>de</strong>sse trabalho, é suficiente observar que quase todos possuem umaconstituição escrita, um po<strong>de</strong>r legislativo eleito e uma corte constitucional que exerceo controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. 7Uma explicação hegemônica da divisão <strong>de</strong> trabalho entre essas duasinstituições é dada por Ronald Dworkin, que enxerga a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> direitos<strong>fundamentais</strong> como a tarefa central das cortes – o “fórum do princípio” – e a<strong>de</strong>liberação sobre políticas públicas (policies) o papel principal <strong>de</strong> parlamentos eleitos– que po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong> “fórum da utilida<strong>de</strong>”. Para ele, a objeção <strong>de</strong>mocráticacontra a legitimida<strong>de</strong> da revisão judicial confun<strong>de</strong> o que a <strong>de</strong>mocracia efetivamentesignifica. De acordo com sua concepção constitucional <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia, 8 esse regimetem alguns requisitos morais substantivos que não são atendidos necessariamente porum procedimento majoritário, mas pela “resposta certa” sobre direitos <strong>fundamentais</strong>. 9O procedimento <strong>de</strong>cisório, nesse caso, pouco importa para a legitimida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>cisão.Tal “resposta certa” sobre direitos <strong>fundamentais</strong> é inspirada pelo i<strong>de</strong>al da “igualconsi<strong>de</strong>ração e respeito”, e ajuda a promover a “filiação moral” <strong>de</strong> cada pessoa àcomunida<strong>de</strong> política. Sem essa filiação moral prévia, procedimentos majoritários (ouquaisquer outros) não teriam absolutamente nenhum valor e não satisfariam umpadrão minimamente <strong>de</strong>sejável <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>. 10 Em resumo, <strong>de</strong>mocracia, quando estão7Obviamente, esse retrato simplifica as variações institucionais encontradas nas <strong>de</strong>mocraciascontemporâneas. Tais variações passam <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los fortes <strong>de</strong> revisão judicial (o mo<strong>de</strong>lo difuso norteamericanoe o mo<strong>de</strong>lo concentrado germânico são os dois “tipos puros” encontrados na literaturacomparada) para mo<strong>de</strong>los fracos <strong>de</strong> revisão judicial (encontrados em inovações recentes <strong>de</strong>ntro do“constitucionalismo do commonwealth”, especialmente no Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido), oumesmo para mo<strong>de</strong>los não judiciais, como o francês. As preocupações teóricas apontadas aqui, contudo,são mais abrangentes e não precisam se restringir a um único arranjo institucional. Esse capítuloabordará mais adiante o “isolamento das variáveis institucionais” (cf. Stephen Gardbaum, “The NewCommonwealth Mo<strong>de</strong>l of Constitutionalism”).8 Dworkin, em mais uma confirmação <strong>de</strong> sua versatilida<strong>de</strong> terminológica para um mesmo conceito,também chamou sua concepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> “communal conception ” ou “partnershipconception” em outras oportunida<strong>de</strong>s.9 Para Waldron, Dworkin também comete o erro <strong>de</strong> inferir um arranjo institucional a partir <strong>de</strong> umaconsi<strong>de</strong>ração substantiva, o que confundiria as duas tarefas principais da filosofia política. Umprocedimento <strong>de</strong>cisório, <strong>de</strong> acordo com ele, não po<strong>de</strong> ser justificado em termos <strong>de</strong> substância (cf.“Freeman's Defense of Judicial Review”).10 Trata-se da distinção que, em outro texto, Dworkin faz entre “legitimate majority rule” e “meremajoritarianism” (cf. “Constitutionalism and Democracy”, p. 1).7


em jogo direitos <strong>fundamentais</strong>, é uma questão <strong>de</strong> output substantivo, não <strong>de</strong> inputprocedimental. 11A maioria das <strong>de</strong>mocracias constitucionais contemporâneas apresenta, comofilosofia política <strong>de</strong> base, alguma versão <strong>de</strong>ssa explicação dworkiniana.In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> variações no <strong>de</strong>talhe, a prática da revisão judicial éfreqüentemente associada a promessas mais ou menos ambiciosas <strong>de</strong> proteção <strong>de</strong>direitos e das minorias. 12 Pretendo testar essa justificativa tradicional à luz <strong>de</strong> recentescríticas e outros tipos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa da revisão judicial.Nesse longo capítulo <strong>de</strong> abertura, resumo o argumento <strong>de</strong>senvolvido emminha dissertação <strong>de</strong> mestrado, mostro os alvos atacados, os passos conquistados e osproblemas ainda não resolvidos (tópico 2). Naquela oportunida<strong>de</strong>, esbocei um mo<strong>de</strong>lo<strong>de</strong> revisão judicial como contra-po<strong>de</strong>r e operador <strong>de</strong> veto, não como “reserva <strong>de</strong>justiça” da <strong>de</strong>mocracia. No terceiro tópico, explico o percurso argumentativo <strong>de</strong>statese, em estrita continuida<strong>de</strong> com a dissertação, e a sua estrutura <strong>de</strong> capítulos. Noquarto, faço algumas digressões metodológicas que clareiam questões subjacentes àtese. Finalmente, articulo uma estrutura analítica para teorizar sobre a <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res. A intenção é ilustrar como as discussões sobre o papel da revisão judicial na<strong>de</strong>mocracia não po<strong>de</strong>m ignorar a pergunta complexa que a teoria da <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>ve enfrentar: quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o que e como e quando e por que numa<strong>de</strong>mocracia? 13 Diferentes abordagens da revisão judicial dão respostas alternativas aessa questão, mesmo quando não assim estruturadas ou não explicitem todos os seuselementos. Mostro, ainda nesse tópico, os níveis <strong>de</strong> análise em que os <strong>de</strong>sacordos<strong>de</strong>ssas teorias ocorrem e como tal pergunta ajuda a suscitar o problema <strong>de</strong> maneiramais produtiva. Encerro o capítulo com um preâmbulo dos três capítulos seguintes.11 Dworkin <strong>de</strong>senvolve diferentes partes <strong>de</strong>sse argumento amplo em diferentes lugares. Suas principaisreferências no assunto são Freedom’s Law, “Introduction”, Sovereign Virtue, capítulos 1 e 2, “Equality,<strong>de</strong>mocracy and Constitution: we the people in court”, e “The Partnership Conception of Democracy”.12 Há também outras justiticativas para a revisão judicial, como a supremacia da constituição, o estado<strong>de</strong> direito e o fe<strong>de</strong>ralismo. Não serão, porém objeto <strong>de</strong>sse trabalho, exceto inci<strong>de</strong>ntalmente.13 Omito a dimensão <strong>de</strong> “on<strong>de</strong>” para evitar outras discussões intrincadas sobre espaço politico,soberania estatal, instituições internacionais etc., que não se aplicam a essa tese.8


2. Controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>: reserva <strong>de</strong> justiça ou contrapo<strong>de</strong>r?Álvaro <strong>de</strong> Vita, em prefácio ao livro <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> minha dissertação <strong>de</strong>mestrado, 14 resume o argumento lá presente: “Se recusamos a justificação maisambiciosa para o instituto do controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> – a <strong>de</strong> que o tribunal, porser o ‘fórum do princípio’, estaria mais apto do que a legislatura para garantir direitose liberda<strong>de</strong>s <strong>fundamentais</strong> protegidos constitucionalmente –, haveria alguma outraforma <strong>de</strong> justificá-lo? Possivelmente, sim. Mas uma justificação menos ambiciosaprovavelmente também leva a um entendimento mais circunspecto e pru<strong>de</strong>nte daautorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar o controle jurisdicional <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. Apesar <strong>de</strong> oargumento <strong>de</strong> teor negativo ser o forte <strong>de</strong>ste livro, há também algumas pistas (que,quem sabe, po<strong>de</strong>riam ser objeto <strong>de</strong> reflexão mais forte do autor em outro trabalho)para pensar o problema nessa direção”. 15Nesse resumo, procurarei <strong>de</strong>screver o ponto <strong>de</strong> chegada da pesquisa <strong>de</strong>mestrado que, <strong>de</strong> alguma maneira, é o ponto <strong>de</strong> partida para essa tese. As “pistas” arespeito <strong>de</strong> argumentos positivos sobre o papel da revisão judicial lá presentes serãoobjeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento mais cuidadoso. Aquele texto promoveu algumasrealizações importantes: afastou justificativas apressadas do controle <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong>, as quais, em geral, ten<strong>de</strong>m a dar um “cheque em branco” aotribunal e a lhes conferir uma cre<strong>de</strong>ncial especial; relativizou duas inferênciasconsolidadas e pouco tematizadas na literatura constitucional brasileira: (i) se<strong>de</strong>mocracia não é só vonta<strong>de</strong> da maioria, uma instituição anti-majoritária é <strong>de</strong>sejável enecessária, 16 e (ii) se a constituição é suprema e <strong>de</strong>ve ser obe<strong>de</strong>cida inclusive pelolegislador, <strong>de</strong>ve existir um agente controlador externo que fiscalize tal obediência; 17reafirmou a incerteza e a falibilida<strong>de</strong> da política em face das promessas arriscadas da14 Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, dissertação <strong>de</strong> mestrado <strong>de</strong>fendida em janeiro <strong>de</strong>2004.15 Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. XXI.16 Esta inferência <strong>de</strong>correria do vício <strong>de</strong> se <strong>de</strong>rivar um <strong>de</strong>terminado conteúdo a partir <strong>de</strong> uma certaforma, um resultado a partir <strong>de</strong> certo procedimento <strong>de</strong>cisório. Defendi que a reserva <strong>de</strong> justiça não<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> e que isso correspon<strong>de</strong>ria a confundir, nos termos <strong>de</strong>Waldron, teoria da justiça com teoria da autorida<strong>de</strong>.17 Veremos novamente essa discussão nos capítulos 2 e 3, e também como Carlos Santiago Nino tratado tema (cf. The constitution of <strong>de</strong>liberative <strong>de</strong>mocracy, p. 189-196).9


teoria constitucional em nome da efetivação <strong>de</strong> direitos; 18 reduziu expectativas emrelação ao tribunal constitucional, que não tem como carregar o ônus <strong>de</strong> nos protegercontra as intempéries da política; 19 apresentou, ainda <strong>de</strong> forma embrionária, um papela ser <strong>de</strong>sempenhado pela revisão judicial: a corte como um contrapeso à políticamajoritária e, mais do que isso, como instituição com a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inserir umargumento moral na agenda, que chamei <strong>de</strong> processo <strong>de</strong> interlocução institucional. Asidéias <strong>de</strong> “<strong>de</strong>saceleração da política majoritária” e <strong>de</strong> “interlocução institucional” sãoas “pistas” que essa tese procurará dissecar.A dissertação formulou um argumento negativo contra uma forma tradicional<strong>de</strong> se pensar a revisão judicial. Não somou a isso um argumento positivo em favor dolegislador, <strong>de</strong>dução equivocada que eventualmente se faz em face <strong>de</strong> objeções contraa revisão judicial. Criticar a revisão não equivale, portanto, a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rnecessariamente o legislador eleito. Ataquei uma certa justificativa, não a existênciado controle. Não se trata <strong>de</strong> exercício trivial, pois a forma <strong>de</strong> justificar <strong>de</strong>terminacomo enten<strong>de</strong>mos o papel <strong>de</strong>ssa instituição, como <strong>de</strong>positamos expectativas sobre oseu <strong>de</strong>sempenho e como efetivamente ela opera essa função.Sustentei que essa forma convencional <strong>de</strong> olhar para o controle <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong> superestima seu papel e sua responsabilida<strong>de</strong>, ao mesmo tempoque atrofia os dos outros po<strong>de</strong>res. A constituição, assim, passa a ter um único centro<strong>de</strong> gravida<strong>de</strong>, um único guardião. Os outros atores políticos vão testandoimpunemente os seus limites. Nenhuma con<strong>de</strong>nação moral recai sobre eles porque,afinal, não têm a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> promover os valores constitucionais, mas apenas<strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões políticas ordinárias. Deferem, comodamente, o escrutínio18 Dilemas constitucionais, como todo dilema moral, nem sempre terminam ou mesmo permitem“finais felizes” (expressão famosa <strong>de</strong> Dworkin, que disse ser o objetivo da interpretação jurídicaterminar em “happy endings”). Freqüentemente, envolvem “tragédias”, soluções “não ótimas”, às vezesencobertas por trás da cortina <strong>de</strong> fumaça <strong>de</strong> uma retórica constitucional contemporizadora. Isso não éproduto apenas <strong>de</strong> eventual “erro judicial”, mas da essência mesma da interpretação constitucional.Três referências interessantes a respeito são: Rebecca Brown, “Constitutional Tragedies”, emConstitutional Stupidities and Constitutional Tragedies, p. 39; James E. Fleming, SecuringConstitutional Democracy (em especial o cap. 10, “Constitutional Imperfections and the Pursuit ofHappy Endings”, p. 210); e Lorenzo Zucca, Constitutional Dilemmas.19 Louis Fisher, em referência à <strong>de</strong>cisão do caso Dred Scott, que culminou na Guerra Civil americana,afirmou: “The belief in judicial supremacy imposes a bur<strong>de</strong>n that a Court cannot carry. It sets upexpectations that invite disappointment if not disaster”. Em outra passagem, enfatizou a mesma idéia:“The habit of looking automatically to the courts to protect constitutional liberties is ill-advised” (cf.Constitutional Dialogues, p. xx).10


constitucional ao tribunal e abdicam da tarefa <strong>de</strong> formular um argumentoconstitucional consistente e sincero.Claro que dificilmente alguém verbaliza isso. Nenhum livro <strong>de</strong> direitoconstitucional diz que os po<strong>de</strong>res têm carta branca para violar a constituição e quepo<strong>de</strong>mos nos tranqüilizar pois, em última instância, o tribunal recomporá a or<strong>de</strong>mpolítico-constitucional. Eventualmente, chegam até a mencionar o papel dos outrospo<strong>de</strong>res. Na prática, porém, as implicações <strong>de</strong> certas ênfases no papel messiânico dotribunal continuam a produzir uma cultura jurídica centrada nas cortes judiciais eexcessivamente apegada ao “guardião da constituição”, o que acaba por empobrecer aexperiência <strong>de</strong>mocrática.Muitas das conclusões da dissertação são meras aplicações, àquela questãoespecífica, <strong>de</strong> certas máximas da sabedoria política: não há procedimento que garantaresultados justos; não há instituição infalível, por melhor que seja <strong>de</strong>senhada; <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>terminada concepção <strong>de</strong> justiça substantiva não advém um <strong>de</strong>senho institucional.Opor-se a certas justificativas da revisão judicial não significa abdicar do <strong>de</strong>batesubstantivo. Em outras palavras, atacar seu lastro teórico convencional não implicacurvar-se a qualquer <strong>de</strong>cisão majoritária, ou a ser obrigado a permanecer em silêncioquanto à justiça das <strong>de</strong>cisões legislativas – “quem” e “como” <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> é uma questãodiferente <strong>de</strong> “o que” <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>. Saber quem <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir, portanto, não é questão <strong>de</strong>hermenêutica constitucional, mas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho institucional – boas técnicas <strong>de</strong>interpretação constitucional não resolvem qualquer objeção <strong>de</strong>mocrática a qualquerinstituição, não indicam quem <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir. 20Argumentei que uma <strong>de</strong>scrição fantasiosa da missão do controle <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong> se acomoda a uma postura complacente que não interpela alegitimida<strong>de</strong> do STF quando este <strong>de</strong>clara a inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma lei ouemenda constitucional.Uma crítica suscitada contra meu argumento cogitou que ele promoveria uma<strong>de</strong>fesa ingênua e purista da <strong>de</strong>mocracia representativa por <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar um20 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 12-13.11


importante fórum <strong>de</strong> oposição <strong>de</strong>mocrática e por, supostamente, fazer vistas grossasao papel fundamental que o judiciário tem cumprido no período <strong>de</strong> re<strong>de</strong>mocratização.“Purista” e “ingênua”, ou mesmo “i<strong>de</strong>alista” e “utópica” são adjetivos por meio dosquais se costuma criticar a teoria política normativa, sem compreen<strong>de</strong>r o seu papel <strong>de</strong>fixar valores e parâmetros que auxiliam no julgamento e na reforma das instituiçõesreais. Por trás <strong>de</strong>ssa crítica, também po<strong>de</strong> haver uma ingenuida<strong>de</strong> ainda maisalarmante: supõe que o tribunal po<strong>de</strong> fazer o que as instituições representativas nãotêm feito. Por fim, essa crítica revela também uma incompreensão: apresentar umaobjeção aos modos <strong>de</strong> justificar o controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> não tem nenhumarelação com uma crítica geral ao papel do judiciário na <strong>de</strong>mocracia, e tampoucoi<strong>de</strong>aliza o legislador representativo.Minha dissertação tratou do tema pela lente <strong>de</strong> dois autores contemporâneosque protagonizam este <strong>de</strong>bate, Ronald Dworkin e Jeremy Waldron, e tentou transporesta matriz <strong>de</strong> análise para o regime constitucional brasileiro.Para Dworkin, a <strong>de</strong>mocracia, na sua versão mais genuína e <strong>de</strong>sejável, não éapenas um regime em que indivíduos se juntam para tomar <strong>de</strong>cisões coletivas,processar seus interesses individuais e convertê-los em política pública por intermédioda regra <strong>de</strong> maioria. Democracia é também isso, mas, antes, precisa conquistar afiliação moral <strong>de</strong> seus membros na comunida<strong>de</strong> política. Portanto, para que todospossam se juntar, agregar seus interesses e conferir qual será o produto final, é precisoque se sintam pertencentes a essa comunida<strong>de</strong>. Este laço moral se forma somente pormeio <strong>de</strong> requisitos substantivos, traduzidos pela síntese da “igual consi<strong>de</strong>ração erespeito”.Democracia, assim, para que mereça o lugar <strong>de</strong> epítome da justiça política, nãopo<strong>de</strong> se restringir à satisfação do bem-estar geral (questões <strong>de</strong> policy), mas <strong>de</strong>verespeitar direitos individuais (questões <strong>de</strong> princípio). As <strong>de</strong>cisões sobre a primeiradimensão se legitimam pelo critério <strong>de</strong> “quem” e “como” <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>: um parlamentorepresentativo por meio do método puramente estatístico da regra <strong>de</strong> maioria, quepromove a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> impacto – “um homem, um voto” (legitimação ex ante). As<strong>de</strong>cisões sobre a segunda, no entanto, legitimam-se apenas por seu conteúdo, pelaresposta certa, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>cida (legitimação ex post). Se ao12


tribunal couber essa missão, não há que se questionar sua falta <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> pornão ter sido eleito, pois esta não seria a forma <strong>de</strong> mensurar a legitimida<strong>de</strong> do “fórumdo princípio”.Jeremy Waldron rejeita esta justificativa. Ela <strong>de</strong>sprezaria, afinal, o <strong>de</strong>sacordomoral reinante numa socieda<strong>de</strong> pluralista, circunstância fundamental da políticacontemporânea. Atribuir a juízes a <strong>de</strong>cisão sobre questões moralmente controversas,retirando dos cidadãos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> emitir seu juízo moral num procedimentomajoritário, <strong>de</strong>srespeitaria o que a <strong>de</strong>mocracia teria <strong>de</strong> mais valioso: a inexistência <strong>de</strong>hierarquia entre os cidadãos, que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m em igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> condições seus problemascoletivos. Como não há acordo possível sobre conteúdo, há que se fazer um acordoprocedimental para <strong>de</strong>cidir tal conteúdo: sua proposta é a maximização do direito <strong>de</strong>participação, o direito dos direitos, que permite a todos se realizarem igualitariamentecomo sujeitos autônomos em votação pública.Segundo ele, quando a teoria política se propõe a construir um arranjoinstitucional, a pergunta <strong>de</strong>cisiva a se fazer é “quem <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir?”, jamais “o que<strong>de</strong>cidir?”. Dado que as instituições são falíveis e que sempre haverá <strong>de</strong>sacordo sobre acorreção ou a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões, a promessa substantivista <strong>de</strong> que dadainstituição é legítima porque respeita direitos não po<strong>de</strong> ser cumprida. O <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>obediência às suas <strong>de</strong>cisões não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do seu acerto. 21 A revisão judicial,neste sentido, <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>scrita <strong>de</strong> forma mais realista e sincera, na perspectivaexclusivamente procedimental: quando legislador e corte discordam, a vonta<strong>de</strong> daúltima prevalece. É a isso, e a nada mais, que correspon<strong>de</strong> este arranjo institucional.Vista <strong>de</strong>ssa perspectiva, a revisão judicial per<strong>de</strong> o lastro simbólico sedutor quetradicionalmente vem a reboque <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>scrição: a promessa <strong>de</strong> proteção dos direitos<strong>fundamentais</strong>.Isso não significa, para Waldron, que a teoria política não possa enfrentar oproblema da justiça. Este estaria, todavia, em outro plano cognitivo, diferente do21 Essa discussão aparece em profusão, obviamente, na teoria do direito. Neil MacCormick, porexemplo, traduz esse mesmo problema por meio da distinção entre a “valida<strong>de</strong>” da <strong>de</strong>cisão judicial (e,portanto, o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cê-la), <strong>de</strong> sua “correção”. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceber um juiz “falível”<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgar a correção <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>cisão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua valida<strong>de</strong> (cf.Rhetoric and the Rule of Law, cap. 13).13


institucional, que somente po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finido em termos formais, por meio daindicação <strong>de</strong> “quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>”. Saber o que é o conteúdo da <strong>de</strong>mocracia continuaria napauta da teoria política, como fonte <strong>de</strong> argumentação e convencimento, mas nãopo<strong>de</strong>ria interferir no <strong>de</strong>senho das instituições <strong>de</strong>mocráticas. O erro da teoriaconstitucional teria sido misturar os dois planos.Comparei os argumentos <strong>de</strong> Dworkin e Waldron por dois ângulos. Pelo prismada igualda<strong>de</strong> política, 22 Waldron aponta para a conquista moral que a regra da maioriarepresenta. Dworkin, por sua vez, busca uma versão mais autêntica <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>, quenão se limite à noção mo<strong>de</strong>sta por trás do voto majoritário – a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>consi<strong>de</strong>ração e respeito. Em segundo lugar, indiquei como ambos se posicionam emrelação à epistemologia moral e suas implicações. Para Waldron, a eventual existência<strong>de</strong> resposta certa para os dilemas morais é irrelevante para os fins <strong>de</strong> se pensar eminstituições, uma vez que o <strong>de</strong>sacordo moral em socieda<strong>de</strong>s pluralistas resiste aosmelhores argumentos. Do <strong>de</strong>sacordo inexorável, resta apenas adotar um procedimentoque dê a cada indivíduo o mesmo valor. Para Dworkin, mesmo que não seja possível<strong>de</strong>monstrar a resposta certa e que cortes possam errar, estas estariam melhorposicionadas e teriam uma expertise para encontrar tal resposta.Argumentei, a<strong>de</strong>rindo a uma parcela dos argumentos <strong>de</strong> Waldron, que a <strong>de</strong>fesada revisão judicial naqueles termos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> uma presunção da infalibilida<strong>de</strong>judicial e do egoísmo legislativo (ou ao menos da “menor falibilida<strong>de</strong> judicial”). 23Consi<strong>de</strong>rando, conforme propõe o próprio Dworkin, que a interpretação das cláusulasabstratas da constituição é ato criativo <strong>de</strong> manifestação <strong>de</strong> convicções morais, e nãoum juízo técnico <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivação lógica, torna-se ainda menos plausível aquele tipo <strong>de</strong>construção teórica. Com base num sofisma (“da supremacia da constituição <strong>de</strong>corre ocontrole <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>”), nasceu uma larga corrente do direito constitucionalque esfumaçou o papel que essa instituição po<strong>de</strong> efetivamente cumprir numa<strong>de</strong>mocracia. Esta <strong>de</strong>scrição edulcorada da <strong>de</strong>mocracia não cumpre o <strong>de</strong>ver teórico eempírico <strong>de</strong> analisar se tribunais constitucionais reais efetivamente realizam aspromessas do constitucionalismo. Satisfaz-se com uma legitimação ex ante e abstrata.22 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 115.23 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 121.14


Entretanto, se não po<strong>de</strong> haver resposta teórico-normativa para questãoempírico-<strong>de</strong>scritiva, e se “respeitar direitos”, condição <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> da revisãojudicial nesta corrente, é questão empírica (substantiva, não meramenteprocedimental), a teoria constitucional tem o ônus <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que o judiciário“respeita direitos”. 24 Mesmo que perseguisse este propósito e lançasse mão <strong>de</strong>análises <strong>de</strong> jurisprudência para avaliar a correção das <strong>de</strong>cisões, como o fez Dworkin,esta busca seria pouco frutífera para justificar a revisão judicial, uma vez que orespeito a direitos não se prova <strong>de</strong> maneira incontroversa. 25 Além disso, para fins dasescolhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho institucional, um exame do mérito comparativo <strong>de</strong> parlamentos ecortes não po<strong>de</strong>ria ser caso a caso.A dissertação lançou mão <strong>de</strong> outro fundamento para justificar a revisãojudicial. Olhando para a constituição como máquina procedimental que dilui asfunções da soberania para que elas se controlem mutuamente, e não para que tenhammissões substantivas, a revisão judicial po<strong>de</strong> receber explicação mais convincente. Sea <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>cisória que distribui faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vetar e <strong>de</strong>estatuir, caberia ao judiciário, quando dotado <strong>de</strong> um bom argumento, vetar <strong>de</strong>cisõeslegislativas com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualificar a interlocução institucional comargumentos moralmente <strong>de</strong>nsos.Esse veto se justifica não pelo seu conteúdo, que será necessariamentecontroverso, mas pela razão pru<strong>de</strong>ncial <strong>de</strong> acautelar o sistema político contrasobressaltos majoritários. O que ele faz, portanto, não é assegurar o mínimo ético doregime <strong>de</strong>mocrático, mas retardar o processo <strong>de</strong>cisório, esperando que o tempo possacontribuir para uma <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa. Portanto, <strong>de</strong>ntre osvários tipos <strong>de</strong> fundamentos existentes para a revisão judicial, cada um <strong>de</strong>les comimplicações práticas distintas, a dissertação opta por aquele que <strong>de</strong>si<strong>de</strong>aliza o papel<strong>de</strong>ste arranjo, eximindo-o da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvar a <strong>de</strong>mocracia dos perigos dapolítica. Trata a corte com a mesma <strong>de</strong>sconfiança tradicionalmente dispensada aolegislador, e confere as implicações teóricas <strong>de</strong>ssa atitu<strong>de</strong>. 2624 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 27 e 127-128.25 A natureza da argumentação jurídica, conforme Neil MacCormick, é persuasiva, não <strong>de</strong>monstrativa.(cf. Rhetoric and the Rule of Law, p. 2).26 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 133.15


No lugar <strong>de</strong> justificar a revisão judicial com base na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção<strong>de</strong> direitos <strong>fundamentais</strong>, sustentei que a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e seu potencial para alimitação da autorida<strong>de</strong> política propiciam uma base mais sólida para este arranjo. 27Em vez <strong>de</strong> uma razão messiânica, temos uma razão pru<strong>de</strong>ncial. Mais do que isso,propus uma razão pru<strong>de</strong>ncial ambiciosa: “um veto qualificado pela linguagem dosdireitos”. 28 Essa é a principal “pista” da dissertação que tentarei <strong>de</strong>cifrar nessa tese. Arevisão judicial, além <strong>de</strong> um mero contrapeso ou “um veto a mais”, legitima-se porseu potencial <strong>de</strong> enriquecer a qualida<strong>de</strong> argumentativa da <strong>de</strong>mocracia, por propiciaruma “interlocução institucional”. 29 - 30No sistema constitucional brasileiro promulgado em 1988, uma a<strong>de</strong>sãounânime à justificativa i<strong>de</strong>alista do controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> conduziu-o aoparoxismo. A escolha da revisão judicial, contudo, não po<strong>de</strong> vir no mesmo pacote davalida<strong>de</strong> moral das cláusulas pétreas. 31 Em virtu<strong>de</strong> da existência <strong>de</strong>ssas cláusulas, nãosó o legislador ordinário, mas também o reformador constitucional estão sujeitos àrevisão judicial, que é exercida em dois níveis (contra leis ordinárias e contra emendasconstitucionais). 32 Assim, <strong>de</strong>senha-se um sistema no qual o circuito <strong>de</strong>cisório terminana instituição <strong>de</strong>sprovida do lastro representativo, dotada <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vetar, nãoa <strong>de</strong> estatuir. 33 Para suplantar uma <strong>de</strong>cisão do STF que discor<strong>de</strong> do reformadorconstitucional, somente uma ruptura ou uma convocação constituinte.27 Para localizar essas diferenças na tradição da teoria constitucional, po<strong>de</strong>ríamos dizer que afundamentação da revisão judicial com base na <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res correspon<strong>de</strong> à perspectivamadisoniana, enquanto que aquela com base em direitos <strong>fundamentais</strong>, à perspectiva dworkiniana(alguns diriam lockeana, mas, conforme <strong>de</strong>monstrado por Waldron, Locke <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u restriçõessubstantivas ao po<strong>de</strong>r político baseadas em direitos, jamais um controle institucional sobre olegislador).28 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 133.29Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 132. A idéia <strong>de</strong> “interlocução” e“interlocutor” institucional também aparece em outras partes do livro. Cf. p. 23, 166, 171.30 Esses dois componentes da <strong>de</strong>fesa positiva da revisão judicial ([i] contrapo<strong>de</strong>r / veto e [ii] articulação<strong>de</strong> uma nova linguagem à interlocução institucional) serão <strong>de</strong>senvolvidos, respectivamente, noscapítulos 6 e 7 <strong>de</strong>ssa tese.31 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 166 e 169.32 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 166.33 É hoje pouco plausível afirmar que o controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> se limita a “vetar” e não a“estatuir”, ou, em outros termos, a ser apenas um legislador negativo, não positivo. Há diferentesformas <strong>de</strong> exercer essa faculda<strong>de</strong> criativa. Uma mais atual refere-se aos métodos interpretativos queaceitam a constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leis <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que interpretadas em sentidos específicos. Essacaracterística apenas reforça o caráter problemático <strong>de</strong>ste arranjo, em particular no <strong>de</strong>senho brasileiro.16


A dissertação, ao rejeitar a premissa substantivista em geral invocada para<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r tal enrijecimento do processo <strong>de</strong>cisório, tenta mostrar que a revisão judicial<strong>de</strong> emendas constitucionais carece <strong>de</strong> justificativa mais convincente. Se as instituiçõessão falíveis, e se os casos <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> direitos <strong>fundamentais</strong> são controversos,caberia indagar qual <strong>de</strong>las <strong>de</strong>veria ter o “direito <strong>de</strong> errar por último”. O erro dainstituição majoritária po<strong>de</strong> insuflar maior responsabilida<strong>de</strong> coletiva do que o erro <strong>de</strong>uma instituição não representativa, e a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> errar é inerente ao autogoverno<strong>de</strong>mocrático. Assim, ao aplicar o argumento geral ao <strong>de</strong>senho constitucionalbrasileiro, sustento duas proposições negativas: as razões conhecidas (proteção <strong>de</strong>direitos) não são aceitáveis; as razões residuais (contrapeso institucional) não po<strong>de</strong>mlevar tão longe. 34Robert Dahl, em passagem na qual equipara o papel do tribunal ao regime <strong>de</strong>“quase guardiões” (quasi-guardianship), indica preocupação parecida. A aposta nessetipo <strong>de</strong> arranjo institucional precisa lidar, no plano empírico, com ônus da provaargumentativa, isto é, até que se <strong>de</strong>monstre a existência <strong>de</strong> certas circunstânciasexcepcionadoras (a “tirania da maioria”, p. ex.), presume-se que o legislador eleito é aautorida<strong>de</strong> legítima para dirigir as escolhas morais da <strong>de</strong>mocracia: 35“A heavy bur<strong>de</strong>n of proof should therefore be required before the<strong>de</strong>mocratic process is displaced by quasi guardianship. It should benecessary to <strong>de</strong>monstrate that the <strong>de</strong>mocratic process fails to give equalconsi<strong>de</strong>ration to the interests of some who are subjects to its laws; that thequasi-guardians would do so; and that the injury inflicted on the right toequal consi<strong>de</strong>ration outweighs the injury done to the right of a people togovern itself”. 36O autor reconhece a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se provar cada uma <strong>de</strong>ssas pré-condições ea importância <strong>de</strong> se dar ao povo oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> errar e <strong>de</strong> acertar. Quanto mais <strong>de</strong>lese retira a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atuar autonomamente, atribuindo <strong>de</strong>cisões <strong>fundamentais</strong> aguardiões, menor será a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver um senso <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>34 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, pp. 25 e 129.35 Argumentei <strong>de</strong> forma semelhante na dissertação (Ibid, p. 128 e p. 156)36 “Decison-Making in a Democracy”, p. xx.17


pelas ações coletivas. Essa opção <strong>de</strong>correria <strong>de</strong> uma infantilização paternalista dopovo, que abdica <strong>de</strong> sua autonomia para tomar <strong>de</strong>cisões morais relevantes.A <strong>de</strong>fesa substantiva da revisão judicial aproxima-a do que seria um regime <strong>de</strong>guardiões. Assume que o indivíduo, no ambiente majoritário, ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>cidirirracionalmente e, para protegê-lo, retira <strong>de</strong>le essa competência. Desconfia dacapacida<strong>de</strong> do cidadão passar por um procedimento majoritário. Para <strong>de</strong>cidir sobre oconteúdo <strong>de</strong> tais direitos, juízes estariam em melhor condição do que indivíduosautônomos num foro eleitoral-majoritário.Dahl <strong>de</strong>monstra empiricamente que a Corte americana só conseguiu imporalguns poucos empecilhos à <strong>de</strong>cisão legislativa, os quais somente adiaram a vitória <strong>de</strong>uma maioria estável, ou impediram a vitória <strong>de</strong> uma maioria frágil e episódica. 37 Essainformação empírica traz a medida <strong>de</strong> realismo com o qual a teoria constitucional<strong>de</strong>ve tratar da capacida<strong>de</strong> que tem a revisão judicial, por si só, <strong>de</strong> proteger a<strong>de</strong>mocracia contra os perigos da política.Esta tese dá continuida<strong>de</strong> ao projeto teórico iniciado no mestrado e dialogacom ele. Continua girando em torno <strong>de</strong> um mesmo problema e compartilha <strong>de</strong> suaperplexida<strong>de</strong> inicial: alguns lugares comuns evocados para explicar nosso mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>estado merecem ser postos em xeque, pois são menos auto-evi<strong>de</strong>ntes do que anarrativa constitucional sugere. Desconfiar <strong>de</strong>sses pressupostos nos ajuda a terpercepção mais acurada sobre a dinâmica da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e da proteção <strong>de</strong>direitos numa <strong>de</strong>mocracia. O fato <strong>de</strong> sequer tematizar esses problemas mostra o grau<strong>de</strong> artificialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> boa parte da teoria constitucional brasileira. Acolhidas ourejeitadas, as objeções à revisão judicial <strong>de</strong>vem ser tratadas <strong>de</strong> maneira franca etransparente, e não escondidas por argumentos que dissimulam o problema e pintamum quadro cor-<strong>de</strong>-rosa. 38A tese aceita o argumento central da dissertação, mas, ao ampliar o horizontetemporal em que pensa a política, complementa-o e, sobretudo, relativiza-o,37 Esta consi<strong>de</strong>ração clássica <strong>de</strong> Dahl cumprirá papel importante no capítulo 4, quando discutirei oprisma do “diálogo” para enten<strong>de</strong>r o papel da revisão judicial.38 Uma “rosy picture”, nas palavras <strong>de</strong> Waldron (cf. Law and Disagreement, p. xx).18


<strong>de</strong>senvolvendo algumas intuições lá presentes. Entre duas perspectivas temporais paraa análise da política, po<strong>de</strong>-se dizer que a dissertação ilumina a <strong>de</strong> curto prazo, e osproblemas da <strong>de</strong>finição da última palavra em cada “rodada procedimental”. 39 A tese,por sua vez, aponta para a perspectiva <strong>de</strong> longo prazo e para a continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> taisrodadas procedimentais. Indica a inevitável provisorieda<strong>de</strong> da “última palavra”, apermanência da comunida<strong>de</strong> política no tempo, o seu caráter <strong>de</strong> empreendimentocoletivo que se esten<strong>de</strong>, inclusive, para além <strong>de</strong> cada geração, tanto prospectivaquanto retrospectivamente. 40A tarefa que continua a ser perseguida é a formulação <strong>de</strong> um discurso <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong> que dê à revisão judicial o lugar mais a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong>ntro da <strong>de</strong>mocracia.Seu <strong>de</strong>safio é encontrar um mo<strong>de</strong>lo normativo ambicioso e exigente, que sirva comoguia tanto para orientar a atuação da corte quanto para avaliar seu <strong>de</strong>sempenho. Alémda necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criticar <strong>de</strong>cisões individuais que, isoladamente, po<strong>de</strong>m ser boas oumás, precisamos <strong>de</strong> uma noção clara e consistente <strong>de</strong> qual a missão da corte nesse tipo<strong>de</strong> regime.3. Plano da teseOs três capítulos seguintes <strong>de</strong>screvem e interpretam três tipos <strong>de</strong> respostapresentes na literatura da teoria constitucional. Os dois primeiros (capítulos 2 e 3)correspon<strong>de</strong>m a teorias preocupadas em apontar quem <strong>de</strong>ve ter a “última palavra” 41sobre direitos <strong>fundamentais</strong>. Classifico essas teorias como “mais inclinadas” porcortes constitucionais e juízes ou como “mais inclinadas” por parlamentos elegisladores. A inclinação por juízes, não raro, é baseada no que po<strong>de</strong>ríamos chamar<strong>de</strong> “presunção da infalibilida<strong>de</strong> judicial” (ou da “menor falibilida<strong>de</strong> judicial”). A39 O conceito <strong>de</strong> “rodada procedimental” será melhor <strong>de</strong>senvolvido nos capítulos 5 a 7. Refere-se aocircuito <strong>de</strong>cisório entre os po<strong>de</strong>res até chegar a uma <strong>de</strong>cisão final. Este caráter “final”, porém, étambém relativo e não escapa <strong>de</strong> uma inevitável provisorieda<strong>de</strong>, pois o mesmo tema po<strong>de</strong> renascer nodomínio da <strong>de</strong>liberação política posteriormente, em intervalos maiores ou menores.40 *Gerações passadas e gerações futuras, nossos antepassados e nossos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, também contamnuma <strong>de</strong>mocracia. V. Cecile Fabre, “Rights and Non-Existence”, e Jeb Rubenfeld, Freedom and Time.41 Não sei se, <strong>de</strong>ntro das classificações convencionais da relação entre parlamentos e cortes, já foiutilizada a expressão “teorias da última palavra”. Consi<strong>de</strong>ro essa <strong>de</strong>nominação a<strong>de</strong>quada para os fins daclassificação que proponho. Ela <strong>de</strong>riva do uso abundante <strong>de</strong> expressões como “last word”, “last say”,“ultimate authority”, “supreme authority”, ou simplesmente “supremacy” na literatura a respeito.19


inclinação por legisladores, por sua vez, é baseada na combinação <strong>de</strong> dois elementosusualmente associados com <strong>de</strong>mocracia e igualda<strong>de</strong>: regra <strong>de</strong> maioria e representaçãoeleitoral. Teorias da última palavra, a rigor, não rejeitam algum tipo <strong>de</strong> diálogo ouinteração, mas <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que o circuito <strong>de</strong>cisório possui um ponto final dotado <strong>de</strong>autorida<strong>de</strong> por meio <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão soberana.O terceiro tipo <strong>de</strong> resposta (capítulo 4) é dado por “teorias do diálogoinstitucional”. Basicamente, essas teorias <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que não <strong>de</strong>ve haver competiçãoou conflito pela última palavra, mas um diálogo permanente e cooperativo entreinstituições que, por meio <strong>de</strong> suas singulares expertises e contextos <strong>de</strong>cisórios, sãoparceiros na busca do melhor significado constitucional. Assim, não haveriapriorida<strong>de</strong>, hierarquia ou verticalida<strong>de</strong> entre instituições lutando pelo monopólio<strong>de</strong>cisório sobre direitos <strong>fundamentais</strong>. Haveria, ao contrário, uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>contribuições horizontais que ajudariam a refinar, com a passagem do tempo, boasrespostas para questões coletivas. Separação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, nesse sentido, envolveriacircularida<strong>de</strong> e complementarida<strong>de</strong> infinitas. 42Os capítulos 2 a 4 encerram um primeiro bloco da tese. Correspon<strong>de</strong>m a um<strong>de</strong>terminado modo <strong>de</strong> classificar as teorias da revisão judicial e <strong>de</strong>correm da adoção<strong>de</strong> um critério que consi<strong>de</strong>ro elucidativo. Trata-se, obviamente, <strong>de</strong> uma opção entreoutras válidas, as quais gerariam agrupamentos diferentes. 43 Como em toda42 “Última palavra” e “diálogo” encerram uma forma conveniente <strong>de</strong> se referir ao <strong>de</strong>bate para os meuspropósitos argumentativos. Põe em evidência, afinal, a dimensão temporal (a tensão entre o “último” eo “contínuo”) da política. No entanto, é mais comum a literatura constitucional referir-se,respectivamente, às expressões “supremacia” (seja judicial ou legislativa) ou “constituição fora dascortes” (que <strong>de</strong>staca o exercício da interpretação constitucional nos outros po<strong>de</strong>res).43 Alguns notarão nessa estratégia expositiva dos capítulos 2 a 4 alguma semelhança com a estruturação<strong>de</strong> Wil Waluchow para discutir a objeção <strong>de</strong>mocrática à revisão judicial (cf. A Common Law Theory ofJudicial Review, p. 10-11). Neste livro, o autor também conduz seu argumento em três passos: <strong>de</strong>ntrodo que chamou <strong>de</strong> “standard conception” das cartas <strong>de</strong> direitos, distingue entre os “Advocates” e os“Critics”, e avalia o mérito relativo <strong>de</strong> cada um. Em seguida, para respon<strong>de</strong>r aos argumentosremanescentes dos “Critics” e resgatar os “Advocates”, ele formula a “alternative common lawconception”. Apresenta, assim, duas versões <strong>de</strong> uma abordagem standard que faria suposiçõesproblemáticas, e propõe uma saída por meio <strong>de</strong> uma nova suposição. A seqüência, portanto, é similarcom a <strong>de</strong>sta tese: opõe duas posições essenciais e acha uma terceira via. A oposição inicial (conformeWaluchow, entre Critics e Advocates, e, conforme esta tese, entre os inclinados pela última palavrajudicial e pela última palavra legislativa) é particularmente parecida. Meu critério classificatório,todavia, é distinto, além <strong>de</strong> adotar uma “licença poética” para radicalizar a polarização, combinandoargumentos que, no conjunto, não correspon<strong>de</strong>m precisamente ao que nenhum autor disse. São,portanto, posições estilizadas. A “terceira via”, apresentada no capítulo 4 e <strong>de</strong>pois melhor <strong>de</strong>senvolvidanos capítulos 6 e 7, tem diferenças mais marcantes. Não proponho superar as teorias da última palavra,mas sim integrá-las à perspectiva do diálogo.20


classificação, simplificam-se argumentos e se os reúnem <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um mesmo rótuloabstrato. Utilizo-me <strong>de</strong> uma combinação livre <strong>de</strong> diversos argumentos para construirposições estilizadas. Não proponho, necessariamente, que cada autor acomo<strong>de</strong>-seintegralmente às posições que concebi para fins <strong>de</strong> argumentação. Classificações nãoconseguem fazer justiça ao <strong>de</strong>talhe <strong>de</strong> cada teoria. Não raro, traem-na por salientaralgum componente isolado e fornecendo uma idéia errada <strong>de</strong> seu ponto <strong>de</strong> chegada.Cumprem, entretanto, um <strong>de</strong>terminado propósito. O meu é iluminar um aspectoparticular que suponho ainda não ter sido bem explorado na discussão.Os capítulos 2 e 3 reformulam, grosso modo, as posições gerais por trás dainterface entre Dworkin e Waldron da dissertação. Esses dois autores continuam a seros personagens-símbolo das duas posições antagônicas, ainda que a oposição estejamais robusta e o argumento <strong>de</strong> cada lado mais abrangente. Do lado das teorias dodiálogo, no capítulo 4, Alexan<strong>de</strong>r Bickel mereceria tal título, não tanto por terarticulado todo um argumento a respeito, mas por haver inaugurado essa percepçãosobre o papel da corte. A teia <strong>de</strong> argumentos tornou-se mais variada. Em vez docotejo entre poucos autores, tento promover a interpretação e sistematização <strong>de</strong>gran<strong>de</strong>s posições. Pretendo, assim, montar as peças <strong>de</strong> um edifício mais completo eque propicie uma visão <strong>de</strong> mais longo alcance.O capítulo 5 fará um breve <strong>de</strong>svio para analisar como esses três tipos <strong>de</strong>resposta lidam com uma afirmação convencional da sabedoria política sobre <strong>de</strong>senhoinstitucional (também já explorada na dissertação). Segundo essa afirmação,instituições são falíveis. Mesmo os melhores e mais cautelosos procedimentos estãosujeitos ao erro. Rawls chamou essa fatalida<strong>de</strong> da política <strong>de</strong> “justiça procedimentalimperfeita”. 44 Se isso é verda<strong>de</strong>, supõe-se que a disputa pela “última palavra” é umadisputa em torno do direito <strong>de</strong> errar por último. Como um auto-governo autênticoenvolveria o direito do povo <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r e assumir responsabilida<strong>de</strong> pelos próprioserros, a teoria <strong>de</strong>mocrática teria a responsabilida<strong>de</strong> especial <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que ainstituição encarregada da última palavra promove esse efeito. A perspectivadialógica, por outro lado, diluiria essa preocupação por meio <strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>diferentes <strong>de</strong>cisões distribuídas no tempo. A preocupação com a última palavra, nesse44 Cf. Rawls, A Theory of Justice, p. 85.21


sentido, seria equivocada e a idéia <strong>de</strong> um direito <strong>de</strong> errar por último um nonsense, ou,no mínimo, uma visão limitada e <strong>de</strong> curto prazo.O capítulo 6 avaliará o quanto há <strong>de</strong> complementarieda<strong>de</strong> entre a perspectivado diálogo e as teorias orientadas pelo foco na “última palavra”, e o quanto esseprisma adicional ajuda a resolver a objeção do déficit <strong>de</strong>mocrático da revisão judicial.O argumento da tese propõe que o diálogo, per se, po<strong>de</strong> ser uma resposta fácil quesubestima os críticos da revisão judicial por meio <strong>de</strong> uma imagem que, apesar domérito <strong>de</strong> colocar a discussão num prisma mais aberto e flexível, não resolve todas aspreocupações por trás daquelas objeções. Além disso, a imagem do diálogoescon<strong>de</strong>ria a dimensão do conflito e da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão nas circunstâncias <strong>de</strong><strong>de</strong>sacordo. Esse olhar conciliatório e contemporizador sobre a política traria o risco <strong>de</strong>obscurecer um elemento importante que uma teoria consistente da <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res precisa levar em conta.Em outras palavras, dizer que a revisão judicial não tem a última palavra, jáque as instituições estão dialogando e a história continua, não enfrenta a constataçãoóbvia <strong>de</strong> que nem todos os tipos <strong>de</strong> diálogo são aceitáveis na <strong>de</strong>mocracia e que cada<strong>de</strong>cisão coletiva tem custos e efeitos que precisam <strong>de</strong> justificativa a<strong>de</strong>quada. Entre taiscustos, algumas teorias do diálogo subestimam especialmente o “custo temporal” <strong>de</strong>novas “rodadas procedimentais”. Apesar da importância do prisma do diálogo paracolocar a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res numa perspectiva diacrônica e dinâmica, e além <strong>de</strong>lançar luzes na <strong>de</strong>liberação inter-institucional que, <strong>de</strong> um modo ou <strong>de</strong> outro, ocorre, apreocupação subjacente às “teorias da última palavra” – mesmo que “última palavra”seja uma expressão que induz a mal-entendidos – ainda fornece um dos princípiosoperativos pelo qual po<strong>de</strong>mos pensar em mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> diálogo que sejamnormativamente mais <strong>de</strong>sejáveis na <strong>de</strong>mocracia.Há um momento em que a <strong>de</strong>liberação precisa se encerrar e abrir espaço parauma <strong>de</strong>cisão em face <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sacordo persistente. Dentro do processo legislativo (oumesmo num tribunal), isso se resolve pelo voto. Quando um <strong>de</strong>sacordo persistenteocorre entre diferentes instituições, parece importante encontrar um caminho que oresolva, ainda que temporariamente. Por trás <strong>de</strong>ssa preocupação, há um imperativo doestado <strong>de</strong> direito (rule of law). Assim, uma teoria que não esconda o <strong>de</strong>sacordo e tente22


<strong>de</strong>compor analiticamente tipos <strong>de</strong> conflito institucional, tipos <strong>de</strong> diálogocorrespon<strong>de</strong>ntes e maneiras <strong>de</strong> encontrar soluções temporárias legítimas, seria umaforma mais frutífera <strong>de</strong> teorizar sobre <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res.O capítulo 7 cumprirá a tarefa <strong>de</strong> conceituar padrões normativos para mo<strong>de</strong>losmais <strong>de</strong>sejáveis <strong>de</strong> diálogo. Num nível mais abstrato, diálogo ecoa o tema clássico da“<strong>de</strong>liberação” no pensamento político, ou do método <strong>de</strong>cisório por meio do argumentoe do <strong>de</strong>bate, explorado recentemente por teorias da <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>liberativa. Essasteorias oferecem uma orientação sobre como conceber condições da <strong>de</strong>liberação. Ofoco da tese será a <strong>de</strong>liberação inter-institucional (entre parlamentos e cortes) ao invésda <strong>de</strong>liberação intra-institucional (<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> parlamentos e cortes). As condições<strong>de</strong>liberativas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada instituição são recursos importantes <strong>de</strong> legitimação, masa perspectiva inter-institucional me parece ter uma relevância própria ainda subexplorada.Os capítulos 6 e 7 articulam-se para problematizar e qualificar a perguntasobre a medida e os termos nos quais a última palavra sobre direitos <strong>fundamentais</strong> éum dilema da teoria <strong>de</strong>mocrática. Argumento que, ao frasear o problema numa lógicado “tudo ou nada”, a pergunta não capta a dinâmica da política. Além disso, proponhoque o dilema real e mais importante da teoria <strong>de</strong>mocrática, em relação a esse aspecto,não é a escolha <strong>de</strong> uma ou outra instituição como a última autorida<strong>de</strong> legítima. Emvez disso, o <strong>de</strong>safio é <strong>de</strong>senhar um diálogo que maximize a capacida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>mocracia<strong>de</strong> produzir respostas melhores em direitos <strong>fundamentais</strong> ou, em outras palavras, <strong>de</strong>levar o potencial epistêmico da <strong>de</strong>liberação inter-institucional a sério, sem<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a necessida<strong>de</strong> do estado <strong>de</strong> direito por <strong>de</strong>cisões estáveis, ainda queprovisórias.O capítulo 8 buscará aplicar essa reflexão à prática constitucional brasileira.Por meio da <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> alguns episódios constitucionais exemplificativos, tentareianalisar o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> diálogo engendrado pela Constituição brasileira <strong>de</strong> 1988.Conforme sustento, o padrão <strong>de</strong> interação, ou <strong>de</strong> diálogo institucional, é produto <strong>de</strong>dois fatores complementares: (i) o <strong>de</strong>senho procedimental específico, <strong>de</strong>lineado naconstituição e em outras normas jurídicas, e (ii) a cultura política que informa emovimenta esses processos <strong>de</strong>cisórios, a qual po<strong>de</strong> estimular tanto a <strong>de</strong>ferência23


quanto o ativismo <strong>de</strong> cada instituição em face da outra. No caso brasileiro, consi<strong>de</strong>roque uma certa “cultura do guardião entrincheirado” promove um padrão <strong>de</strong> interaçãoin<strong>de</strong>sejável, baseado mais na <strong>de</strong>ferência incondicional ao <strong>de</strong>tentor da última palavrado que no bom argumento.Em suma, a tese continua tendo, tanto quanto a dissertação, uma naturezaexploratória. Possui uma parte interpretativa, que tenta <strong>de</strong>screver e sistematizar asprincipais características das teorias da última palavra e do diálogo, e uma parte maisconstrutiva e ensaística, que visualizo em três passos conectados: a articulação entreúltima palavra e diálogo <strong>de</strong>ntro da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res (capítulo 6); a <strong>de</strong>monstraçãodo papel potencial da <strong>de</strong>liberação entre instituições como critério normativo quequalifica este arranjo (capítulo 7); o diagnóstico da prática constitucional brasileiraem vista <strong>de</strong> tudo isso (capítulo 8). Promove um mapeamento <strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong><strong>de</strong> problemas e argumentos e tenta caminhar para algumas soluções. Procura <strong>de</strong>senharo quadro geral do <strong>de</strong>bate e oferecer a moldura macroscópica do que está em jogoquando se discute o papel do legislador e do controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> na<strong>de</strong>mocracia. Passa por uma série extensa <strong>de</strong> autores, mas o argumento e seu percursonão se confun<strong>de</strong>m com nenhum <strong>de</strong>les.Tento contribuir para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma teoria normativa da interaçãoentre parlamentos e cortes na busca da proteção <strong>de</strong> direitos numa <strong>de</strong>mocraciaconstitucional. Como qualquer teoria política normativa, seu <strong>de</strong>safio é prescreverprincípios mais <strong>de</strong>sejáveis <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho e comportamento institucional, e oferecercritérios para a crítica e a reforma políticas. Ao prescrever “princípios <strong>de</strong>sejáveis”,precisa encontrar o equilíbrio apropriado entre realismo e i<strong>de</strong>alismo. Precisa seri<strong>de</strong>alista para imaginar aquilo que ainda não necessariamente existe, <strong>de</strong> modo acumprir sua missão crítica e transformadora. Mas precisa ser realista para que arealida<strong>de</strong> política imaginada seja alcançável. Não está ao alcance <strong>de</strong>ssa teoriaperceber, a priori, a factibilida<strong>de</strong> e a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas ambições normativas. Acalibração <strong>de</strong>ssa “realida<strong>de</strong> imaginada e alcançável, apesar <strong>de</strong> ainda não existente” éinevitavelmente uma aposta, a ser testada pelo intercâmbio intelectual e pela história(teste que, porém, nunca será peremptório).24


4. Algumas digressões metodológicasExplicito e comento alguns princípios <strong>de</strong> trabalho. Eles tocam em problemasque muitas obras <strong>de</strong> teoria política articulam tacitamente. Esse exercício facilita,talvez, a leitura crítica da tese, ao indicar alguns critérios a partir dos quais ela po<strong>de</strong>ser testada. Mais do que isso, fornece ao próprio autor um guia ao qual po<strong>de</strong> recorrerna elaboração do texto.Não é comum falar em metodologia quando da elaboração <strong>de</strong> argumentos <strong>de</strong>teoria política normativa. Afinal, fazemos simplesmente isso – elaborar argumentossobre mo<strong>de</strong>los racionalmente mais <strong>de</strong>fensáveis <strong>de</strong> organização política. Nesseexercício, não nos dirigimos ao “mundo real” com um conjunto <strong>de</strong> procedimentostécnicos e quantitativos rigorosamente pre<strong>de</strong>finidos (mesmo que informados porcategorias normativas) para <strong>de</strong>scobrir como ele está funcionando e a partir daí lançargeneralizações, explicações causais etc. No entanto, escolhas <strong>de</strong> método, mesmo quemenos aparentes, obviamente ocorrem e condicionam a construção <strong>de</strong> qualquerargumento normativo, cuja qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá, entre outras coisas, <strong>de</strong> sua coerênciacom tais escolhas.4.1 Suposições e implicações: o que está nas entrelinhas?Saber se a revisão judicial é compatível, e, se for, em que medida, com o i<strong>de</strong>al<strong>de</strong>mocrático é uma das questões mais <strong>de</strong>batidas da teoria constitucional no séculoXX. Seria legítimo, em nome da constituição, que juízes não eleitos e não sujeitos àresponsabilização política revoguem legislação editada por um parlamento eleito pelopovo, especialmente se aceitamos que a interpretação constitucional é aberta aojulgamento moral e ao <strong>de</strong>sacordo? Qualquer resposta necessariamente carregará umestoque <strong>de</strong> suposições. Elas estarão conectadas, entre outras coisas, com: ossignificados e valores da <strong>de</strong>mocracia e do constitucionalismo; o papel darepresentação eleitoral; o esquema <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s entre procedimentos <strong>de</strong>cisórioseqüitativos e resultados justos; as capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>cisórias <strong>de</strong> juízes e legisladores e osvalores por trás da legislação e da adjudicação; e os arranjos concretos sob discussão.25


Po<strong>de</strong>mos certamente escavar mais camadas e alcançar questões maisfundantes da ética e da política, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>rivam as acima enumeradas. A não ser quefosse possível uma teoria abrangente e completa da moral, da política e do direito, quecosturasse e exaurisse todos os níveis, entre as fundações primeiras até as implicaçõesúltimas <strong>de</strong> cada argumento, há que se escolher uma porta <strong>de</strong> entrada, uma <strong>de</strong> saída eum <strong>de</strong>terminado caminho para enfrentar essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> conexões conceituais. Com oque estamos comprometidos no ponto <strong>de</strong> partida? O que comprometemos no ponto <strong>de</strong>chegada? Essa é uma das inquietações recorrentes que perturbam qualquer teórico,por mais que tente “<strong>de</strong>limitar o objeto” com clareza e <strong>de</strong> modo consciente. O ato <strong>de</strong><strong>de</strong>marcar o terreno é, em si, problemático e sujeito a críticas, tanto internas quantoexternas. Não há como evitar, por tudo isso, que muito permaneça implícito numargumento teórico, que muito fique não dito para trás, e muito a ser dito para a frente.Essas colocações, provavelmente triviais, são ilustrativas para lidar com o<strong>de</strong>bate <strong>de</strong>sta tese. A literatura sobre revisão judicial é particularmente recheada <strong>de</strong>suposições silenciosas e mal percebidas, sejam elas inconscientes, sejam elas<strong>de</strong>liberadamente escondidas ou ignoradas. Duas das mais perigosas, talvez, <strong>de</strong>correm<strong>de</strong> um passo que embute numa instituição um <strong>de</strong>terminado i<strong>de</strong>al político.Particularmente, o que fundiu <strong>de</strong>mocracia, ou mesmo “povo”, a parlamentorepresentativo, e constitucionalismo e proteção <strong>de</strong> direitos a mecanismos antimajoritários,especialmente o judicial. Esta segunda inferência foi bastante discutidana dissertação. A primeira permaneceu intocada. Se, <strong>de</strong> um lado, o “pequeno segredosujo” 45 por trás da <strong>de</strong>fesa do papel da corte constitucional foi lá <strong>de</strong>nunciado, <strong>de</strong> outro,o discurso equivalente que sobrepõe “vonta<strong>de</strong> do povo” ou “auto-governo” à “vonta<strong>de</strong>da maioria no parlamento representativo” não foi lá enfrentado, mesmo porque o textonão preten<strong>de</strong>u fazer uma <strong>de</strong>fesa positiva do órgão legislativo como conseqüênciadaquela <strong>de</strong>núncia.O tópico 5 abaixo, ao propor um modo <strong>de</strong> estruturar o pensamento sobre a<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, organiza alguns dos níveis em que essa discussãotradicionalmente se situa, e, assim, tentará abrir mais um pouco a couraça <strong>de</strong>ntro daqual os argumentos às vezes permanecem. O que supõem as teorias da última palavra,45 Expressão <strong>de</strong> Unger citada por Waldron na introdução <strong>de</strong> Law and Disagrement.26


seja a inclinada por legisladores e parlamentos, seja a inclinada por juízes e cortes? Oque supõem as teorias do diálogo? Quais as implicações que ambas produzem para o<strong>de</strong>senho institucional? É possível conciliá-las? Estas perguntas orientam o caminho datese.Há, ainda, outra cautela relevante. A maioria dos autores com os quais lidareiparticipa <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate geograficamente localizado, que faz suposições particulares.Para lidar com isso, <strong>de</strong>lineio algumas estratégias nos dois tópicos seguintes.4.2 A hegemonia da literatura norte-americana“Literatura sobre revisão judicial”, até poucos anos atrás, praticamente seconfundia com a “literatura norte-americana”. Consistia numa bateria <strong>de</strong> soluçõespara a “dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária”, contraposta a reformulações periódicas daobjeção <strong>de</strong>mocrática. Apesar da aparência <strong>de</strong> haver atingido o estágio da exaustãoargumentativa, renovações constantes dos dois lados continuam a surgir. Ao menosno que diz respeito à teoria normativa, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> argumentos alcançou um grauconsi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong>. A maioria <strong>de</strong>ssas ondas teóricas queperiodicamente reinterpretaram o problema teve um atávico caráter paroquial: comfreqüência, pressupuseram o mo<strong>de</strong>lo americano <strong>de</strong> revisão judicial. 46 Reduziam-se adiscursos que conferiam ou retiravam legitimida<strong>de</strong> da Suprema Corte americana. Issoé compreensível, uma vez que boa parte estava preocupada, <strong>de</strong> fato, com tal sistemaparticular.Uma rápida compilação das expressões que compõem a retórica anti-revisãojudicial mostra o acento norte-americano: “grupo <strong>de</strong> guardiões platônicos”, “reisfilósofos”(“bevy of Platonic Guardians”, “philosopher kings”), “oráculoconstitucional” (“constitutional oracle”), “oráculos do direito” (“oracles of law”),“censores morais da escolha <strong>de</strong>mocrática” (“moral censors of <strong>de</strong>mocratic choice”),46 Waluchow, por exemplo, também observou essa característica: “Oftentimes discussions of judicialreview un<strong>de</strong>r a Charter presuppose the American paradigm and proceed as though this example <strong>de</strong>finesthe wi<strong>de</strong>r phenomenon. It is often assumed, for example, that the <strong>de</strong>cision of a supreme court tooverturn legislative <strong>de</strong>cisions is absolute, thus raising and colouring our attempts to answer questionsabout the consistency of judicial review with <strong>de</strong>mocratic principles. Yet as Section 33 of the CanadianCharter illustrates, there is no necessity here. It is possible to have judicial review without grantingjudges the final say” (cf. A Common Law Theory of Judicial Review, p. 12).27


“i<strong>de</strong>ólogo da <strong>de</strong>mocracia americana” (“i<strong>de</strong>ologue of the American <strong>de</strong>mocracy”),“confraria <strong>de</strong> guardiões da verda<strong>de</strong> moral”, “conselho sábio <strong>de</strong> tutores na verda<strong>de</strong>moral” (“coterie of guardians of the moral truth”, “wise council of tutors in moraltruth”), “profeta moral” (“moral prophet”), “oligarquia judicial” (“judicialoligarchy”), “juristocracia” (“juristocracy”) 47 etc. Do outro lado, para enfrentar ovolume e a eloqüência <strong>de</strong>sses ataques, Dworkin impôs o heróico “Hércules”, capaz <strong>de</strong><strong>de</strong>liberações exemplares no “fórum do princípio”.O paroquialismo, portanto, é uma das principais marcas <strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ssaliteratura. Christopher Zurn percebeu algumas <strong>de</strong> suas peculiarida<strong>de</strong>s. Segundo ele,ela teria que obe<strong>de</strong>cer uma série <strong>de</strong> limites argumentativos. Quem não os respeitarestaria fadado ao limbo acadêmico e político. Entre tais limites, está o que chamou <strong>de</strong>“panglossianismo institucional” (“institutional panglossianism”), um “amálgamaentre fato e valor”, a avaliação <strong>de</strong> que a revisão judicial é um dado imutável dahistória e representa o “melhor mundo possível”. 48 A existência mesma da instituição,nos Estados Unidos, não está em disputa, mas apenas o “como” operá-la. 49Esse <strong>de</strong>bate, por mais plural que seja, teria, portanto, um ponto <strong>de</strong> partidarazoavelmente empobrecido. Quando os seu termos começam a influenciar outrasjurisdições sem as <strong>de</strong>vidas adaptações, como se fossem <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> universal toutcourt, esse anacronismo analítico po<strong>de</strong> <strong>de</strong>bilitar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reflexãocontextualizada que sustente comparações e importações construtivas. Nas últimasdécadas, <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> que esse arranjo institucional foi exportado para várias<strong>de</strong>mocracias constitucionais, e que o po<strong>de</strong>r judiciário ocupou um papel político maisproeminente enquanto fórum central para <strong>de</strong>mandas coletivas, a “questão americana”tornou-se mais universal. A tentativa <strong>de</strong> resolver a “dificulda<strong>de</strong> contramajoritária”influenciou até mesmo o próprio <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> alguns novos regimes constitucionais.Alguns países criaram o que se convencionou chamar <strong>de</strong> “formas fracas” <strong>de</strong> revisão47 Essas expressões são encontradas, na seqüência, nos seguintes autores: Learned Hand, Dawson,Stephen Perry, Antonin Scalia, Robert Cover, Christopher Zurn, Rainer Knopf, Wil Waluchow e RanHirschl. Os últimos quatro, é verda<strong>de</strong>, não são norte-americanos, mas participam do mesmo <strong>de</strong>bate.48 Cf. Deliberative Democracy and the Institutions of Judicial Review, p. 9-10 (voltarei a essapassagem no capítulo 6).49 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 111-114.28


judicial, como Canadá, Reino Unido e Nova Zelândia. 50 Em paralelo a esse processopolítico, o <strong>de</strong>bate acadêmico constantemente se reinventou.A crítica segundo a qual a literatura americana não se aplica a qualquercontexto, portanto, chama a atenção para aspecto importante. Tal literatura po<strong>de</strong>,eventualmente, ofuscar, direcionar e distorcer os termos do problema. Justamente poresses riscos, não <strong>de</strong>ve ser apropriada sem os <strong>de</strong>vidos cuidados e mediações, mastampouco rejeitada sumariamente. É quase inevitável passar por ela: eles inventaram ainstituição, formularam a pergunta e elaboraram as principais respostas. Mesmo peloseu imenso volume, essa literatura às vezes <strong>de</strong>sencoraja um ponto <strong>de</strong> vista diferente.Seria muito custoso <strong>de</strong>monstrar que todo esse colossal esforço estava simplesmentefazendo a pergunta errada. Mas não se trata, obviamente, <strong>de</strong> volume.Substancialmente, o que vem a reboque da importação <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>bate? Quais são os taiscuidados e mediações? Eles fornecem a pergunta certa para o caso brasileiro? 51A transposição <strong>de</strong> tais lentes hegemônicas para o Brasil requer, no mínimo,que se leve em conta os seus pressupostos e que se verifique sua compatibilida<strong>de</strong> coma <strong>de</strong>mocracia constitucional brasileira. Quais são esses pressupostos? Um <strong>de</strong>les,obviamente, é o específico <strong>de</strong>senho institucional em que a Suprema Corte se insere.Para lidar com ele, proponho o isolamento das variáveis institucionais, estratégiaexplicada no próximo tópico. Mas não é somente isso. O <strong>de</strong>senho institucional éprecedido por <strong>de</strong>terminada teoria e história políticas que provocaram seu nascimentoe influenciaram seu <strong>de</strong>senvolvimento por mais <strong>de</strong> dois séculos. História e teoriasingulares não impe<strong>de</strong>m, todavia, que aquela experiência seja exportada, como <strong>de</strong> fatoo foi na transição republicana brasileira no final do século XIX. 524.3 Isolamento das variáveis institucionaisRetomo aqui algumas cautelas já esboçadas na dissertação. Tento perceber,<strong>de</strong>ntro da varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> argumentos, quais são <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do contexto, quais são50 Cf. Stephen Gardbaum, “The New Commonwealth Mo<strong>de</strong>l of Constitutionalism”.51 A literatura <strong>de</strong> ciência política comparada parece sofrer também <strong>de</strong>ssa miopia analítica, ao adotarcomo principal categoria classificatória a distinção entre parlamentarismo e presi<strong>de</strong>ncialismo. FernandoLimongi mostra o erro <strong>de</strong>ssa estratégia (cf. “A Democracia no Brasil”).52Várias consi<strong>de</strong>rações a respeito também foram feitas na dissertação (cf. Controle <strong>de</strong>Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, pp. 27-28, 111-112 e 191).29


locais e quais “universais”. O mínimo <strong>de</strong>nominador comum <strong>de</strong> todos os sistemas <strong>de</strong>controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, nos quais faz algum sentido <strong>de</strong>bater a legitimida<strong>de</strong><strong>de</strong>mocrática, é um “fato cru” 53 : um arranjo institucional que permite ao po<strong>de</strong>rjudiciário, em algum momento e com alguma intensida<strong>de</strong>, revogar, a título <strong>de</strong>incompatibilida<strong>de</strong> com a constituição, uma lei editada pelo parlamentorepresentativo. 54 O STF, é bom lembrar, tem competência para exercer <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong>funções, enumeradas no art. 102 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral. Estou discutindo, porém,somente aquela que é politicamente mais impactante (art. 102, I, “a”). 55 - 56Essa seria a essência da invenção americana, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente das múltiplasvariações que sofreu no processo <strong>de</strong> transplante para outros países. Transcen<strong>de</strong>r<strong>de</strong>talhes institucionais e eliminar argumentos particulares é o primeiro passo para queessa literatura possa circular <strong>de</strong> modo mais <strong>de</strong>senvolto por outras jurisdições, para quetenha maior versatilida<strong>de</strong> e evite qualquer miopia ou anacronismo teórico. É <strong>de</strong>sejávelconstruir artificialmente um terreno no qual a discussão se torne universal? Qual ovalor ou efeito <strong>de</strong>ssa simplificação? Não tornaria os argumentos tão abstratos quefariam o objeto concreto per<strong>de</strong>r sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e cair num vácuo? Não seria umesforço estéril?53 Cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 19-21. No capítulo 8, farei alguns comentáriosadicionais à aplicabilida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>bate no Brasil em face <strong>de</strong> nossas particularida<strong>de</strong>s institucionais. Ascautelas exaustivamente enumeradas na dissertação não serão aqui repetidas, mas aplicam-seigualmente.54 Wil Waluchow, por exemplo, promoveu <strong>de</strong>limitação semelhante: “To that end, the analysis purportsto be relevant to any <strong>de</strong>mocratic country or jurisdiction in which one finds some form of Charterlimitation on government action – that is, in which governments are in some way, and to some extent,required or expected, when exercising their (typically legislative) powers, not to infringe on aconstitutionally specified set of moral rights” (cf. A Common Law Theory of Judicial Review, p. 12).55 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendolhe:I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei ou atonormativo fe<strong>de</strong>ral ou estadual e a ação <strong>de</strong>claratória <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei ou ato normativofe<strong>de</strong>ral.56 Zurn faz comentário parecido: “Like other exercises in normative theory, this book will assumecertain simplifications of the workings of actual constitutional <strong>de</strong>mocracies in or<strong>de</strong>r to focus onun<strong>de</strong>rlying i<strong>de</strong>als of constitutional <strong>de</strong>mocracy and their competing conceptualizations. One of the mostimportant of these simplifications is to focus the arguments around the question of only one of thefunctions captured in the phrase ‘judicial review’. In the U.S. judicial system, for example, theSupreme Court has many different roles and carries out many different functions. At least five can beanalytically distinguished. (…) Finally, fifth, the Supreme Court has the authority to review nationalordinary law (…) When I refer throughout this book to ‘judicial review’, I am referring most centrallyonly to the fifth category of functions (…). For it is in carrying out this fifth function that the tensionsbetween judicial review and <strong>de</strong>mocracy are felt to arise most acutely” (cf. Judicial Review and theInstitutions of Deliberative Democracy, p. 26-27).30


A redução do objeto a um “fato cru” per<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fato, as nuances institucionaisque configuram <strong>de</strong>safios diferentes para a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática das cortes <strong>de</strong> cadapaís. A discriminação e classificação <strong>de</strong>ssas variações são, sem dúvida, importantes.Apesar <strong>de</strong>ssas perdas, esse é um corte necessário se preten<strong>de</strong>mos nos beneficiar dariqueza da literatura estrangeira.4.4 Binarismo e gradualismo na teoria política e jurídicaHá duas maneiras <strong>de</strong> se pensar em conceitos políticos e jurídicos que semanifestam em diversas partes <strong>de</strong>sse texto. Po<strong>de</strong>ríamos chamar esses dois estilosanalíticos <strong>de</strong> binarismo e gradualismo. Binário é o raciocínio estruturado a partir <strong>de</strong>dicotomias abrangentes e rígidas, isto é, limita-se a verificar se um objeto tem ou não<strong>de</strong>terminada qualida<strong>de</strong> (por exemplo: se um regime é <strong>de</strong>mocrático ou autoritário, sealguém é <strong>de</strong> esquerda ou <strong>de</strong> direita, se uma lei é constitucional ou inconstitucional).Gradualista, por sua vez, é o raciocínio que nos permite avaliar a medida <strong>de</strong> certaqualida<strong>de</strong>, o grau <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado i<strong>de</strong>al. Não se preocupa em dizer sealgo é ou não é, mas em que medida algo é ou não é, o quanto se aproxima ou sedistancia <strong>de</strong>sse i<strong>de</strong>al (da <strong>de</strong>mocracia, da esquerda e assim por diante). Não seacomoda, nesse sentido, à <strong>de</strong>finição do mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al, mas <strong>de</strong>senvolve parâmetros <strong>de</strong>mensuração e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que pontos mais próximos do i<strong>de</strong>al são, obviamente, mais<strong>de</strong>sejáveis. 57 Verbos como maximizar e minimizar, aproximar e distanciar, aumentar ediminuir, favorecer e <strong>de</strong>sfavorecer, aperfeiçoar e piorar, progredir e retroce<strong>de</strong>r são osmais apropriados para uma análise gradualista.57 O gradualismo é metodologia recorrente em mo<strong>de</strong>los empíricos da ciência política. A estratégiaargumentativa <strong>de</strong> conceber dois extremos e indicar que situações reais se localizam em algum pontointermediário do espectro é bastante freqüente. Gráficos e tabelas são também instrumentos comunspara representar espacial ou quantitativamente os graus, as múltiplas dimensões etc. Que serviço ogradualismo po<strong>de</strong> prestar à teoria normativa? Remeto-me aqui a uma observação <strong>de</strong> Virgílio Afonso daSilva feita no exame <strong>de</strong> qualificação (18.07.2007). Numa paráfrase: “Para ser normativo, não há comoescapar do binarismo. O gradualismo é mais efetivo no exercício <strong>de</strong>scritivo”. Essa afirmação mereceser qualificada. A teoria normativa tem que ser sensível a gradações justamente para mostrar que umponto mais próximo do i<strong>de</strong>al é melhor do que o mais distante. O normativo, por isso, <strong>de</strong>ve não apenasmo<strong>de</strong>lar o i<strong>de</strong>al (e nesse sentido, imagina os dois extremos do espectro), mas também imaginar osgraus <strong>de</strong> aproximação. É necessário, por exemplo, ter um argumento normativo para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a<strong>de</strong>mocracia que temos, a qual, apesar <strong>de</strong> longe do i<strong>de</strong>al, é provavelmente melhor do que as alternativasvistas na história brasileira. Esse “contínuo”, com graus crescentes <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, é fornecido pela teorianormativa.31


Formulado <strong>de</strong>ssa maneira, parece certo que o gradualismo é uma forma maisprodutiva <strong>de</strong> se apresentar perguntas, problemas e respostas na análise política. 58Teria maior potencial explicativo e a<strong>de</strong>rência à diversida<strong>de</strong> dos objetos no mundoreal. Permitiria pensar na qualida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>mocracia, em mais e menos, em melhor epior, em pontos intermediários <strong>de</strong> um contínuo. Seria mais sensível e atento a sutismudanças <strong>de</strong> grau, a transformações incrementais na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadoobjeto. O binarismo, por outro lado, nos pren<strong>de</strong>ria a uma camisa-<strong>de</strong>-força cognitiva, àarmadilha maniqueísta do tudo ou nada, que opõe preto e branco sem notar zonascinzentas intermediárias. 59Antes <strong>de</strong> se rejeitar o binarismo, pura e simplesmente, certas nuances <strong>de</strong>vemser levadas em conta. Costuma haver, no gradualismo, um elemento binário sem oqual ele não consegue operar. Ele não abre mão, na maioria das vezes, <strong>de</strong> dicotomias,mas as submete a um tratamento diferente: em vez <strong>de</strong> girar em torno <strong>de</strong> duascategorias estanques, pega-as emprestada e as trata como tipos-puros, que jamais serealizam por inteiro na realida<strong>de</strong>, mas em diferentes graus. 60 Além disso, a estratégiagradualista precisa postular e convencionar alguma fronteira, algum limiar a partir do58 Ian Shapiro apontou para a mesma tensão no campo da política: “Conceiving <strong>de</strong>mocracy as a meansfor limiting domination offers several advantages. First, it poses normative questions about <strong>de</strong>mocracyin a ‘compared to what?’ framework, because <strong>de</strong>mocracy is now judged not by the either/or questionwhether it produces social welfare functions or lead to agreement, but rather by how well it enablespeople to manage power relations as measured by the yardstick of minimizing domination. Second, thisapproach invites us to avoid another kind of binary thinking: about <strong>de</strong>mocracy itself. Ways ofmanaging power relations can be more or less <strong>de</strong>mocratic. It is one of the singular contributions ofDahl’s i<strong>de</strong>a of poliarchy that it turns questions about <strong>de</strong>mocracy into more-or-less questions rather thanwhether-or-not questions” (cf. The State of Democratic Theory, p. 51).59 Vários autores importantes po<strong>de</strong>m exemplificar o que estou dizendo, além <strong>de</strong> Robert Dahl e seuconceito <strong>de</strong> poliarquia, já mencionado por Ian Shapiro em nota acima. Lon Fuller, por exemplo, emThe Morality of Law, tem em mente exatamente essa idéia quando propõe que o estado <strong>de</strong> direito é umempreendimento teleológico (purposive enterprise), uma questão <strong>de</strong> grau, uma busca incessante pelaotimização dos princípios inerentes à moralida<strong>de</strong> interna do direito (inner morality of law). Max Weberconsagrou a metodologia <strong>de</strong> propor “tipos i<strong>de</strong>ais” ao se analisar as modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> (legalracional,tradicional e carismática). Ronald Dworkin e Robert Alexy introduziram também metodologiaparecida para se pensar na normativida<strong>de</strong> dos princípios jurídicos. A racionalida<strong>de</strong> jurídica, em si,estaria presa a essa camisa-<strong>de</strong>-força maniqueísta: legal e ilegal, válido e inválido, constitucional einconstitucional. Essas categorias não estariam sujeitas a consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> mais ou menos. Dworkin eAlexy, porém, em suas teorias sobre princípios, pon<strong>de</strong>ração e balanceamento, abalaram um pouco esseesquema mental. Por fim, mencionaria também a obra organizada por Neil MacCormick e RobertSummers, que <strong>de</strong>senvolveram uma forma <strong>de</strong> comparar a normativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes judiciais emdiversos países (bindingness as matter of <strong>de</strong>gree).60 O gradualismo torna-se, é verda<strong>de</strong>, mais complexo e multi-dimensional quando entram na análisediversos valores (cada um <strong>de</strong>les, por sua vez, traduzido em jogos binários num nível mais elementar).Nesse plano multi-dimensional, recorre-se ao balanceamento entre os diversos valores, que não serealizam em grau máximo se não à custa <strong>de</strong> outros também importantes. Esse acréscimo <strong>de</strong>complexida<strong>de</strong> exigiria outras consi<strong>de</strong>rações. Para os fins <strong>de</strong>sse tópico, porém, basta a percepção docaráter gradualista ou estático na análise <strong>de</strong> antinomias nos conceitos políticos e jurídicos.32


qual o objeto estudado passa a estar mais próximo <strong>de</strong> um dos extremos do contínuo (olimiar a partir do qual, por exemplo, um regime <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser chamado <strong>de</strong> autoritário epassas a ser consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong>mocrático).A própria dicotomia entre “binarismo” e “gradualismo”, se não feitos taisesclarecimentos, po<strong>de</strong> transformar-se numa armadilha binária. O objetivo <strong>de</strong>ssadigressão é indicar a forma pela qual a tese procurará escapar <strong>de</strong> tal armadilha quandodiante das diversas dicotomias que perpassam o problema aqui estudado. Como oconceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia política é o subtexto <strong>de</strong>sse trabalho, algumas consi<strong>de</strong>raçõesadicionais ajudam a clarear esse ponto.A idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia é o centro <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> da imaginação políticacontemporânea. Regimes políticos são avaliados, sobretudo, por referência àsmúltiplas dimensões <strong>de</strong>sse conceito que se <strong>de</strong>compõe, entre outras coisas, em<strong>de</strong>mandas por igualda<strong>de</strong>, respeito a direitos, participação e certos arranjosinstitucionais estruturados por uma constituição. Já é lugar comum afirmar que, noséculo XX, a <strong>de</strong>mocracia passou a li<strong>de</strong>rar a competição pelos índices <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>da política e atingiu, praticamente, consenso quanto ao seu valor abstrato. Esseconsenso em abstrato, contudo, segundo esse mesmo lugar comum, foi conquistado aopreço <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo sobre as formas concretas <strong>de</strong> se implementar esse i<strong>de</strong>al.Provavelmente, entre as causas <strong>de</strong>sse fenômeno estão a maleabilida<strong>de</strong> e opo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução <strong>de</strong>sse conceito para, em diferentes versões, atrair e incorporar outrosi<strong>de</strong>ais sensíveis da história política (como igualda<strong>de</strong>, liberda<strong>de</strong> e justiça). Todavia,essa mesma maleabilida<strong>de</strong> e alta <strong>de</strong>manda normativa, como anotado acima, gerou umacordo <strong>de</strong> superfície e um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo <strong>de</strong> bastidores. Democracia é, no plano dapolítica, a expressão mais exemplar <strong>de</strong> “conceito essencialmente contestado”, ou seja,um conceito que não provoca apenas um <strong>de</strong>sacordo periférico, aci<strong>de</strong>ntal e marginal,passível <strong>de</strong> solução após um processo <strong>de</strong> investigação racional mais esforçado. Adisputa sobre o seu sentido concreto e seu caráter escorregadio é da sua essênciamesma. O <strong>de</strong>sacordo é infinito e opõe posições genuínas e <strong>de</strong>fensáveis. 6161 Cf. W.B. Gallie, “Essentially Contested Concepts”.33


Também por essa razão, a estratégia gradualista parece ser mais a<strong>de</strong>quada paralidar com “conceitos essencialmente contestados”. Trata-se <strong>de</strong> uma posturainteressante para amenizar <strong>de</strong>sacordos e enxergar complementarida<strong>de</strong>s entrediferentes abordagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia, em vez <strong>de</strong> postular uma <strong>de</strong>finição rígida queexclui as alternativas. Democracia, na perspectiva gradualista, é um processocontínuo, um empreendimento coletivo permanente, que estará sempre incompleto,sujeito a avanços mas também a retrocessos. Pensar em gradações a partir <strong>de</strong> um tipopuroi<strong>de</strong>al permite notar o caráter inacabado <strong>de</strong>ste projeto político, que não se paralisacom a realização <strong>de</strong> eventuais requisitos mínimos (que ultrapassam o limiar docontinuum). A estratégia binária, por outro lado, permanece refém seja dominimalismo, que induz à acomodação diante da realização <strong>de</strong> um conceito mínimo<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia, seja do maximalismo, que leva à resignação diante da impossibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> alcançar um critério muito exigente.Há muitos exemplos <strong>de</strong> dicotomias que orientam nosso vocabulário político ejurídico. Algumas <strong>de</strong>las permeiam esse projeto. Listo as principais <strong>de</strong>las, algumas jámencionadas nesse capítulo. Nem todas participam igualmente no argumento centralda tese, mas a apresentação <strong>de</strong> todo o conjunto consegue provavelmente reunir agran<strong>de</strong> maioria dos enfoques propostos pelas teorias da revisão judicial.A primeira é a tensão entre forma e substância, entre o processo (input) e oresultado <strong>de</strong>cisório (output). Diferentes teorias da <strong>de</strong>mocracia divergem em relaçãoaos ingredientes formais e substantivos <strong>de</strong>sse regime. Algumas simplificaram essedilema e optaram por um dos lados. Outras tentaram mesclar ambos os elementos:“procedimentalistas” que não abrem mão <strong>de</strong> alguma substância e “substantivistas”,como Dworkin, que não abdicam <strong>de</strong> algum procedimento. 6262 Álvaro <strong>de</strong> Vita fraseia a dicotomia <strong>de</strong> forma diferente. A oposição entre forma e substância, para ele,correspon<strong>de</strong> à oposição entre ética e política: “O procedimentalismo eqüitativo oferece umainterpretação da autorida<strong>de</strong> política legítima, cujas <strong>de</strong>cisões têm uma pretensão pelo menos prima faciea reclamar a obediência dos cidadãos. Já o liberalismo igualitário tem a ambição <strong>de</strong> oferecer orientaçãoaos julgamentos dos cidadãos (e seus representantes) que agem sob uma dada estrutura <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>política e <strong>de</strong> oferecer um critério com base no qual avaliar a justiça dos resultados <strong>de</strong> procedimentos<strong>de</strong>cisórios eqüitativos na política. E se eles têm ambições distintas, e se aplicam a coisas distintas,também não po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados – o procedimentalismo eqüitativo e a justiça rawlsiana –concepções alternativas da mesma coisa. Isso, em meu enten<strong>de</strong>r, é somente uma das manifestações <strong>de</strong>uma distinção ainda mais fundamental (tal como a entendo) entre ética e política” (cf. “Socieda<strong>de</strong>Democrática e Democracia Política”).34


A segunda oposição, que se parece e se relaciona intimamente com a anterior,mas com ela não se confun<strong>de</strong>, há entre <strong>de</strong>cisão e razão, força e justificação, coerção eargumento, imposição e persuasão. 63 - 64 Estes são dois pólos <strong>de</strong> uma espinha dorsal dateoria política e jurídica e <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> um esforço para enten<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>obediência às normas. Dentro <strong>de</strong> uma tradição que concebe a política e o direito comoempreendimento racional, uma tentativa <strong>de</strong> cumprir a promessa do governo das leis,passa a fazer sentido analisar e criticar as razões que acompanham as <strong>de</strong>cisõespolíticas. As <strong>de</strong>cisões, nesse sentido, não são apenas or<strong>de</strong>ns às quais se <strong>de</strong>ve obe<strong>de</strong>cercalado, mas um conjunto <strong>de</strong> razões que po<strong>de</strong>m ser discutidas e que constrangem adiscricionarieda<strong>de</strong> do agente <strong>de</strong>cisório. Um <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong>ssa dicotomia suscita ainteface entre o ato <strong>de</strong> manifestação da vonta<strong>de</strong> política (o voto) e o processo <strong>de</strong>formação da vonta<strong>de</strong> política (o que vem antes e <strong>de</strong>pois do voto, continuamente),distinção importante para teorias da <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>liberativa, como veremos nocapítulo 7.A terceira, que facilmente se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>rivar da anterior, ocorre entre formal (ouinstitucional) e informal (ou não-institucional), imperfeitamente traduzida peloparalelo entre explícito e implícito, ou também entre o escrito e o não-escrito. Trata-se<strong>de</strong> um foco importante para perceber e observar o argumento da tese sobre a<strong>de</strong>liberação inter-institucional. Não há <strong>de</strong>mocracia, ou mesmo política, obviamente,sem diálogo, e esta imagem se aplica às mais diversas instâncias formais e informais<strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>. Nesta tese, quero observar uma espécie formalizada <strong>de</strong> diálogo,sem per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista ou fechar-se para os elementos informais do processo.A quarta ocorre entre realismo e i<strong>de</strong>alismo, às vezes associada,imprecisamente, à oposição entre pessimismo e otimismo, e outras à tensão entreteoria positiva e teoria normativa. Essa é uma opção metodológica ainda mais63 Uma forma sutilmente diferente <strong>de</strong> formular essa dicotomia, que será importante para enten<strong>de</strong>r umacerta concepção <strong>de</strong> <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res nos caps. 6 e 7, é opor a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res como, <strong>de</strong> umlado, uma confrontação uni-direcional e monolítica, um “braço <strong>de</strong> ferro” ou um jogo <strong>de</strong> soma zero, e,<strong>de</strong> outro, como negociação, acomodação, balanceamento e barganha para alcançar um acordo, umequilíbrio. Nessa segunda visão, o produto final é resultado da interação, não da prevalência do maisforte ou do vencedor. O resultado, portanto, é diferente da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer das partes. Teorias daúltima palavra <strong>de</strong>stacam a dimensão do conflito na política, querem saber quem tem autorida<strong>de</strong> para<strong>de</strong>cidir em circunstâncias <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo. Teorias do diálogo, por sua vez, <strong>de</strong>stacam a cooperação.Veremos que não são, necessariamente, abordagens exclu<strong>de</strong>ntes, mas percebem dimensões diferentes.64 Lon Fuller, analisando Benjamin Cardozo, nomeou essa antinomia <strong>de</strong> “reason and fiat” (cf. “Reasonand Fiat in Case-Law”).35


profunda <strong>de</strong> certas correntes da teoria política que escolhem um dos lados para <strong>de</strong>rivarsuas explicações e exigências. Um ponto <strong>de</strong> partida comum é a suposiçãoantropológica, a noção <strong>de</strong> natureza humana. Uma teoria normativa, como já dito,precisa encontrar algum balanço entre essas duas variáveis.A quinta, como componente mais explícito do argumento central da tese, se dáentre as idéias <strong>de</strong> última palavra e diálogo. A literatura hegemônica que se preocupouem discutir a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática da revisão judicial está inspirada claramentena última palavra, dilema cuja solução sugere duas opções exclu<strong>de</strong>ntes: juiz oulegislador. O foco do diálogo preten<strong>de</strong> escapar <strong>de</strong>sse cacoete. Nessa tese, porém,ambos os pólos (diálogo e última palavra) cumprem algum papel na forma <strong>de</strong> seenten<strong>de</strong>r a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res.A sexta, estritamente associada à anterior, estrutura a dimensão temporal dapolítica em perspectivas <strong>de</strong> curto prazo e longo prazo. Outras formas <strong>de</strong> se referir aessa mesma idéia seriam as oposições entre sincrônico e diacrônico, estático edinâmico. A tese propõe que, vista a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res a partir da primeiraperspectiva, últimas palavras <strong>de</strong> fato existem, apesar <strong>de</strong> sua provisorieda<strong>de</strong>, percepçãoque somente a visão <strong>de</strong> longo prazo, da política como um processo contínuo,consegue alcançar. As duas perspectivas temporais, <strong>de</strong>ssa maneira, cumprem algumpapel. A primeira para mostrar que últimas palavras, apesar <strong>de</strong> provisórias, sãoduradouras. A segunda para indicar que, após uma <strong>de</strong>cisão, o processo político nãochega ao fim, e a comunida<strong>de</strong> política continua a escolher rumos e estabelecer metaspara o futuro. 65A sétima diz respeito ao jogo entre ações (ou reações) e omissões na política. 66Essa dicotomia se associa, mas não se sobrepõe, à tensão entre conservação emudança, continuida<strong>de</strong> e ruptura. 67 Nesse caso, a conservação <strong>de</strong> certa <strong>de</strong>cisão65 Um <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong>ssas duas últimas dicotomias (entre última palavra e diálogo, e entre curtoprazo e longo prazo) po<strong>de</strong>ria explorar também a relação da <strong>de</strong>mocracia com a dimensão intergeracional.Essa dimensão <strong>de</strong>staca o nexo entre, <strong>de</strong> um lado, a geração presente e, <strong>de</strong> outro, a geraçãopassada e a geração futura. Em que medida essas distinções entram no conceito <strong>de</strong> “povo” é relevantepara a teoria <strong>de</strong>mocrática (cf. nota <strong>de</strong> rodapé *n. 38 acima).66 Tema tradicional também na filosofia moral.67 A dicotomia entre esquerda e direita se associa, numa <strong>de</strong> suas acepções mais comuns, à conservaçãoe mudança.36


política não significa manutenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado status quo social – a socieda<strong>de</strong>po<strong>de</strong> estar num turbulento processo <strong>de</strong> transformação enquanto a política permaneceinerte. 68 Da mesma forma, o inverso: ação política <strong>de</strong>liberada, às vezes, não conseguepromover mudança social. Essa dicotomia é importante para apontar que, numa<strong>de</strong>mocracia constitucional, o jogo da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res envolve tanto ação quantoomissão. Da mesma maneira, o diálogo inter-institucional: po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>ferir, esperar,<strong>de</strong>cidir o mínimo possível, <strong>de</strong>safiar o outro po<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>cidir novamente sob novoargumento, omitir-se para esquivar-se dos custos políticos etc. Todos essescomportamentos integram a competição política. Este código será importante paraenten<strong>de</strong>r a posição flexível <strong>de</strong>ssa tese quanto à atuação legítima da corte.A oitava <strong>de</strong>corre da distinção entre o ordinário e o extraordinário, entre ocotidiano e o excepcional, ou mesmo entre o inferior e o superior na política. Naspalavras <strong>de</strong> Bruce Ackerman, entre a “política normal” e a “política constitucional”,critério principal para que ele justifique o papel da revisão judicial nos EUA. 69 Adicotomia <strong>de</strong>nota não apenas dois níveis <strong>de</strong> elaboração jurídica or<strong>de</strong>nadoshierarquicamente, 70 mas também o simbolismo e a solenida<strong>de</strong> do nível constitucional,ao qual é reservado um status privilegiado. Seriam duas temperaturas e duasdignida<strong>de</strong>s políticas diferentes. Um conecta-se à administração <strong>de</strong> rotina, o outro àsgran<strong>de</strong>s mudanças <strong>de</strong> rumo. Este “dualismo”, juntamente com <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res ecarta <strong>de</strong> direitos, é tido como elemento fundamental do constitucionalismo. 71 Umaadaptação <strong>de</strong>ssa dicotomia <strong>de</strong>staca a diferença entre “casos <strong>de</strong> alta saliência política”e “casos <strong>de</strong> baixa saliência política”, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> serem processadosformalmente pela política normal ou constitucional. Essa perspectiva substantiva é68 Interessante a análise que Cass Sunstein faz da falsa neutralida<strong>de</strong> do status quo, pretexto usado,segundo ele, pela Suprema Corte americana para adotar uma <strong>de</strong>terminada estratégia interpretativa (cf.The Partial Constitution).69 Cf. “Storrs Lectures: Discovering the Constitution”.70 Isso é operacionalizado, na maioria das vezes, por meio <strong>de</strong> um procedimento mais dificultoso <strong>de</strong>reforma da constituição em relação a uma lei ordinária. A existência da revisão judicial é também tidacomo outra conseqüência lógica da superiorida<strong>de</strong> da constituição, apesar <strong>de</strong> ambas opçõesprocedimentais não serem essenciais à idéia <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> normativa da constituição (apesar <strong>de</strong>po<strong>de</strong>rem ser um instrumento útil como estratégia <strong>de</strong> efetivação), como já argumentei em outros pontos<strong>de</strong>ste texto e da dissertação.71 Essa oscilação entre “ordinário” e “extraordinário” não ocorre, institucionalmente, apenas entre lei eemenda constitucional, mas também em rupturas, revoluções e refundações constitucionais. Aqualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse momento <strong>de</strong> origem e inauguração gera muitas implicações para a teoria <strong>de</strong>mocrática(como em autores que <strong>de</strong>senvolvem o argumento do “pré-comprometimento”, que veremos no cap 2).37


útil para que alguns autores <strong>de</strong> “teorias do diálogo” <strong>de</strong>monstrem que, ao menos emcasos <strong>de</strong> alta saliência, a corte não <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> livre <strong>de</strong> constrangimentos. 72A nona divi<strong>de</strong> duas faces clássicas da legitimação do po<strong>de</strong>r na filosofiapolítica, uma baseada na igualda<strong>de</strong> ou no simples pertencimento a uma comunida<strong>de</strong>,outra baseada no conhecimento. Mais diretamente, seria o contraste entre“populismo” e “expertocracia”. 73 Com o aumento da complexida<strong>de</strong> das funçõesestatais, esse balanceamento torna-se ainda mais imperativo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma teorianormativa da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Argumentos pela revisão judicial,freqüentemente, assumem algum grau <strong>de</strong> expertise no papel dos juízes, treinados para<strong>de</strong>cidir <strong>de</strong> uma certa maneira, supostamente mais sensíveis (ou em melhorescondições <strong>de</strong>liberativas) para questões <strong>de</strong> princípios. Algumas teorias do diálogomostram que a justificativa do parlamento não é somente “populista”, mas também serelaciona com sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisória específica, que não exclui, mas secomplementa à das cortes. Dessa tensão se extraem objeções contra a revisão judicialbaseadas nas idéias <strong>de</strong> paternalismo ou <strong>de</strong> regime <strong>de</strong> guardiões.A décima, também obrigatória nos argumentos tradicionais em favor darevisão judicial, ocorre entre maioria e minoria. Parlamentos seriam o espaço <strong>de</strong>expressão da maioria e cortes constitucionais o local <strong>de</strong> proteção das minorias. Supõese,nesse caso (e a ciência política empírica relativiza em diferentes graus essasuposição), que a socieda<strong>de</strong> possa ser dividida nesses termos.A décima primeira, bastante freqüente, põe lado a lado as diferentesperspectivas <strong>de</strong>cisórias em que atuam parlamentos e cortes. Estas teriam o benefíciodo caso concreto, do exame retroativo e bem informado, a percepção dos impactosreais gerados pela lei. Aqueles estariam na dimensão menos palpável da especulaçãoprospectiva e abstrata. De um lado, a particularida<strong>de</strong> do caso concreto. De outro, a72 Conforme veremos no capítulo 4, Barry Friedman é o autor que lança luzes sobre essa distinção.73 Esses termos exatos foram usados por Christopher Zurn (cf. Deliberative Democracy and theInstitutions of Judicial Review, p. 82). David Estlund, por sua vez, chama o “governo <strong>de</strong> uma elitesábia” <strong>de</strong> “epistocracy” (cf. “Jeremy Waldron on Law and Disagreement”, p. 123).38


universalida<strong>de</strong> da pretensão legislativa. Ambos os prismas se complementam, e aausência da revisão judicial seria uma perda <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>cisório. 74A décima segunda refere-se a dois tipos <strong>de</strong> ação coletiva envolvidos na<strong>de</strong>mocracia: a estatística e a comunal, nos termos <strong>de</strong> Dworkin, ou a agregativa e a<strong>de</strong>liberativa, nos termos <strong>de</strong> Zurn. Ao sustentarem que “contar cabeças” ou “agregarinteresses formados numa esfera pré-política” (geralmente formados numa esfera prépolítica)não po<strong>de</strong> esgotar as formas <strong>de</strong>sejáveis <strong>de</strong> o regime <strong>de</strong>mocrático tomar<strong>de</strong>cisões, por incompatibilida<strong>de</strong> com seus valores subjacentes, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que umacorte po<strong>de</strong> se acomodar a esse arranjo se contribuir para a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa (quepressupõe a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transformar preferências por meio do argumento). 75 Essesdois tipos <strong>de</strong>cisórios estariam também associados, respectivamente, à parcialida<strong>de</strong> e àimparcialida<strong>de</strong> potencialmente presentes em cada situação, ou à realização dapreferência pessoal e à busca <strong>de</strong>sinteressada pelo interesse público.Para terminar essa cansativa (mesmo que não exaustiva) lista, 76 incluiria duasoposições que abriram o capítulo: a entre <strong>de</strong>mocracia e constitucionalismo, e a entrepolíticas públicas e direitos <strong>fundamentais</strong>, distinção central do liberalismo político. 77Categorizar e hierarquizar tipos <strong>de</strong> argumentos e tipos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão a partir <strong>de</strong> umaor<strong>de</strong>m <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s léxicas é um recurso da razão prática para solucionar dilemas74 Wil Waluchow tem nessa oposição uma das principais justificativas para a revisão judicial: <strong>de</strong> umlado uma corte que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo incremental, caso a caso, <strong>de</strong> baixo para cima (bottom up), que seriaa metodologia típica do common law. De outro, um parlamento que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> <strong>de</strong> cima para baixo,<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> um caso concreto (cf. A Common Law Theory of Judicial Review).75 Cf. Christopher Zurn, Deliberative Democracy and the Institutions of Judicial Review, cap. 2;Ronald Dworkin, “Constitutionalism and Democracy”, p. 2, e Freedom’s Law, “Introduction”.76 Vale mencionar algumas outras bastante presentes no direito e na política. No direito, por exemplo,as dicotomias entre positivismo e direito natural (<strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> como se articula direito e moral); entremodos <strong>de</strong> interpretação mais “legalistas” e mais “criativos” (há uma enorme multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> termosopostos para <strong>de</strong>notar essa idéia: Ely popularizou-a por meio da oposição entre “interpretativistas” e“não interpretativistas”; em outras ocasiões, para <strong>de</strong>marcar o espaço das cortes e o espaço da políticaeleitoral, traduz-se também a mesma idéia pelo contraste entre a aplicação e a criação do direito); entre“casos fáceis” e “casos difíceis”, sendo estes os que <strong>de</strong>spertam as gran<strong>de</strong>s divergências nas teorias dainterpretação, pois correspon<strong>de</strong>m aos momentos em que a norma não é suficiente para constranger ojuiz; entre teorias jurídicas que concebem o direito “<strong>de</strong> cima para baixo” (top down), com base nasanção, ou “<strong>de</strong> baixo para cima” (bottom up), com base na a<strong>de</strong>são social, para referir-se ao contrasteentre os positivismos <strong>de</strong> John Austin e Herbert Hart, respectivamente; entre common law e civil law.Na política, por sua vez, há uma série <strong>de</strong> jogos binários, para além dos já citados no texto, quecostumam servir como chaves <strong>de</strong> leitura e classificação <strong>de</strong> tradições do pensamento político: atomismoe holismo; indivíduo e comunida<strong>de</strong>; esfera privada e esfera pública; socieda<strong>de</strong> civil e estado; naturezahumana egoísta e auto-interassada ou virtuosa etc.77 Distinção que Dworkin chamou <strong>de</strong> “principles” e “policies”, para <strong>de</strong>limitar o espaço da autonomiaindividual, e o espaço do bem comum entendido na sua acepção utilitarista (bem-estar geral comofunção da maximização do bem-estar do maior número possível <strong>de</strong> indivíduos).39


<strong>de</strong>cisórios sem gran<strong>de</strong>s custos <strong>de</strong>liberativos. Uma vez admitida essa or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>priorida<strong>de</strong>s, o dilema está resolvido sem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> engajar-se na avaliação dasrazões <strong>de</strong> cada lado. 78 A caracterização <strong>de</strong> direitos como “trunfos”, por exemplo, éuma tentativa <strong>de</strong> priorizar um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> valor quando em conflito comoutro.A distinção entre políticas e princípios, especificamente, conforme vimos emDworkin, tentou resolver as dúvidas sobre a divisão <strong>de</strong> trabalho entre legislador ejudiciário na <strong>de</strong>mocracia. A linguagem dos direitos teria trazido para a moralida<strong>de</strong>política um recurso <strong>de</strong> proteção do indivíduo, uma pré-condição à legitimida<strong>de</strong> do“governo do povo”. Por trás da política pública estaria um mero interesse individual.Do ponto <strong>de</strong> vista teórico (e também simbólico e da retórica política), é diferente terum interesse e ter um direito. Mais do que isso, ter um direito implica num<strong>de</strong>slocamento institucional.4.5 Palavras, conceitos e retórica na política: sobre o título da teseAs observações a respeito da postura gradualista e as dicotomias-chave queorientam parte substancial da teoria política são convidativas para alguns breves<strong>de</strong>sdobramentos sobre o uso do vocabulário político. Não pretendo, aqui, entrar noamplo campo <strong>de</strong> investigação sobre a linguagem no domínio da política, mas apenasestabelecer premissas que explicam a maneira como a tese lida com as palavras maisrecorrentes <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>bate e como escolhi o título da tese. 79Os conceitos e palavras que integram o vocabulário político passaram por umpercurso histórico conflituoso. Em cada momento, propiciaram uma forma <strong>de</strong>78 Trata-se do que Joseph Raz chamou <strong>de</strong> “razão exclu<strong>de</strong>nte” (exclusionary reason) para explicar aespecificida<strong>de</strong> do direito diante <strong>de</strong> outras consi<strong>de</strong>rações morais; do que Dworkin chamou <strong>de</strong> “trunfo”para justificar a prevalência <strong>de</strong> direitos sobre consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> bem-estar geral; e do que Rawls chamou<strong>de</strong> priorida<strong>de</strong> léxica para or<strong>de</strong>nar princípios <strong>de</strong> justiça.79 A discussão sobre o papel da linguagem no estudo e no exercício da política <strong>de</strong>senvolveu-seespecialmente no século XX, influenciado pelo movimento da “filosofia da linguagem ordinária”(provocado por Wittgenstein e J. Austin). Dois livros interessantes sobre o assunto seriam: Ball et. al.,Political Innovation and Conceptual Change; e Pocock et al., Conceptual Change and the Constitution.Autores clássicos também não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> perceber a dimensão verbal da política. Waldron, p. ex.,mostra isso em relação a Bentham e Hobbes: “Like an earlier English philosopher, Thomas Hobbes,Bentham was convinced that one of the main sources of conflict in politics was verbal vagueness,equivocality and confusion” (cf. Nonsense Upon Stilts, p. 34).40


conceber e enten<strong>de</strong>r o espaço da política, <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver tipos <strong>de</strong> organização política(em comparação com outros), e <strong>de</strong> imaginar ou prescrever padrões <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>,mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> boa forma <strong>de</strong> governo. Orientam, portanto, diferentes olhares sobre umobjeto também em constante mutação.Estabilida<strong>de</strong> não é uma qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse vocabulário. Provavelmente, <strong>de</strong>vido auma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> motivos. Um <strong>de</strong>les é o fato da “contestabilida<strong>de</strong> essencial” damaior parte dos conceitos políticos, para voltar a uma observação do tópico anterior. 80A sua ambigüida<strong>de</strong> e imprecisão, nesse sentido, não são um estado efêmero a sersuperado por maior esforço <strong>de</strong> análise racional, mas <strong>de</strong> sua própria natureza. Isto é,tais palavras <strong>de</strong>spertam <strong>de</strong>sacordos razoáveis sobre o seu significado correto, e tal<strong>de</strong>sacordo é insanável. Às vezes, diferentes palavras referem-se a conceitos bastantesemelhantes, ou mesmo a realida<strong>de</strong>s similares, difíceis <strong>de</strong> discernir com niti<strong>de</strong>z. 81Outra conseqüência <strong>de</strong> tal caráter “essencialmente contestado” é que taistermos não são apenas instrumentos neutros da comunicação e da luta políticas, nãocausam simplesmente tais “<strong>de</strong>sacordos razoáveis”. São também, com freqüencia,alvos <strong>de</strong>ssa própria luta. Estão no calor da política, não num ambiente asséptico eimpermeável. São objeto <strong>de</strong> manipulação i<strong>de</strong>ológica e estratégica por meio <strong>de</strong>manobras lingüísticas que estruturam o <strong>de</strong>bate público <strong>de</strong> modo enviesado. 82 Servemcomo slogans ou como expressões <strong>de</strong> efeito para conquistar a<strong>de</strong>são <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umprojeto <strong>de</strong> ação ou <strong>de</strong> teorização política. 83A linguagem que usamos, portanto, influencia os tipos <strong>de</strong> reação e <strong>de</strong>spertasensibilida<strong>de</strong>s diversas. Em nome <strong>de</strong> que criticamos ou <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos um <strong>de</strong>terminadoarranjo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, uma certa política pública, uma dada interpretação constitucional?Quando estamos autorizados a utilizar certos termos? Há proprieda<strong>de</strong> intelectual sobre80 Alasdair MacIntyre, inspirando-se na idéia <strong>de</strong> “conceitos essencialmente contestados” <strong>de</strong> Gallie,comparou algumas características dos conceitos das ciências naturais e sociais (cf. “The EssentialContestability of Some Social Concepts”, p. 1-9).81 Cf., p. ex., Cícero <strong>de</strong> Araújo sobre a distinção entre “estado” e “república” na história do pensamentoe das instituições políticas (cf. Fundações da República e do Estado).82 George Lakoff mostra, por exemplo, como o <strong>de</strong>bate sobre aborto nos EUA foi estrategicamenteestruturado em torno das categorias “pro-life” e “pro-choice” (polarização conveniente para aquelesque se posicionam do lado “pro-life”), entre outras metáforas que impactam o nosso processo cognitivoem diversas áreas, a política entre elas (cf. Metaphors We Live By).83 Esse fenômeno se manifesta <strong>de</strong> maneira curiosa, por exemplo, na prática <strong>de</strong> “batismo” <strong>de</strong> partidospolíticos. No Brasil, o repertório <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais políticos contidos nos nomes <strong>de</strong> cada partido é numeroso.41


conceitos políticos? Certamente não há resposta incontroversa para essas perguntas.Tais conceitos se <strong>de</strong>scolam <strong>de</strong> sua origem histórica e evoluem <strong>de</strong> forma poucoprevisível, ganham novos usos e passam a aplicar-se a diferentes contextos. 84De uma lista dos termos mais usados e abusados na história mo<strong>de</strong>rna, semdúvida não po<strong>de</strong>ria faltar: “<strong>de</strong>mocracia” e “constituição” para a boa forma <strong>de</strong>governo, “liberda<strong>de</strong>” (ou “direitos”, opção mais abrangente e mais enraizada hoje emdia) para o respeito ao indivíduo, “igualda<strong>de</strong>” para a justiça social, “<strong>de</strong>sobediênciacivil” para o protesto político legítimo, entre outros. Rótulos servem também paradividir e classificar agremiações teóricas: liberais, utilitaristas, comunitaristas,republicanistas, marxistas etc. 85 Essa classificação facilita a simplificação doconfronto e, às vezes, ao enfatizar o conflito e as diferenças, per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista os pontosem que concordam. Escolas <strong>de</strong> pensamento tornam-se exclu<strong>de</strong>ntes e adversárias, semperceber que às vezes compartilham <strong>de</strong> muitas posições, seja no nível dos princípios,seja no nível das soluções concretas; sem notar que po<strong>de</strong>m se complementar e seenriquecer reciprocamente. 86Preferências vocabulares, portanto, oscilam historicamente. Esse processo é<strong>de</strong>terminado mais por uma dinâmica política do que por um gradual refinamentoestritamente intelectual. A <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do clima i<strong>de</strong>ológico, alguns termos caem em<strong>de</strong>suso e vão para a periferia <strong>de</strong> nosso vocabulário. Outros recebem novo colorido ealçam posições na escala <strong>de</strong> popularida<strong>de</strong>.84 Neil Walker, por exemplo, na palestra “Europe’s Midlife Crisis”, proferida na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Edimburgo em 22 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2007, discutiu a tentativa <strong>de</strong> a União Européia caminhar para o“registro constitucional” e lançou a provocação: “Há um comissário do conceito <strong>de</strong> constituição?” Nummomento em que a esfera supra-nacional tem sido o principal campo <strong>de</strong> inovação institucional, tornousefértil a reflexão sobre a transposição <strong>de</strong> conceitos típicos do estado nacional.85 Quem fornece a versão mais <strong>de</strong>sejável da igualda<strong>de</strong>, marxistas ou liberais? Essa pergunta orientaparte do esforço recente <strong>de</strong> Gerald Cohen (If You’re an Egalitarian, How Come You’re so Rich?) eexemplifica o <strong>de</strong>bate sobre o que está efetivamente em jogo entre os diferentes rótulos classificatóriosdo pensamento político.86 Dois exemplos interessantes sobre como reduzir <strong>de</strong>sacordo no nível dos princípios quando nãohouver perspectiva <strong>de</strong> acordo no nível concreto, e vice-versa, são oferecidos, respectivamente, porDennis Thompson e Amy Gutman (Deliberative Democracy) e por Cass Sunstein (“ConstitutionalAgreements Without Constitutional Theories”).42


A divisão disciplinar entre, <strong>de</strong> um lado, teoria ou filosofia política, e, <strong>de</strong> outro,ciência política, ocorrida no século XX, 87 também tem uma dimensão lingüísticainteressante. A segunda, na tentativa <strong>de</strong> conquistar respeitabilida<strong>de</strong> científica, <strong>de</strong>ixoucom a primeira as especulações normativas e os juízos morais, e tentou olhar para apolítica tal como ela efetivamente funciona. Para tanto, tentou neutralizar ovocabulário e utilizá-lo com propósito meramente <strong>de</strong>scritivo. Naturalizou o ponto <strong>de</strong>partida. Supôs, assim, que possamos nos dirigir ao “mundo real” sem uma série <strong>de</strong>conceitos normativamente <strong>de</strong>finidos, que possamos acessá-lo <strong>de</strong> forma isenta, semescolhas valorativas prévias, ou que o <strong>de</strong>scritivo e o normativo são duas formasin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> investigação. 88Há um exemplo oportuno e elucidativo sobre isso: “<strong>de</strong>mocracia” é umacategoria com imenso apelo simbólico, conforme observado no tópico anterior, ecostuma ter a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trunfo na escala <strong>de</strong> razões da argumentação prática. Ésabidamente escorregadia, não só porque po<strong>de</strong> ser usada retoricamente, mas tambémporque possui muitos sentidos. 89 É aplicada com pretensão, por vezes, normativa(para imaginar o “melhor regime”), por outras, <strong>de</strong>scritiva (para separar os países“<strong>de</strong>mocráticos” dos “não-<strong>de</strong>mocráticos”). 90 John Dunn notou que essa confusão temgerado, na história recente, uma “espúria validação normativa” 91 dos atos cometidospor regimes tidos como <strong>de</strong>mocráticos. Em vez <strong>de</strong> iluminar, a categoria “<strong>de</strong>mocrático”teria ofuscado e prejudicado nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ações políticasconcretas. Por seu valioso “status presumido” 92 , foi vítima <strong>de</strong> um uso promíscuo ediversionista e produziu um efeito mistificador.87 Cf. Sheldon Wolin, “Political Theory as a Vocation”, e John Gunnell, Between Philosophy andPolitics: The Alienation of Political Theory.88 Alasdair MacIntyre, em “The Essential Contestability of Some Social Concepts”, mostra como, porser social o nosso objeto <strong>de</strong> estudo, essa <strong>separação</strong> é falaciosa. Há muitos outros autores que tambémdiscutem essa tentativa <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scrição neutra <strong>de</strong> um fenômeno social, na posição <strong>de</strong> um observadorexterno, que não é necessariamente participante <strong>de</strong>ssa mesma ativida<strong>de</strong>. Parte do <strong>de</strong>bate entre HerbertHart (e vários discípulos), <strong>de</strong> um lado, e principalmente Lon Fuller, Ronald Dworkin e John Finnis, <strong>de</strong>outro, sobre como melhor enten<strong>de</strong>r e explicar o “direito”, é exatamente sobre essa que ficou conhecidacomo a “questão metodológica” na teoria jurídica.89 Robert Palmer faz levantamento didático sobre e evolução do termo “<strong>de</strong>mocracia”, seu papelenquanto símbolo político na Revolução Francesa e os predicados que o termo adquiriu recentementeno discurso político, a partir da I Guerra Mundial: é um símbolo freqüente <strong>de</strong> valores políticos, com umsentido sempre favorável e emocionalmente inspirador (cf. “Notes on the Use of the Word‘Democracy’: 1789-1799”, p. 203).90 Robert Dahl preferiu criar um novo termo para referir-se aos regimes existentes e assim distinguiu apoliarquia da <strong>de</strong>mocracia (cf. Democracy and Its Critics).91 Cf. John Dunn, “Disambiguating Democracy”.92 Ibid.43


Essas observações servem para introduzir e dar a dimensão do problema daescolha das palavras quando participamos da política, seja como ativista, seja comoteórico. Uma opção é usar as que já integram a tradição. Dentro da tradição, algunstermos são catalisadores e promotores do consenso, com maior po<strong>de</strong>r aglutinador.Alguns expressam apelo normativo mais acentuado, outros têm menor voltagemi<strong>de</strong>ológica. Trazem uma longa história. Outra opção é inventar um novo repertórioterminológico e marcar novas posições em relação à tal tradição. A tese, como já foipossível perceber, opta obviamente pela primeira, e tenta tomar as <strong>de</strong>vidas cautelasque tal escolha recomenda.Em primeiro lugar, no título: “<strong>Direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e<strong>de</strong>liberação”. A tese não é uma empreitada <strong>de</strong> análise conceitual pura, <strong>de</strong> genealogia<strong>de</strong> uma idéia, <strong>de</strong> rastreamento das suas origens e evolução ou algo parecido. Trata-se<strong>de</strong> um exercício <strong>de</strong> argumentação sobre um problema normativo já enfrentado nomestrado. Lido, novamente, com alguns i<strong>de</strong>ais políticos (e os termos correspon<strong>de</strong>ntes)e com práticas institucionais que se colaram historicamente a eles. Po<strong>de</strong>ria adotar,portanto, o mesmo título do trabalho que a antece<strong>de</strong>, pois <strong>de</strong>mocracia econstitucionalismo continuam a ser, necessariamente, o pano <strong>de</strong> fundo.Tomo um novo título, entretanto, não por eventual necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>diferenciação com o trabalho anterior, mas para lançar luzes em aspecto diferente domesmo problema, redirecionando as ênfases. O título compõe-se <strong>de</strong> três expressões.As duas primeiras correspon<strong>de</strong>m ao <strong>de</strong>sdobramento convencional doconstitucionalismo: uma <strong>de</strong>terminada estratégia procedimental <strong>de</strong> diluir o po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>modo que ele se autocontrole, e uma dada lista <strong>de</strong> limites substantivos às suas<strong>de</strong>cisões. Espelham a tensão entre procedimento e substância na limitação do po<strong>de</strong>r. Oterceiro elemento sugere um critério para orientar a relação entre os dois primeiros.Dito <strong>de</strong> outra maneira, o título opta por apontar mais diretamente para os trêscomponentes da abordagem adotada: direitos <strong>fundamentais</strong> como requisito <strong>de</strong> justiçapolítica que <strong>de</strong>ve permear parte do processo <strong>de</strong>cisório dos três po<strong>de</strong>res, e a<strong>de</strong>liberação como qualificador <strong>de</strong>ssa interação e medida para avaliar a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>suas <strong>de</strong>cisões.44


Ao relacionar os direitos <strong>fundamentais</strong> com a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, <strong>de</strong>staco acooperação institucional necessária para a sua promoção, em vez <strong>de</strong> colocá-los sob oprisma convencional do judiciário como “última trincheira” na proteção dos direitosameaçados pelos outros po<strong>de</strong>res. Altera-se o registro e discute-se a implementaçãodos direitos em diferentes níveis e estágios <strong>de</strong>ntro dos três po<strong>de</strong>res, não somente a suaheróica <strong>de</strong>fesa judicial.Reconheço, contudo, que continuo a me concentrar na relação específica entreparlamento representativo e corte constitucional. Para que se justifique o uso do termogeral “<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res”, suponho que haja um princípio subjacente quetranscen<strong>de</strong> àquela relação bilateral específica. Mais especificamente, as idéias <strong>de</strong>diálogo e <strong>de</strong> relativização da última palavra. Na escolha dos termos, portanto, o títulotenta “esfriar” e reduzir a voltagem i<strong>de</strong>ológica em relação ao uso <strong>de</strong> “<strong>de</strong>mocracia”. No<strong>de</strong>correr da tese, será inevitável voltar a lidar com aqueles outros termos omitidos notítulo.Abri este tópico <strong>de</strong> digressões metodológicas prometendo a exposição <strong>de</strong>alguns princípios <strong>de</strong> trabalho. Destaquei o papel que, na análise teórica da revisãojudicial, po<strong>de</strong> ter uma postura: aberta e sensível às suposições e implicaçõesenvolvidas, ajudando leitor e autor a situar-se <strong>de</strong>ntro da ca<strong>de</strong>ia argumentativa dateoria política; cuidadosa para lidar com a literatura norte-americana e isolar asvariáveis institucionais; gradualista para escapar das armadilhas binárias presentes nasvárias dicotomias que perpassam o texto; e atenta aos usos e abusos das palavras emnome <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais políticos. São metas exigentes que a tese procurará aten<strong>de</strong>r. É poucoprovável que seja bem sucedida em todas elas, mas acredito serem medidasconsistentes, entre outras possíveis, para avaliar a qualida<strong>de</strong> do produto final.5. Quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o que e como e quando e por que numa <strong>de</strong>mocracia?A pergunta tenta clarear as dimensões várias e inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da tomada <strong>de</strong><strong>de</strong>cisões coletivas. Ela ajuda a estruturar uma análise abrangente <strong>de</strong> como uma<strong>de</strong>mocracia organizada sob o princípio dos freios e contrapesos (ou mesmo outro tipo<strong>de</strong> regime) precisa lidar com cada um <strong>de</strong>sses elementos para regular seu modo <strong>de</strong>45


promover escolhas vinculantes sobre toda a comunida<strong>de</strong>. Devido à generalida<strong>de</strong> e àmaleabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa formulação, a pergunta provavelmente encobre tudo o que estáem jogo na justiça procedimental – o processo mais legítimo <strong>de</strong> resolver <strong>de</strong>mandascoletivas.Quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>? O ponto <strong>de</strong> partida intuitivo para investigar a natureza <strong>de</strong> umregime político é buscar pelo ator político central, ou a fonte <strong>de</strong> on<strong>de</strong> emergem oscomandos jurídicos e políticos. Saber a quem pertence a autoria das <strong>de</strong>cisões coletivasdá a impressão <strong>de</strong> ser a única pergunta com a qual realmente vale a pena sepreocupar. 93 Numa monarquia absoluta, por exemplo, tudo que se necessita saber, oupelo menos a informação mais relevante, é: “quem é o monarca?”. As outras respostasseriam diretamente <strong>de</strong>duzidas: Quando? Sempre. O quê? Tudo. Como? Pela vonta<strong>de</strong>do monarca. Por quê? Porque ele é o monarca.Alguém po<strong>de</strong>ria argumentar que, numa <strong>de</strong>mocracia, a resposta seria muitosimilar, bastando substituir o monarca pelo “povo”. Mas isso explicaria muito pouco,ignoraria a dificulda<strong>de</strong> do conceito <strong>de</strong> “povo” e não apreen<strong>de</strong>ria precisamente como<strong>de</strong>mocracias constitucionais foram historicamente organizadas. 94 Quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, ou,simplesmente, quem é o soberano, não é suficiente para enten<strong>de</strong>r esses regimes<strong>de</strong>vido à multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atores que impactam substancialmente o processo <strong>de</strong>tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões coletivas em nome do povo. 95 Assim, a autorida<strong>de</strong> legítima, nessecontexto, é <strong>de</strong>finida num sentido composto, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tipo, procedimento, tempoe justificação da <strong>de</strong>cisão. 96 Não há espaço para uma resposta monolítica eunidirecional.93 O pensamento clássico grego classifica as formas simples <strong>de</strong> governo i<strong>de</strong>ntificando “quem” por umcritério numérico: governo <strong>de</strong> um, <strong>de</strong> alguns e <strong>de</strong> muitos. Da combinação <strong>de</strong>ssa forma simples<strong>de</strong>correriam constituições mistas (cf. Cícero <strong>de</strong> Araújo, Fundações da República e do Estado, cap. 1).94 Mesmo porque, é bom lembrar, os regimes políticos mo<strong>de</strong>rnos não abrem mão <strong>de</strong> algum grau <strong>de</strong>expertise no <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> suas instituições. O “quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>”, nesse sentido, exige especificações sobreas qualida<strong>de</strong>s do agente indicado. Para algumas <strong>de</strong>cisões, basta ser membro da comunida<strong>de</strong>, cidadão.Para outras, basta ter sido eleito ou escolhido por outro processo. Para outras, ainda, é necessário teralguma qualificação especial para compor uma estrutura burocrática técnica.95 Tais atores políticos, aqui, po<strong>de</strong>m ser entendidos não apenas como autorida<strong>de</strong>s estatais formais, mastambém como fontes informais que influenciam a <strong>de</strong>cisão política, que ecoam as preferências dacomunida<strong>de</strong> e, em alguma medida, são capazes <strong>de</strong> agência política. As ramificações do conceito <strong>de</strong><strong>de</strong>mocracia como “governo do povo, pelo povo e para o povo” (oriunda <strong>de</strong> frase famosa <strong>de</strong> umdiscurso <strong>de</strong> Abraham Lincoln) po<strong>de</strong>ria sofisticar mais essa análise.96 Paul Brest formulou <strong>de</strong> modo mais claro a importância <strong>de</strong> saber quem tem a autorida<strong>de</strong> parainterpretar a constituição: “Hermeneutics has nothing to say about this question. But its recognition thatinterpretation is inevitably affected by the interpreter’s experiences and interests makes it important to46


Além disso, se mudamos o verbo e em vez <strong>de</strong> “quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>” perguntamos“quem obe<strong>de</strong>ce”, veríamos que a <strong>de</strong>mocracia constitucional apresenta um nó aindamais enredado: o produtor <strong>de</strong> normas se sobrepõe, supostamente, ao seguidor <strong>de</strong>normas. 97 O auto-governo popular, <strong>de</strong>ssa maneira, significa que “o povo” <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> quenormas “o povo” terá que obe<strong>de</strong>cer e quais objetivos comuns perseguirá. O <strong>de</strong>tentordo po<strong>de</strong>r e o <strong>de</strong>stinatário do po<strong>de</strong>r, com óbvias qualificações, coinci<strong>de</strong>m. 98 - 99Deci<strong>de</strong> o quê? Esse elemento <strong>de</strong>marca o campo da política, a dizer, osassuntos objeto <strong>de</strong> preocupação <strong>de</strong> toda a comunida<strong>de</strong> e aqueles reservados à vidaextra-política, ou, para uma certa tradição, à vida privada. A fronteira até a qual sepermite que a <strong>de</strong>cisão política legítima avance oscilou durante a história política e dopensamento. 100 Esse trabalho, contudo, adotará a distinção básica fornecida peloliberalismo político entre direitos (rights) e políticas públicas (policies). Recorro aessa distinção para me concentrar exclusivamente nas <strong>de</strong>cisões relativas a direitos, 101já que é <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse campo conceitual que as questões controversas sobre o mínimocontinue to ask how the allocation of constitutional <strong>de</strong>cision-making authority might be ma<strong>de</strong>consistent with our commitment to <strong>de</strong>mocracy” (cf. “Who Deci<strong>de</strong>s?”, p. 671). Waldron tambémelucida esse problema ao mostrar, por meio <strong>de</strong> um argumento <strong>de</strong> Hobbes, que a legitimida<strong>de</strong>institucional <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do procedimento formal (da localização da autorida<strong>de</strong>), não da justiça da <strong>de</strong>cisão.Já que as pessoas discordam sobre justiça, se essa fosse uma condição para obediência, haveria umrisco <strong>de</strong> anomia e <strong>de</strong>sobediência generalizada, ao sabor do capricho (ou mesmo da <strong>de</strong>liberação sincera)<strong>de</strong> cada indivíduo. A preocupação com a autorida<strong>de</strong>, mais do que com a resposta certa sobre asocieda<strong>de</strong> justa, é a convocação teórica que Waldron promove por meio <strong>de</strong> seus livros Law andDisagreement e The Dignity of Legislation, além <strong>de</strong> vários artigos.97 Suponho aqui que a <strong>de</strong>mocracia não po<strong>de</strong> abrir mão <strong>de</strong> normas como um instrumento para governaro comportamento humano. Nesse sentido, qualquer acepção concebível <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia (ou qualquertipo <strong>de</strong> governo), precisa supor que é possível, <strong>de</strong> alguma maneira, regular o comportamento humanopor meio <strong>de</strong> regras gerais politicamente produzidas.98 Essa afirmação certamente tangencia algumas importantes questões da teoria <strong>de</strong>mocrática: Po<strong>de</strong> umacomunida<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>mocrática sem um governo <strong>de</strong>mocrático, ou um governo <strong>de</strong>mocrático existir semuma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática? Uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática prece<strong>de</strong> o governo <strong>de</strong>mocrático, assimcomo os seguidores <strong>de</strong> normas (norm-users) prece<strong>de</strong>m os produtores <strong>de</strong> normas (norm-givers)? (cf.MacCormick, Institutions of Law). A abordagem clássica da relação entre socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática egoverno <strong>de</strong>mocrático é Democracy in America <strong>de</strong> Tocqueville. A literatura que estuda a relação entre<strong>de</strong>senvolvimento econômico e <strong>de</strong>senvolvimento político <strong>de</strong>screve também o processo histórico <strong>de</strong>vários países que se tornaram <strong>de</strong>mocráticos à medida em que cresceram economicamente (cf.Przeworski et al. Democracy and Development).99 Paul Kahn também já discutiu a relação entre o produtor <strong>de</strong> normas (ruler) e o <strong>de</strong>stinatário <strong>de</strong> normas(rule-follower) na <strong>de</strong>mocracia: “The discourse of constitutional theory has in large measure been aconversation about the self of self-government. If the divergence about the self and self-government istoo great, then the constitutional system loses its appearance of legitimacy. It would be a mistake,however, to assume that government has been measured against a stable concept of the self. The selfi<strong>de</strong>ntityof the citizen has been as much the product as the starting point of this conversation” (cf.Legitimacy and History, p. 3).100 Cf. Sheldon Wolin, Politics and Vision, p. 6-9.101 *O que John Rawls chamou <strong>de</strong> “constitutional essentials” (cf. Political Liberalism, p. xx).47


<strong>de</strong> justiça substantiva esperado da <strong>de</strong>mocracia e a legitimida<strong>de</strong> do controle <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong> emergem. A política, em outras palavras, tem um escopo muitomaior do que a <strong>de</strong>finição do domínio dos direitos. Este, entretanto, é o ponto focal datensão <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> entre parlamentos e cortes <strong>de</strong>ntro das <strong>de</strong>mocraciasconstitucionais.Deci<strong>de</strong> como? Esta pergunta <strong>de</strong>signa os passos exigidos para a tomada <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>cisão válida e legítima. Preocupa-se com a justiça do procedimento que osmembros <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> escolheram para <strong>de</strong>cidir suas questões comuns.Conforme já dito, a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão numa <strong>de</strong>mocracia constitucional émensurada tanto por seu conteúdo (output) quanto pelo seu procedimento (input). Emrelação a questões que provocam um grau acentuado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo, como geralmenteacontece nos conflitos entre direitos, a dimensão procedimental se impõe <strong>de</strong> modoainda mais impactante como umas das escolhas cruciais a serem feitas. Oreconhecimento <strong>de</strong> um procedimento justo estimula a aquiescência em face <strong>de</strong>resultados não consensuais.A primeira escolha procedimental <strong>de</strong>sses regimes, como vimos, foi diluir opo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> modo que, por meio dos freios e contrapesos, violações arbitrárias <strong>de</strong>direitos fossem previnidas. Mas há passos adicionais no centro do problema aquiinvestigado, e que vão além <strong>de</strong> simplesmente dividir o po<strong>de</strong>r. A segunda escolhaprocedimental, num nível suplementar, foi <strong>de</strong>cidir a base sobre a qual cada po<strong>de</strong>roperaria. Parlamentos, <strong>de</strong> acordo com a <strong>de</strong>scrição convencional, são responsáveis porinstitucionalizar a regra <strong>de</strong> maioria e a representação eleitoral do povo. 102 Cortes, porsua vez, são insuladas da política eleitoral para que tenham condições i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong>imparcialida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>cidir sobre direitos, os quais não po<strong>de</strong>m, por <strong>de</strong>finição, estarsujeitos ao tipo majoritário <strong>de</strong> justificação. 103 Espera-se também que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cortes102Tenho consciência <strong>de</strong> que essa concepção <strong>de</strong> parlamentos e cortes e suas respectivasfundamentações normativas dizem respeito, grosso modo, a como essas instituições foram recebidas ereinventadas pelas <strong>de</strong>mocracias constitucionais mo<strong>de</strong>rnas. Historicamente, ambas as instituições têmorigens e lógicas muito distintas <strong>de</strong>ssa tradução mo<strong>de</strong>rna, e passam longe da preocupação darepresentação do povo, por um lado, e da proteção <strong>de</strong> direitos individuais, do outro. Sobre a relaçãoentre parlamento e <strong>de</strong>mocracia, p. ex., cf. Bernard Manin, The Principles of RepresentativeGovernment.103 Cortes são instituições colegiadas e, mesmo que gran<strong>de</strong> ênfase seja posta na <strong>de</strong>liberação e naargumentação, quando o <strong>de</strong>sacordo persiste, também <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m por regra <strong>de</strong> maioria. Entretanto,diferentes cortes constitucionais implementam diferentes mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> “fóruns <strong>de</strong>liberativos”, variando,48


as <strong>de</strong>cisões sejam inspiradas, primeiramente, pelo argumento e pela <strong>de</strong>liberação,enquanto parlamentos estão mais sujeitos à barganha, à agregação <strong>de</strong> preferências eao voto, já que esse local <strong>de</strong>cisório seria mais refratário à <strong>de</strong>liberação. Não teria sido<strong>de</strong>senhada para tanto nem incentivaria postura <strong>de</strong>sconectada dos interesses maisimediatos <strong>de</strong> eleitores ou do próprio parlamentar. 104Para além <strong>de</strong>ssas consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> puros inputs procedimentais, a dimensãodo “como” também tangencia as qualida<strong>de</strong>s formais <strong>de</strong> diferentes outputs que cortes eparlamentos produzem. Cortes tomam <strong>de</strong>cisões que possuem uma racionalida<strong>de</strong>incremental, tanto prospectiva quanto retrospectiva, em oposição à legislação, queusualmente traduz-se numa regra geral, abstrata e prospectiva. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente doconteúdo do output, portanto, suas qualida<strong>de</strong>s formais são inerentes ao <strong>de</strong>senhoprocedimental <strong>de</strong>ssas instituições. 105Deci<strong>de</strong> quando? A dimensão temporal da política po<strong>de</strong> também ser divididaentre uma questão <strong>de</strong> output (os efeitos temporais da <strong>de</strong>cisão – retrospectiva,prospectiva ou ambas) e uma questão <strong>de</strong> input – o momento a<strong>de</strong>quado para <strong>de</strong>cidir.Vou me concentrar nessa segunda dimensão porque ela aponta para outraspreocupações centrais subjacentes à divisão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Isso é crucial pois nenhumpo<strong>de</strong>r tem exclusivida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>cidir questões <strong>de</strong> direitos. Todos participam numacerta seqüência, num intrincado circuito <strong>de</strong>cisório. Eles têm competências sobrepostasrelativas a direitos, sobreposição que se resolve pela <strong>de</strong>terminação do momentoapropriado para cada um agir. Usualmente, nos momentos <strong>de</strong> “política normal”, 106parlamentos têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> iniciar e aprovar uma solução para um problema comumpor meio <strong>de</strong> uma lei. Esta seria o ponto <strong>de</strong> partida para a inovação na or<strong>de</strong>m jurídica.Cortes, então, po<strong>de</strong>m ser provocadas a rever a lei em termos <strong>de</strong> sua valida<strong>de</strong><strong>de</strong> um lado, entre aquelas que promovem <strong>de</strong>liberações secretas e se expressam publicamente por meio<strong>de</strong> uma voz única e consensual – como a francesa e, geralmente, a alemã –, até as que fazem o<strong>de</strong>sacordo externo mais explícito, publicam votos vencidos e cujos juízes se comportam <strong>de</strong> modomajoritário – como a brasileira (cf. Pasquino e Ferejohn, “Deliberative Institutions”).104 Cortes se <strong>de</strong>frontam com uma “expectativa <strong>de</strong>liberativa” mais exigente, já que sua autorida<strong>de</strong> não ébaseada na representação eleitoral.105 Sobre as qualida<strong>de</strong>s formais da legislação e os respectivos princípios da “moralida<strong>de</strong> interna dodireito”, ver Fuller em The Morality of Law.106 “Política normal” se refere às <strong>de</strong>cisões ordinárias tomadas por autorida<strong>de</strong>s estabelecidas e se opõemaos “momentos constitucionais”, quando “o povo” toma <strong>de</strong>cisões fundacionais sobre a constituição (cf.Bruce Ackerman, “The Storrs Lectures: Discovering the Constitution”).49


constitucional. São passivas e reativas. Esse circuito continua em estágios posterioresque variam <strong>de</strong> sistema para sistema.A interação ao longo do tempo é o fenômeno a ser percebido aqui.Depen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> cada constituição, haverá um nível <strong>de</strong>cisório “último, porémprovisório” (legislativo ou judicial), 107 além do qual não há recurso institucionaladicional, exceto pelo reinício do processo, numa nova rodada procedimental. O focono “último nível” é <strong>de</strong>stacado pelas teorias da última palavra. A percepção <strong>de</strong> umainevitável e permanente circularida<strong>de</strong>, por outro lado, <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong>temporal mais sofisticada das teorias do diálogo. O prisma temporal insere um regimepolítico numa perspectiva diacrônica e ajuda a enxergá-lo como um empreendimentoinfinito <strong>de</strong> longo prazo, não apenas um conjunto <strong>de</strong> “momentos <strong>de</strong>cisórios” isoladosdo soberano.Finalmente, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por quê? Democracias constitucionais clamamlegitimida<strong>de</strong> com base na justificação por trás das <strong>de</strong>cisões coletivas, e especialmentepor trás das <strong>de</strong>cisões referentes a direitos, que requerem um tipo mais elaborado <strong>de</strong>argumentação moral. <strong>Direitos</strong> ocupam um lugar <strong>de</strong>cisivo na moralida<strong>de</strong> políticasubjacente ao modo como a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática é pensada. “Deci<strong>de</strong> por quê”,nesse sentido, conecta-se a “por que <strong>de</strong>vo obe<strong>de</strong>cer”. De on<strong>de</strong> vem a autorida<strong>de</strong> dalegislação e das <strong>de</strong>cisões judiciais? Quais são as exigências formais e substantivaspara <strong>de</strong>cisões sobre direitos e políticas públicas? A resposta varia conforme diferentesteorias políticas, e precisa conciliar os outros elementos da questão geral esboçadaneste tópico. É uma combinação <strong>de</strong> razões procedimentais (input) e <strong>de</strong> razõessubstantivas (output): por um lado, razões que justificam por que um ator político<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> alguma questão por meio <strong>de</strong> certo procedimento num <strong>de</strong>terminado momento;por outro, razões que justificam o conteúdo da <strong>de</strong>cisão em si.107 Obviamente, há a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revolução, que ocorre para além das instituições, rompendo-as. Éimportante esclarecer a moldura institucional mínima que esse trabalho pressupõe quando discute opapel <strong>de</strong> parlamentos e cortes. Como dito na introdução, suponho apenas que os regimes em questãopossuem uma constituição e uma carta <strong>de</strong> direitos somada a alguma prática <strong>de</strong> controle <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong>. Há outras variações adicionais que geram impacto relevante na discussão (como,por exemplo, entre mo<strong>de</strong>los fortes e fracos <strong>de</strong> revisão judicial). Meu nível <strong>de</strong> análise aqui, porém,possui um grau <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong> que provavelmente faz esses argumentos serem aplicáveis, em algumamedida, a qualquer sistema <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>.50


Em resumo, essa moldura geral permite perceber que, em <strong>de</strong>mocraciasconstitucionais, a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> “quem” (parlamentos ou cortes) não basta, etampouco é uma função exclusiva do “que” (direitos ou políticas públicas), mastambém do “como”, “quando” e “por quê”. A pergunta tenta dirigir-se para acomplexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> governo que apresenta respostas plurais a cada<strong>de</strong>manda <strong>de</strong>cisória. Uma <strong>de</strong>cisão não é <strong>de</strong>mocrática em razão <strong>de</strong> um elemento isolado.Há muitos atores, categorias <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões, procedimentos, “momentos <strong>de</strong>cisórios” ejustificações. Mesmo que as fronteiras analíticas entre essas cinco dimensões possamser maleáveis e às vezes coinci<strong>de</strong>ntes, o mérito da questão é a exigência <strong>de</strong> umaabordagem teórica da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res que não ignore nenhuma das variáveisinter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da legitimida<strong>de</strong>.Desenhar instituições é um exercício <strong>de</strong> balanceamento, <strong>de</strong> compensações, <strong>de</strong>tra<strong>de</strong>-offs entre diversos valores que não se realizam por inteiro sem interferir emoutro igualmente importante. Seja pelo sopesamento <strong>de</strong> princípios, seja pela análisemais crua <strong>de</strong> custo-benefício, <strong>de</strong>ve-se encontrar algum ponto <strong>de</strong> equilíbrio entre osvários fatores. Este é um senso comum abstrato, insuficiente para resolver dilemasconcretos por si só.Uma comunida<strong>de</strong> que se governa <strong>de</strong>mocraticamente precisa ter costurado asvariáveis presentes na pergunta-título mais ou menos explicitamente. Quanto maisexplícito, porém, melhores as condições para enten<strong>de</strong>r e criticar sua operação. Paraenten<strong>de</strong>r a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res na <strong>de</strong>mocracia, <strong>de</strong>ssa maneira, é necessário dar conta<strong>de</strong> todas essas dimensões. Medir a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática, tanto <strong>de</strong> um regimepolítico quanto <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões coletivas isoladas, é um exercício multi-facetado, que nãopo<strong>de</strong> prescindir <strong>de</strong> cada um daqueles elementos. 108108 A pergunta se aplica tanto à “macro-escala” da escolha institucional quanto à “micro-escala” do<strong>de</strong>senho institucional, conforme <strong>de</strong>finidas por Vermeule e Garrett: “Institutional choice asks whichsocial tasks should be allocated to which institutions, holding the <strong>de</strong>sign of those institutions constant;institutional <strong>de</strong>sign asks what internal structure and <strong>de</strong>cision rules institutions should have, holding theallocation of social tasks across institutions constant. Both institutional choice and institutional <strong>de</strong>signare necessary components of normative constitutional analysis” (cf. “Institutional Design of aThayerian Congress”, p. 1280). A tese, contudo, concentra-se somente no plano da escolhainstitucional, ou seja, na relação entre cortes e parlamentos.51


Já que restringi a investigação <strong>de</strong>sse trabalho a direitos, a questão geral po<strong>de</strong>ser levemente reformulada: Quem e como e quando e por que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre direitosnuma <strong>de</strong>mocracia constitucional? Esse direcionamento ajuda a estruturar a análise eestabelecer os termos pelos quais as diferentes respostas das teorias da última palavra,sejam elas inclinadas por parlamentos, sejam por cortes, ou das teorias do diálogopo<strong>de</strong>m ser postos.Po<strong>de</strong>r-se-ia notar alguma semelhança da pergunta-título com a forma pela qualHart concebe o direito e o lugar central das regras secundárias (regras que atribuempo<strong>de</strong>res). Tais regras oferecem os remédios para os <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> regimes maisprimitivos e pré-jurídicos, nos quais existem somente regras primárias (regras queimpõem <strong>de</strong>veres). Três, exatamente, são os <strong>de</strong>feitos: a incerteza, a estaticida<strong>de</strong> e aineficiência. Três, respectivamente, os remédios: a regra <strong>de</strong> reconhecimento, a regra<strong>de</strong> mudança e a regra <strong>de</strong> adjudicação. Só existirá um sistema jurídico maduro quandose pu<strong>de</strong>r perceber que, pelo menos autorida<strong>de</strong>s públicas e, se possível, a maioria doscidadãos comuns aceitam tais regras secundárias. Num sistema jurídico em crise oupatológico, há algum grau <strong>de</strong> conflito em relação a quais são elas. Hart <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> queestá a observar um fato, não a emitir um juízo <strong>de</strong> valor. 109 - 110 Sua formulaçãocertamente tangencia os componentes <strong>de</strong> “quem”, “o que”, “quando” e “como” dapergunta <strong>de</strong>sse capítulo. A dimensão do “por quê” converte a pergunta, entretanto, emnormativa. Hart não se propunha, em sua teoria do direito, a encontrar as melhoresrazões para a obediência, mas somente a constatar, enten<strong>de</strong>r e <strong>de</strong>screver um fatosocial – o fenômeno jurídico. A pergunta <strong>de</strong>sse capítulo busca estruturaranaliticamente uma teoria normativa do <strong>de</strong>senho institucional e iluminar todas as<strong>de</strong>mandas que uma tal teoria <strong>de</strong>ve enfrentar.5.1 Estruturas do <strong>de</strong>sacordoConforme afirmei anteriormente, esse tópico tentaria “abrir um pouco mais acouraça” e inserir o tema <strong>de</strong> fundo da tese num quadro mais preciso. Quero mostrar,109 Cf. HLA Hart, The Concept of Law, p. 90-110.110 É curioso notar que Dworkin também faz uma distinção bastante semelhante à entre regrasprimárias e secundárias <strong>de</strong> Hart. Quando discute a inter-<strong>de</strong>pendência dos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia econstitucionalismo, Dworkin sustenta que regras constitucionais “habilitadoras” e “<strong>de</strong>sabilitadoras”(“enabling” e “disabling constitutional rules”) são pré-requisito, e portanto, limite, à <strong>de</strong>mocracia (cf.“Constitutionalism and Democracy”, p. 2-3).52


em outras palavras, os principais níveis analíticos (ou, ao menos, as versõesterminológicas) que circundam o <strong>de</strong>bate e perceber como cada um <strong>de</strong>les <strong>de</strong>spertadiferentes graus <strong>de</strong> calor i<strong>de</strong>ológico. O tópico anterior já cumpriu parte <strong>de</strong>sse papel,ao formular uma pergunta que disciplina as respostas das teorias que vou estudar noscapítulos seguintes. Neste tópico, pretendo voltar a me referir a uma maneira maistradicional <strong>de</strong> estruturar o problema. Ela aparece já no primeiro parágrafo do capítulo:subjacente ao conflito entre parlamentos e cortes há, pelo menos, uma articulação dastensões entre dois i<strong>de</strong>ais políticos (<strong>de</strong>mocracia e constitucionalismo), dois tipos <strong>de</strong><strong>de</strong>cisão (direitos e políticas públicas) e duas <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>(procedimentais e substantivas). A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r as posições, portanto, nãose limita ao número <strong>de</strong> argumentos favoráveis e contrários, mas <strong>de</strong>corre da varieda<strong>de</strong><strong>de</strong> níveis teóricos, suas intensida<strong>de</strong>s e implicações institucionais.O <strong>de</strong>sacordo básico que orienta a classificação dos três próximos capítulos éinstitucional. Por essa via, encontrei três posições. Quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por último? Alguns<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m as cortes, outros os parlamentos e outros, ainda, dizem que “<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>”, quepo<strong>de</strong> ser tanto um quanto outro, que eles interagem, que outras consi<strong>de</strong>rações sãonecessárias para <strong>de</strong>terminar a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada instituição em cada momento. Masno que mais as posições discordam? O que está por trás <strong>de</strong>ssa divergência sobrepreferência institucional? Esse <strong>de</strong>sacordo se replica linearmente para outros níveisalém do institucional?Um exercício para encontrar suposições compartilhadas não diminuiria aimportância do <strong>de</strong>sacordo institucional, mas dimensionaria e localizaria o problema<strong>de</strong> maneira mais fi<strong>de</strong>digna. Perceberíamos que os adversários no campo institucionalnem sempre discordam nos outros níveis, e encontraríamos o lugar em que eles seseparam. Dentro <strong>de</strong> um esforço reconciliatório, essa distinção entre os níveis teóricospermitiria mostrar algumas camadas subterrâneas com potencial acordo por baixo do<strong>de</strong>sacordo superficial.Uma primeira tentativa <strong>de</strong> sistematização proporia a seguinte seqüênciabinária <strong>de</strong> equivalências:53


IIII<strong>de</strong>ais políticos Democracia ConstitucionalismoVariáveis <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> Forma SubstânciaDecisões Políticas públicas <strong>Direitos</strong>Instituições Parlamento CorteRecorrendo à extensa bateria <strong>de</strong> dicotomias enumeradas anteriormente,po<strong>de</strong>ria ainda somar algumas que se adaptariam bem a essa lógica: maioria v. minoria,curto prazo v. longo prazo, populismo v. expertocracia, agregativo v. <strong>de</strong>liberativo.Talvez seja uma simplificação extrema reduzir qualquer teoria da revisão judicial aesses dilemas, mas tampouco seria errado dizer que poucas efetivamente sedistanciam <strong>de</strong>sse paralelismo estanque. O conflito, em parte significativa das “teoriasda última palavra”, estrutura-se <strong>de</strong>ssa maneira, sem muito espaço para o meio-termo.Talvez fosse possível expandir ainda mais essa tabela <strong>de</strong> níveis <strong>de</strong> inferência, mas araiz da tensão continuaria a ser parecida.Um exame cuidadoso, contudo, revela alguns ruídos e cruzamentos querompem a linearida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa estrutura. Desacordos institucionais nem sempre<strong>de</strong>correm <strong>de</strong> concepções radicalmente distintas <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia ou constitucionalismo.Não soa bem ao ouvido <strong>de</strong> alguns falar em <strong>de</strong>mandas procedimentais e substantivastanto <strong>de</strong> um quanto <strong>de</strong> outro i<strong>de</strong>al político. Suporiam que a <strong>de</strong>mocracia requermeramente um procedimento formal. A <strong>de</strong>cisão é <strong>de</strong>mocrática se respeitar talprocedimento, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da substância. O constitucionalismo, por sua vez,traria tanto uma <strong>de</strong>manda substantiva quanto procedimental ao exercício do po<strong>de</strong>r(manifestadas, respectivamente, nos direitos e na <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res). Outro modocomum <strong>de</strong> formular essa tensão é opor “<strong>de</strong>mocracia procedimental” e “<strong>de</strong>mocraciasubstantiva”, ou vonta<strong>de</strong> da maioria e direitos <strong>fundamentais</strong> (estes como précondiçõesà legitimida<strong>de</strong> daquele procedimento).Essa operação, no entanto, envolve uma simplificação. Não é implausívelsuspeitar que a <strong>de</strong>manda pelo “governo do povo”, assim como a exigência <strong>de</strong> limites,possuem parâmetros <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> tanto substantivos quanto formais. Democracia,no sentido supostamente procedimental puro, seria entendida como um simples54


processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão majoritária. Esse procedimento, contudo, tem que respeitar, aomenos, suas próprias condições <strong>de</strong> existência, a saber, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que maioriase minorias co-existam numa comunida<strong>de</strong> e que consi<strong>de</strong>rem <strong>de</strong>cisões coletivas comomerecedoras <strong>de</strong> obediência. Isso não necessariamente sugere a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umaagência externa ao legislativo para <strong>de</strong>sempenhar o controle contra-majoritário. Tratase,simplesmente, <strong>de</strong> um requisito substantivo para que <strong>de</strong>cisões majoritárias sejam<strong>de</strong>fensáveis, e não um estratagema formal para encobrir <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> ruptura doregime. 111 Este regime tem que se auto-reproduzir, que sobreviver a si mesmo, quegerar um output que não suprima as condições do próprio input procedimental.O constitucionalismo, por sua vez, requereria um procedimento <strong>de</strong> limitaçãodo po<strong>de</strong>r (freios e contrapesos) e um parâmetro substantivo para mensurar alegitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões coletivas, geralmente corporificado numa <strong>de</strong>claração <strong>de</strong>direitos. Pareceria plausível <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que tais limites substantivos inerentes à“<strong>de</strong>mocracia procedimental” coinci<strong>de</strong>m com os limites substantivos propostos peloconstitucionalismo (ou seja, direitos <strong>fundamentais</strong>). Seriam o mesmo objeto. De fato,talvez haja tal coincidência, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> como cada autor e teoria concebe, <strong>de</strong>fineou interpreta esses i<strong>de</strong>ais.A oposição entre <strong>de</strong>mocracia “meramente” procedimental, da qual <strong>de</strong>correria a<strong>de</strong>fesa da supremacia parlamentar, e <strong>de</strong>mocracia substantiva, concepção <strong>de</strong> alguns<strong>de</strong>fensores da revisão judicial, nesse sentido, parece distorcer o que realmente está emquestão. Autores consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> uma “<strong>de</strong>mocracia procedimental pura”dificilmente propõem que <strong>de</strong>cisões majoritárias não possuem limites. Com maisfreqüência, dizem apenas que tais limites não po<strong>de</strong>m estar blindados numa carta <strong>de</strong>direitos interpretada exclusivamente pelo po<strong>de</strong>r judiciário. Defen<strong>de</strong>m que uma teoriasobre o melhor procedimento institucional é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma teoria sobre osmelhores resultados possíveis, ainda que tal substância mínima continue a fazer parte<strong>de</strong> sua concepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia. Recusam alguma presunção <strong>de</strong> infalibilida<strong>de</strong> ou111 Sobre a distinção <strong>de</strong> Arendt entre “<strong>de</strong>cisão majoritária” e a “regra <strong>de</strong> maioria”, cf. Waldron, TheDignity of Legislation, p. 186, nota <strong>de</strong> rodapé 9.55


mesmo <strong>de</strong> menor falibilida<strong>de</strong>. 112 São céticos no plano institucional, mas nem semprediscordam nos outros níveis.O que significam esses dois i<strong>de</strong>ais políticos separados? 113 Nos regimespolíticos contemporâneos, passou a ser impossível fazer essa discriminação. Essaoposição conceitual geralmente per<strong>de</strong> o foco <strong>de</strong> qual é efetivamente a disputa. Sãotermos com diferentes histórias e oriundos <strong>de</strong> diferentes tradições intelectuais, masque foram se interpenetrando no momento <strong>de</strong> sua institucionalização. Quanto mais sesobe no nível <strong>de</strong> abstração da tabela esboçada acima, mais se per<strong>de</strong> clareza sobre oque está em disputa, propriamente, no nível institucional. O <strong>de</strong>bate torna-se maisvulnerável à retórica e à luta apaixonada em nome <strong>de</strong> rótulos gradativamenteesvaziados <strong>de</strong> significado, cujos conteúdos são estipulados <strong>de</strong> maneira muito diversa.O nível dos i<strong>de</strong>ais políticos é o mais sujeito a imprecisões e a generalizaçõesque dificultam a verificação das implicações para os outros níveis. No plano dasvariáveis <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>, o terreno fica um pouco mais claro, ou, ao menos,<strong>de</strong>scarregado dos termos <strong>de</strong> alta voltagem política como “<strong>de</strong>mocracia”. No dasinstituições, a visibilida<strong>de</strong> do problema torna-se mais imediata e concreta, masprecisa, claro, fazer suposições sobre os outros níveis. É especificamente esse passoargumentativo que costuma permanecer obscuro em gran<strong>de</strong> parte da literatura, quesubestima a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> argumentos adicionais para justificar a <strong>de</strong>rivação <strong>de</strong> umcerto arranjo institucional a partir <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al. Não se trata <strong>de</strong> uma inferênciaautomática, pois precisa aten<strong>de</strong>r ao ônus da prova sobre capacida<strong>de</strong>s institucionais.A pergunta-título do tópico anterior e a tabela binária correspon<strong>de</strong>m a duasformas inter-relacionadas <strong>de</strong> classificar as posições sobre o lugar da revisão judicial112 O que Waldron chamou, respectivamente, <strong>de</strong> “teoria <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>” e “teoria da justiça”, duastarefas complementares da filosofia política (cf. Law and Disagreement, p. 2).113 Para Dworkin, por exemplo, constitucionalismo seria uma “precondição necessária da <strong>de</strong>mocracia”,“essencial para criar a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática – para constituir ‘o povo’” (cf. “Constitutionalism andDemocracy”, p. 10). A fusão dos i<strong>de</strong>ais da <strong>de</strong>mocracia e do constitucionalismo resulta no i<strong>de</strong>al da“parceria política” (political partnership), outra forma <strong>de</strong> Dworkin frasear o pertencimento moral doindivíduo à comunida<strong>de</strong> política (cf. “The Partnership Conception of Democracy”, p. 457). Zurn, porsua vez, critica o <strong>de</strong>bate americano por estar geralmente obrigado a “distorcer” a <strong>de</strong>mocracia e a“contorcer” o constitucionalismo <strong>de</strong> modo a conciliá-los e a acomodá-los com a prática da revisãojudicial norte-americana. Numa passagem que sintetiza a “contorção” do constitucionalismo: “In short,no judicial review, no constitutionalism” (cf. Deliberative Democracy and the Institutions of JudicialReview, p. 22-23). O mesmo esforço <strong>de</strong> articulação foi também feito por diversos autores relevantes,como Michelman, Nino e Waluchow.56


num governo legítimo. É mais difícil enten<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>sacordo pela tabela. Ela polariza e,sob aparência <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong> didática, per<strong>de</strong> em clareza. A pergunta mudaria nossaforma <strong>de</strong> enxergar o problema? Há algum ganho? A rigor, ela não elimina anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> passar pelas mesmas categorias. Ela atravessa todas aquelas camadasmas inverte a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> investigação, partindo do concreto para o abstrato. É uminstrumento que foca mais imediatamente na ação política (a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir) eque, além disso, incorpora uma dimensão temporal que viabiliza as teorias do diálogo.Trata-se, em síntese, <strong>de</strong> uma moldura analítica mais ampla: quem e como equando e por que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre direitos numa <strong>de</strong>mocracia? Ao refrasear a questão,escapo da camisa-<strong>de</strong>-força binária e abro espaço para uma investigação maisprodutiva: dos tipos <strong>de</strong> interação que aperfeiçoam ou maximizam a capacida<strong>de</strong>epistêmica da <strong>de</strong>mocracia. Não tento superar o problema anterior, nem escon<strong>de</strong>r que,por trás <strong>de</strong>le, há necessariamente uma interpretação e um balanceamento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>aispolíticos abstratos. Apenas inverto a seqüência e acrescento àquele uma nova questãoque reduz a tradicional primazia da última palavra.Quero afastar o perigo <strong>de</strong> ficarmos reféns <strong>de</strong> disputas terminológicas. Nãosignifica que os autores estudados não tenham sido consistentes nas respectivas<strong>de</strong>finições e conceitos. O problema é que cada um estipulou uma <strong>de</strong>finição ouelucidou um conceito diferente em nome <strong>de</strong> palavras parecidas (ou vice-versa). Nestatese, também tenho que oferecer uma teoria da legitimida<strong>de</strong> política que permitaposicionar-me nesses dilemas, o que será feito nos capítulos 6 e 7. “Democracia” e“constitucionalismo” inevitavelmente continuam a compor o argumento. Maisimportante, porém, é enten<strong>de</strong>r que por trás <strong>de</strong>ssa tarefa não está tanto um esforço <strong>de</strong>conciliação entre dois termos supostamente conflitantes, mas sim uma tentativa <strong>de</strong>estruturar institucionalmente um único i<strong>de</strong>al: o auto-governo coletivo, que implica emigual status moral <strong>de</strong> todos os cidadãos e culmina, por sua vez, em <strong>de</strong>mandas formaise substantivas, como veremos mais adiante.6. Preâmbulo dos capítulos 2, 3 e 457


Na literatura do direito e da política, juízes e legisladores são retratados <strong>de</strong>maneiras múltiplas e conflitantes, cada uma das quais produzindo óbviasconseqüências em como concebemos seus papéis, interpretamos suas ações e<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos seus limites e legitimida<strong>de</strong>. Teorias da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res costumampostular alguma expectativa em relação a ambos os atores. As imagens teóricasdisponíveis se encaixam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> rótulos classificatórios diferentes. Recorrendo auma dicotomia aqui já familiar, po<strong>de</strong>-se ensaiar alguns contrastes assimétricos entreversões otimistas e pessimistas <strong>de</strong>sses dois agentes, conforme anunciei no tópico 3acima.Os capítulos 2 e 3 constroem mo<strong>de</strong>los típico-i<strong>de</strong>ais do melhor e do pior: omelhor mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> juiz contra o pior mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> legislador e vice-versa. Tento exploraro potencial <strong>de</strong> uma influente constatação <strong>de</strong> Waldron: a teoria do direito nos habituoua comparar uma “figura i<strong>de</strong>alizada do juiz” (Hércules) com uma “figura <strong>de</strong>sprezível ecínica do legislador”, don<strong>de</strong>, previsivelmente, nasceu uma tradição <strong>de</strong> celebração darevisão judicial. 114 - 115 Esse quadro <strong>de</strong>sbalanceado teria produzido uma séria miopiacognitiva. Tal <strong>de</strong>sequilíbrio e falta <strong>de</strong> eqüida<strong>de</strong> teórica teria nos ensinado por meio <strong>de</strong>um esquema <strong>de</strong> pensamento problemático para falar sobre a <strong>de</strong>mocracia e o papel docontrole <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. Waldron talvez não consiga escapar <strong>de</strong> sua própriaprovocação, invertendo o <strong>de</strong>sequilíbrio em favor do legislador. 116114 A passagem é a seguinte: “There is nothing about legislatures or legislation in mo<strong>de</strong>rn philosophicaljurispru<strong>de</strong>nce remotely comparable to the discussion of judicial <strong>de</strong>cision-making. No one seems tohave seen the need for a theory or i<strong>de</strong>al-type that would do for legislation what Ronald Dworkin’smo<strong>de</strong>l of judge, ‘Hercules’, purports to do for adjudicatory reasoning. (…) Not only do we not have thenormative or aspirational mo<strong>de</strong>ls of legislation that we need, but our jurispru<strong>de</strong>nce is perva<strong>de</strong>d byimagery that presents ordinary legislative activity as <strong>de</strong>al-making, horse-trading, log-rolling, interestpan<strong>de</strong>ring,and pork-barreling – as anything in<strong>de</strong>ed, except principled political <strong>de</strong>cision-making. Andthere’s reason for this. We paint legislation up in these lurid sha<strong>de</strong>s in or<strong>de</strong>r to lend credibility to thei<strong>de</strong>al of judicial review (…), and to silence what would otherwise be our embarrassment about the<strong>de</strong>mocratic or ‘counter-majoritarian’ difficulties that judicial review is sometimes thought to involve.And so we <strong>de</strong>velop and i<strong>de</strong>alized picture of judging and frame it together with a disreputable picture oflegislating” (cf. The Dignity of Legislation, p. 1-2).115 Cf. Herman Pritchett, citado por Fisher, também faz constraste parecido: “Law is a prestigioussymbol, whereas politics tends to be a dirty word. Law is stability; politics is chaos. Law is impersonal;politics is personal. Law is given; politics is free choice. Law is reason; politics is prejudice and selfinterest.Law is justice; politics is who gets there first with the most” (cf. Fisher, ConstitutionalDialogues, p. 9).116 Difícil dizer que Waldron não tenha cometido o mesmo pecado teórico ao, por um lado, ter insistidonos formalismos semânticos em que o juiz constitucional inevitavelmente estaria amarrado, viciando o<strong>de</strong>bate moral; por outro, ao ter subestimado a importância <strong>de</strong> uma teoria da representação, restringido oargumento favorável ao legislador a uma teoria abstrata sobre igualda<strong>de</strong> e regra <strong>de</strong> maioria, e ignoradoqualquer evidência sobre fatores da dinâmica eleitoral que influenciam o comportamento do legislador,o qual, mesmo que bem intencionado, po<strong>de</strong> também se ver num contexto <strong>de</strong>cisório não i<strong>de</strong>al para58


A ciência política, conforme Waldron, seguiu um procedimento metodológicomais justo, e propôs um mo<strong>de</strong>lo cínico dos dois atores. 117 Waldron, diferentementedas duas abordagens, tentaria elevar o apelo normativo da legislação e ver quaisconseqüências <strong>de</strong>rivar disso, como veremos adiante nesse trabalho. Inspiro-me nessaobservação para montar a tabela abaixo, a qual tenta i<strong>de</strong>ntificar quatro cenáriosteóricos puros que se originam das suposições pessimistas e otimistas sobre juízes elegisladores:LegisladorJuizPessimistaOtimistaPessimista 1 2Otimista 3 4Pretendo opor o argumento mais forte em favor da supremacia judicial e oargumento mais forte pela supremacia legislativa. Reconstruo o contraditório <strong>de</strong>maneira polarizada, observando os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> juiz e <strong>de</strong> legislador que, <strong>de</strong> formaexclu<strong>de</strong>nte, levam alguns a optar pelo primeiro e outros a optar pelo segundo. Sãofrutos <strong>de</strong> uma obsessão pela última palavra, <strong>de</strong> uma perspectiva estática da <strong>separação</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Em vez <strong>de</strong> buscar o lado vencedor, o capítulo 4 <strong>de</strong>screve teorias quebuscam encontrar um caminho virtuoso que combine as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ambas. Essasteorias fomentam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> co-existência entre parlamentos e cortesconstitucionais, sem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher entre um e outro <strong>de</strong> modo mutuamenteexclu<strong>de</strong>nte.promover uma <strong>de</strong>liberação moral <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong>. Voltarei a esse ponto em outros momentos da tese(cf. Law and Disagreement e The dignity of legislation). Como disse Waluchow: “But in attempting tocorrect the imbalance, he seems to have rigged the <strong>de</strong>bate in the opposite direction” (cf. “Constitutionsas Living Trees: An Idiot Responds”, p. 49-50).117 Waldron continua sua provocação: “Political scientists do better of course. Unlike law professors,they have the good grace to match a cynical mo<strong>de</strong>l of legislating with an equally cynical mo<strong>de</strong>l ofappellate and Supreme Court adjudication. Part of what I’m interested in doing in these lectures is toask, ‘What would it be like to <strong>de</strong>velop a rosy picture of legislatures that matched, in its normativity,perhaps in its naivete, certainly in its aspirational quality, the picture of courts – the ‘forum ofprinciple’, etc. – that we present in the more elevated moments of our constitutional jurispru<strong>de</strong>nce?”(cf. The Dignity of Legislation, p. 1-2).59


Suponho que o argumento mais forte pela supremacia judicial e pelasupremacia legislativa são, respectivamente, os dois cenários teóricos <strong>de</strong>sbalanceadosacima (2 e 3). Os outros dois cenários (1 e 4) oferecem argumentos mais fracos, epo<strong>de</strong>rão também ser visualizados. Esses contrastes ajudam a estilizar algumasimagens frutíferas no <strong>de</strong>bate sobre as teorias do diálogo. Tais imagens estilizadas nãose encaixam com precisão na teoria <strong>de</strong> um só autor, mesmo que Ronald Dworkin eJeremy Waldron tenham proximida<strong>de</strong> mais clara com os tipos puros 2 e 3. É difícilsuperá-los no mo<strong>de</strong>lo do juiz e do legislador i<strong>de</strong>ais. Não <strong>de</strong>screvo a posição integral<strong>de</strong> nenhum autor. Seleciono autores para exemplificar argumentos. Freqüentemente,os autores selecionados não se restringem ao ponto que <strong>de</strong>staco da teoria <strong>de</strong>les.Procuro construir duas posições abrangentes que, apesar da artificialida<strong>de</strong>, iluminemnão somente os argumentos favoráveis à instituição preferida, mas também osrespectivos argumentos contrários à outra (raramente bem articulados na literatura).Em síntese, o próximo capítulo combina, para usar <strong>de</strong> uma expressão <strong>de</strong>Hart, 118 o “nobre sonho” sobre juízes com o “pesa<strong>de</strong>lo” sobre legisladores. É ocapítulo <strong>de</strong> Hércules contra o legislador amoral (ou mesmo venal). O capítulo 3 faz ocontrário: olha para o legislador virtuoso e para o juiz político e i<strong>de</strong>ológico. Ambos oscapítulos procuram suprir uma lacuna que torna vulneráveis e incompletas as teoriasda última palavra. Tentam iluminar o edifício intrincado <strong>de</strong> problemas e argumentosfavoráveis e contrários dos dois lados, em vez <strong>de</strong> atacar um sem levar a sério asobjeções, que permanecem não respondidas. 119 O 4, por fim, passa ao largo <strong>de</strong>ssassuposições e verifica modos <strong>de</strong> interação. Mais do que um <strong>de</strong>talhamento <strong>de</strong> extensaliteratura que essa discussão atravessa, apresento um mapa com espécies <strong>de</strong>argumentos e suas principais referências e fontes.118 Cf. H.L.A. Hart, “American Jurispru<strong>de</strong>nce Through English Eyes”.119 Uma seqüência alternativa para leitura dos capítulos 2 e 3 seria começar pela parte 2.1 (a favor darevisão judicial)), seguir para a 3.2 (contra), ir para a 3.1 (a favor <strong>de</strong> parlamentos) e voltar para a 2.2(contra parlamentos). Não organizei a exposição nessa seqüência porque preferi manter a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>conjunta <strong>de</strong> cada posição.60


Capítulo 2A inclinação por juízes e cortes constitucionais1. IntroduçãoHá numerosos argumentos em favor da supremacia judicial. Variam nafunção, freqüência e lugar que ocupam em teorias gerais da <strong>de</strong>mocraciaconstitucional. Em gran<strong>de</strong> parte, não são exclu<strong>de</strong>ntes ou conflitantes. Alguns sesobrepõem, distinguindo-se apenas na sua extensão. Outros aparentam dizersubstancialmente a mesma coisa, mas variam nos termos e conceitos utilizados.Combinados, po<strong>de</strong>m construir uma posição geral dotada <strong>de</strong> alguma consistênciainterna.A tarefa do capítulo é <strong>de</strong>screvê-los sinteticamente. Cada um permitiria longasincursões críticas que fogem ao objetivo aqui. Mais do que entrar nos <strong>de</strong>talhes e<strong>de</strong>sdobramentos, pretendo dar uma noção horizontal do conjunto. O eventual valor docapítulo, portanto, está em colocar lado a lado, <strong>de</strong> maneira sistemática, fragmentosque geralmente se encontram espalhados na literatura. O pacote completo nãocostuma ser oferecido nas teorias da revisão judicial. Não quero dizer que tal teoriaprecise passar por todos os componentes abaixo enumerados, como se,cumulativamente, a posição se tornasse mais forte. No entanto, <strong>de</strong>sconfio que muitasvezes peca por <strong>de</strong>ixar alguns elementos mínimos nas entrelinhas, no terreno dassuposições mal articuladas. Mais concretamente, conjugam argumentos em <strong>de</strong>fesa darevisão judicial sem dar atenção ao outro lado da moeda – o parlamento, cujasqualida<strong>de</strong>s ou <strong>de</strong>feitos são pressupostos e dados como certos. Essas ausências tornamdifícil ter uma visão completa do edifício.Argumentos institucionais <strong>de</strong>vem ser postos num quadro comparativo emrelação às alternativas existentes (ou mesmo às imagináveis e hipotéticas). Aquilidamos com instituições existentes. Nesse sentido, além <strong>de</strong> apontar para eventuaisqualida<strong>de</strong>s da corte na proteção <strong>de</strong> direitos, há que se <strong>de</strong>monstrar também que olegislador é pior. E vice-versa, como faz o próximo capítulo.61


O capítulo se estrutura em duas partes. Na primeira, exponho os argumentos afavor <strong>de</strong> juízes e cortes. Na segunda, os contrários a legisladores e parlamentos. Cadaargumento é apresentado por meio <strong>de</strong> uma frase-síntese que encabeça o tópico. Opano <strong>de</strong> fundo comum é que a corte <strong>de</strong>ve ter a última palavra sobre direitos. Apóscada frase-síntese, adiciono uma curta explicação sobre a idéia e, em rodapé, mapeioalguns autores representativos do ponto específico. A maioria dos argumentoscircunda uma ou mais das dicotomias enumeradas no capítulo introdutório. A or<strong>de</strong>m<strong>de</strong> exposição começa pelas justificativas mais freqüentes e segue para outras <strong>de</strong>caráter complementar.2. A favor <strong>de</strong> juízes e cortesA corte constitucional, ao contrário do parlamento, jamais é percebida comoelemento natural da <strong>de</strong>mocracia. Sua <strong>de</strong>fesa toma como ponto <strong>de</strong> partida que oparlamento é indispensável, mas insuficiente. Nesse sentido, essa conexão teóricageralmente se expressa por verbos como proteger, preservar, potencializar e seusvariantes. O ataque ao parlamento, por sua vez, consiste sempre numa tentativa <strong>de</strong>relativizar seu papel, não <strong>de</strong> suprimi-lo.Cortes ocupam uma posição institucional especial, premissa dos argumentosabaixo: são compostas por membros não eleitos diretamente, mas escolhidos poralgum método do qual participam autorida<strong>de</strong>s eleitas; 120 <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nomeados, juízesganham estabilida<strong>de</strong> e não po<strong>de</strong>m ser retirados do cargo em razão <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões;não estão, portanto, imediatamente sujeitos à dinâmica eleitoral e ao ritmo daalternância parlamentar; em razão disso, consi<strong>de</strong>ra-se que estão imunes à prestação <strong>de</strong>contas e responsabilização política (são unaccountable, na acepção eleitoral <strong>de</strong>accountability).2.1 “A corte protege as pré-condições da <strong>de</strong>mocracia”.120 Esses métodos variam <strong>de</strong> país para país. Nos EUA e no Brasil, por exemplo, é atribuição doPresi<strong>de</strong>nte nomear e do Senado aprovar. Em outros países, como a Alemanha, o po<strong>de</strong>r legislativoparticipa mais ativamente <strong>de</strong>ssa escolha.62


Este argumento consi<strong>de</strong>ra que a <strong>de</strong>mocracia não se realiza simplesmente pelaexistência <strong>de</strong> um legislador eleito que toma <strong>de</strong>cisões por regra <strong>de</strong> maioria,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> outras condições. Aceita que uma agência externa aoparlamento possa <strong>de</strong>sempenhar um papel <strong>de</strong> anteparo <strong>de</strong>ssas pré-condições. Há duasversões <strong>de</strong>ssa idéia, como veremos abaixo: a primeira aceita a interferência externasomente para preservar o procedimento <strong>de</strong> competição <strong>de</strong>mocrática; a segunda, maisambiciosa, requer que <strong>de</strong>cisões legislativas sejam submetidas a um controle <strong>de</strong>substância, <strong>de</strong> acordo com os princípios <strong>de</strong> justiça que a <strong>de</strong>mocracia pressupõe. O queune ambos, portanto, é a idéia <strong>de</strong> que a revisão judicial tem uma missão constitutivada própria <strong>de</strong>mocracia a cumprir. Está em jogo, aqui, a tensão entre forma esubstância.2.1.1 “A corte assegura o processo <strong>de</strong> formação da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática”.Procedimentalistas não são entusiasmados pela supremacia judicial. Aocontrário, conce<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> maneira contida, uma pequena margem <strong>de</strong> ação corretiva àcorte. A<strong>de</strong>rem a vários argumentos apresentados no capítulo 3 e têm em gran<strong>de</strong> contaos valores da representação e da regra <strong>de</strong> maioria.Essa margem <strong>de</strong> ação corretiva diz respeito à preservação da competiçãopolítica. 121 A corte está legitimada a intervir somente quando i<strong>de</strong>ntifica “falhas nomercado político”. Tem, portanto, um papel “anti-truste”. 122 Preocupa a esses autoresque as vias <strong>de</strong> expressão e canalização <strong>de</strong> projetos coletivos estejam bloqueadas acertos grupos isolados, que as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mobilização e mudança estejamtrancadas. O conceito que <strong>de</strong>u corpo a esse receio é o <strong>de</strong> “minorias separadas einsulares”, presente numa <strong>de</strong>cisão da Suprema Corte americana. 123 Correspon<strong>de</strong>m a121 “Court should not act as an elite impediment to what it takes to be the substantive excesses of thepolitically responsible branches but, on the contrary, as a perfecter of the <strong>de</strong>mocratic process” (cf. Ely,“The Apparent Inevitability of Mixed Government”, p. 290).122 “The approach to constitutional adjudication recommen<strong>de</strong>d here is akin to what might be called an‘antitrust’ as opposed to a ‘regulatory’ approach to economic affairs – rather than dictate substantiveresults it intervenes only when the ‘market’, in our case the political market, is malfunctioning” (cf.Ely, “Toward a Representation-Reinforcing Mo<strong>de</strong> of Judicial Review”, p. 488)123 A expressão “insular and discrete minorities” está presente na nota <strong>de</strong> rodapé n. 4 do voto do JusticeStone no caso Carolene Products, 1938, rodapé mais famoso do direito constitucional americano.Robert Cover faz uma <strong>de</strong>talhada análise <strong>de</strong>ssa nota <strong>de</strong> rodapé em “The Origins of Judicial Activism inthe Protection of Minorities”, p. 1293.63


grupos sistematicamente excluídos dos processos <strong>de</strong>cisórios e <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong>qualquer voz.A corte <strong>de</strong>ve fiscalizar a participação e combater eventuais discriminações. Ofato <strong>de</strong> não ser eleita facilitaria essa ativida<strong>de</strong>. Deve ser protetora <strong>de</strong> direitos civis epolíticos inerentes à competição, ao funcionamento e à manutenção dos processos<strong>de</strong>cisórios: liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, <strong>de</strong> reunião, <strong>de</strong> associação partidária, o direito aovoto. Monitora a eqüida<strong>de</strong> procedimental. Preocupa-se em dar voz a setoresmarginalizados da socieda<strong>de</strong>.A corte, nessa corrente, não po<strong>de</strong> imiscuir-se nas escolhas <strong>de</strong>mocráticas, nasgran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>cisões do “povo”. Precisa somente garantir que o jogo <strong>de</strong> interesses sejadisputado sob bases igualitárias. Extrapolar essa função e a<strong>de</strong>ntrar no domínio dosjuízos morais substantivos da <strong>de</strong>mocracia equivaleria a um “regime <strong>de</strong> guardiões”, pormeio do qual “o povo” é privado <strong>de</strong> governar a si mesmo e se infantiliza ao ter que sesubordinar a uma elite que, supostamente, teria mais capacida<strong>de</strong> para fazer as escolhaspor ele. 124<strong>de</strong>mocracia”.2.1.2 “A corte protege os direitos <strong>fundamentais</strong> e o conteúdo <strong>de</strong> justiça daA <strong>de</strong>fesa da supremacia judicial abertamente ativista para a promoção <strong>de</strong>princípios <strong>de</strong> justiça criou duas eloqüentes representações da corte: o juiz “Hércules”e o “fórum do princípio”. Ronald Dworkin é o representante obrigatório <strong>de</strong>ssa124 O representante imediato <strong>de</strong>ssa posição é John Hart Ely, que propôs a chamada “participationoriented,representation-reinforcing approach to judicial review”, em oposição à “value-protectingapproach” (cf. “Toward a Representation-Reinforcing Mo<strong>de</strong> of Judicial Review”, p. 471). Defen<strong>de</strong> ummétodo não-interpretativista (não preso ao texto), mas que não caia nos excessos substantivistas. Paraele, o processo <strong>de</strong>mocrático é um mercado <strong>de</strong> interesses que <strong>de</strong>vem ser agregados. Robert Dahltambém segue linha parecida, e aceita a revisão judicial somente nesses termos, papel que ele chama <strong>de</strong>quasiguardianship (cf. Democracy and Its Critics). Eu me arriscaria a incluir nessa corrente algunsautores que examinam a legitimida<strong>de</strong> da revisão judicial à luz da <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>liberativa. Estes autoresavançam para direitos mais ambiciosos, mas não chegam tão longe quanto Dworkin. Traçam uma linhadivisória e param em algum ponto no meio do caminho. Refiro-me, principalmente, a Jürgen Habermas(cf. Direito e Democracia), a Carlos Santiago Nino (cf. The Constitution of Deliberative Democracy) ea Christopher Zurn (cf. Deliberative Democracy and the Institutions of Judicial Review). Esseagrupamento, apesar <strong>de</strong> não fazer justiça às distinções entre essas duas correntes, me parece a<strong>de</strong>quadopor focar nas semelhantes recomendações práticas que, ao final, esses autores fazem à corte.64


visão. 125 Seu ponto <strong>de</strong> partida é reconstruir a concepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia para mostrarque, na medida em que este é um regime moralmente <strong>de</strong>sejável, não po<strong>de</strong> contentar-sesó com procedimentos formalmente igualitários. O capítulo introdutório <strong>de</strong>ssa tese já<strong>de</strong>dicou alguns parágrafos ao resumo <strong>de</strong>sse autor e aqui me interessa apenasmencionar por que ele rejeita a opção procedimentalista do tópico anterior.Para ele, como vimos, <strong>de</strong>mocracia é “um esquema procedimentalincompleto”, 126 que persegue o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> “igual consi<strong>de</strong>ração e respeito”. A realização<strong>de</strong>sse i<strong>de</strong>al prece<strong>de</strong> o procedimento majoritário. Em outras palavras, o procedimentonão tem valor algum se, ao ser posto em marcha, não estiverem presentes asexigências daquele i<strong>de</strong>al. A dimensão quantitativa e estatística da <strong>de</strong>mocracia só goza<strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>, portanto, se não produzir <strong>de</strong>cisões que <strong>de</strong>srespeitem suas própriascondições <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>. Uma comunida<strong>de</strong> moral precisa existir para que a puraagregação <strong>de</strong> interesses, pela regra <strong>de</strong> maioria, possa <strong>de</strong>mandar obediência. O método<strong>de</strong> mensuração da legitimida<strong>de</strong> é, portanto, conseqüencialista e instrumental.Até aqui, uma lógica <strong>de</strong> raciocínio parecida com o argumento anterior. O quemuda, efetivamente, é a extensão <strong>de</strong> “igual consi<strong>de</strong>ração e respeito”, que abarcadireitos não necessariamente relacionados com a estrita competição política. O tópicoanterior, portanto, prevê que a revisão judicial com base em alguns direitos é legítima,e com base em outros, não. Para Dworkin, essa “fuga da substância” é operaçãoinsustentável e incoerente. 127 O juiz só po<strong>de</strong>ria optar por proteger exclusivamente osaspectos procedimentais da competição política se fizer uma escolha substantivaprévia sobre qual a melhor concepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia. Mas é justamente a recusa <strong>de</strong>que juízes façam escolhas substantivas que fundamenta aquela posição. 128125 Minha dissertação analisou extensamente os vários textos <strong>de</strong> Dworkin que constroem esseargumento. Outros autores certamente po<strong>de</strong>m ser associados a essa linha <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, como John Rawls,Michael Perry e Laurence Tribe. Samuel Freeman e Stephen Holmes, que são mencionados noargumento específico do pré-comprometimento abaixo, também se encaixam nessa posição.126 Cf. Freedom’s Law, p. 32.127 Cf. A Matter of Principle, p. 58.128 “Judges charged with i<strong>de</strong>ntifying and protecting the best conception of <strong>de</strong>mocracy cannot avoidmaking exactly the kinds of <strong>de</strong>cisions of political morality that Ely is most anxious to avoid: <strong>de</strong>cisionsabout individual substantive rights” (Ibid, p. 64). “He thinks it allows judges to avoid issues ofsubstance in political morality. But it does so only because the theory itself <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>s those issues, andjudges can accept the theory only if they accept the <strong>de</strong>cisions of substance buried within it” (Ibid, p.67).65


A premissa escondida do argumento procedimentalista subverte, portanto, asua pretensão. Para Dworkin, se concordamos que a <strong>de</strong>mocracia é compatível comuma instituição não-majoritária que toma <strong>de</strong>cisões contra o legislador, não po<strong>de</strong>mosparar no meio do caminho e separar alguns direitos em relação a outros, para evitarque o juiz tome <strong>de</strong>cisões substantivas. O juiz que a<strong>de</strong>re a essa possibilida<strong>de</strong> já tomouuma <strong>de</strong>cisão moral prévia.maioria’”.2.2 “A corte protege os direitos das minorias e impe<strong>de</strong> a ‘tirania daTrata-se <strong>de</strong> uma pequena variação do argumento anterior, reformulado a partirda tensão entre minoria e maioria. É um argumento clássico que remonta a Aléxis <strong>de</strong>Tocqueville e John Stuart Mill e, a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da interpretação, também aosFe<strong>de</strong>ralistas. “Tirania da maioria” é expressão <strong>de</strong> uso corrente no vocabulário políticocotidiano e se mostrou bastante a<strong>de</strong>quada para a justificação do papel e legitimida<strong>de</strong>da revisão judicial. 129Dito <strong>de</strong> maneira sintética, a <strong>de</strong>mocracia opera a partir da vonta<strong>de</strong> da maioria<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não reprima ou tiranize a minoria. Há, portanto, um limite à maioria, queconcretamente vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> como se entenda “tirania”. O tópico anterior,subdividido em duas vertentes, traduz melhor o aspecto procedimental ou a potencialdimensão substantiva <strong>de</strong>sse limite. Negar a importância da proteção <strong>de</strong> direitos dasminorias equivaleria a retomar argumentos <strong>de</strong> uma tradição intelectual insustentável e<strong>de</strong>rrotada pela história. 1302.3 “A corte é emissária do ‘Povo’ genuíno e operacionaliza o précomprometimento”.Esta <strong>de</strong>fesa da revisão judicial se baseia na distinção básica doconstitucionalismo entre dois níveis <strong>de</strong> produção do direito, o ordinário e oextraordinário, que repercutem na hierarquia das normas. No momento extraordinário,129 Há muitos autores que se utilizam <strong>de</strong>ssa expressão, sempre complementada por algum conteúdomais específico (cf. Oscar Vilhena Vieira, A Constituição e sua Reserva <strong>de</strong> Justiça).130 Waldron faz uma boa compilação e também analisa passagens <strong>de</strong> textos clássicos da “tradição antidireitos”em Nonsense Upon Stilts.66


cabe ao po<strong>de</strong>r constituinte fundar juridicamente o estado por meio <strong>de</strong> umaconstituição, ou reformá-la. No momento ordinário, o legislador produz leis. Para queeste obe<strong>de</strong>ça às gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> rumo daquele, uma corte constitucional precisacontrolar o parlamento.Há duas formas diferentes <strong>de</strong> expressar essa idéia geral. A primeira pelaconhecida concepção <strong>de</strong> dualismo constitucional <strong>de</strong> Bruce Ackerman. Para esse autor,a constituição institucionaliza uma vida política bipartida, separada em dois atos: apolítica constitucional ocorre em momentos especiais da história em que “o povo” semobiliza e com virtu<strong>de</strong> cívica toma <strong>de</strong>cisões inspiradas no bem comum; a políticanormal é a política do puro interesse e barganha privados. A missão da revisãojudicial, nesse contexto, é prestar contas ao “povo” que se manifesta nos momentosconstitucionais. Não se trata propriamente, para Ackerman, <strong>de</strong> uma dificulda<strong>de</strong>contra-majoritária, mas apenas <strong>de</strong> uma dificulda<strong>de</strong> inter-temporal, pois o processo <strong>de</strong>emenda, quando “o povo” <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> realizar alguma mudança na constituição e nainterpretação da corte, consome um esforço maior e mais <strong>de</strong>morado. 131A segunda forma costuma ver o po<strong>de</strong>r constituinte como um mecanismo <strong>de</strong>pré-comprometimento. É o momento em que Pedro sóbrio se manifesta, em queUlisses, sabendo dos riscos e tentações que po<strong>de</strong> vir a sofrer quando diante do cantodas sereias, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> amarrar-se ao mastro. 132 Trata-se <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão racional que,num momento <strong>de</strong> serenida<strong>de</strong>, reconhece o perigo <strong>de</strong> que em momentos maisconturbados a comunida<strong>de</strong> política possa ser guiada por paixões e suprima direitos<strong>fundamentais</strong> dos indivíduos. É um ato <strong>de</strong> auto-paternalismo.Autores que recorrem à idéia <strong>de</strong> pré-comprometimento geralmente se adaptambem à <strong>de</strong>fesa substantiva da revisão judicial, exposta acima. 133 I<strong>de</strong>ntifico duas versões<strong>de</strong> pré-comprometimento. Uma se realiza efetivamente como episódio histórico, pormeio do po<strong>de</strong>r constituinte. Se “o povo” aprovou a constituição, e esta adota a revisãojudicial, significa que esse arranjo recebeu a chancela <strong>de</strong>mocrática. Outra proce<strong>de</strong> por131 Cf. Bruce Ackerman, “The Storrs Lectures: Discovering the Constitution”.132 Essas imagens foram utilizadas por Hayek e Elster, e citadas por mim na minha dissertação <strong>de</strong>mestrado (cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 11).133Cf. Stephen Holmes (“Precommitment and the paradox of <strong>de</strong>mocracy”), Samuel Freeman(“Constitutional Democracy and the Legitimacy of Judicial Review”), e Oscar Vilhena Vieira (ob. cit.).67


meio <strong>de</strong> uma especulação racional hipotética ao modo contratualista: imagina oconteúdo <strong>de</strong> uma constituição com a qual qualquer um concordaria se tivesse queescolher, no momento <strong>de</strong> fundação, os termos do contrato político que vincula acomunida<strong>de</strong>.2.4 “A <strong>de</strong>cisão da corte po<strong>de</strong> ser rejeitada, ao final, por emendaconstitucional ou por uma nova constituição, po<strong>de</strong>r que continua com o ‘Povo’”.Este é um <strong>de</strong>sdobramento da idéia acima: se “o povo” está insatisfeito com o<strong>de</strong>sempenho da corte constitucional, nada impe<strong>de</strong> que se mobilize para reformar aconstituição ou criar uma nova por meio <strong>de</strong> revolução constitucional. A possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> emenda seria a válvula <strong>de</strong> escape para amenizar os melindres majoritários dos quese opõem à revisão judicial. 134Caso “o povo” queira se manifestar, portanto, existirá sempre uma via ao seualcance, seja ela por meio <strong>de</strong> emenda, seja pela refundação do regime. 135 O po<strong>de</strong>rconstituinte originário, supostamente a mais genuína expressão do “povo”, <strong>de</strong>sconfiado legislador ordinário e legitima a corte a praticar a revisão judicial enquanto estiversatisfeito com o <strong>de</strong>sempenho da corte. Se não há reação do “povo constituinte” àsposições da corte, significa que há um apoio tácito <strong>de</strong> fundo a elas.2.5 “A supremacia judicial é exigência do estado <strong>de</strong> direito”.O estado <strong>de</strong> direito é um antigo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> subordinação do po<strong>de</strong>r político aregras gerais, abstratas e não retroativas. 136 Preten<strong>de</strong> combater a arbitrarieda<strong>de</strong> e oabuso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r por meio da institucionalização <strong>de</strong> um “governo das leis, não doshomens”, ou, em outras palavras, <strong>de</strong> um governo da razão.134 Cf. Owen Fiss, “Between Supremacy and Exclusivity”, p. 201.135 Países como a Alemanha, Índia e Brasil adotam um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> máxima rigi<strong>de</strong>z constitucional pormeio <strong>de</strong> disposições que não são sequer passíveis <strong>de</strong> emenda. As cortes da Índia e do Brasil, a<strong>de</strong>mais,já <strong>de</strong>clararam a inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> emendas constitucionais. Nessa situação, a única válvula <strong>de</strong>escape remanescente é a quebra institucional por meio <strong>de</strong> uma nova fundação constitucional.136 Esses são alguns dos elementos da moralida<strong>de</strong> interna do estado <strong>de</strong> direito, na canônica formulação<strong>de</strong> Lon Fuller (The Morality of Law).68


Com o advento da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, o i<strong>de</strong>al do estado <strong>de</strong> direito tornou-se maisrobusto e passou praticamente a confundir-se com o constitucionalismo. O po<strong>de</strong>rpolítico, assim, subordina-se a uma constituição, norma superior que <strong>de</strong>ve serobe<strong>de</strong>cida por todos. Mais do que simplesmente evitar a arbitrarieda<strong>de</strong>, a constituiçãotambém almeja propiciar certeza, previsibilida<strong>de</strong> e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> planejamento,condições necessárias para o gozo da liberda<strong>de</strong>.Se a constituição é suprema, o legislador não po<strong>de</strong> editar leis ordinárias que a<strong>de</strong>srespeitem. Caberia à corte constitucional, portanto, monitorar a compatibilida<strong>de</strong>das leis com a constituição. Seria o único modo <strong>de</strong> submeter, afinal, o po<strong>de</strong>r políticoao direito. Supremacia constitucional, nesse sentido, equivale à supremacia judicial. 137Constituição sem revisão judicial seria como o direito sem sanção, um mero conjunto<strong>de</strong> normas sem instrumentos <strong>de</strong> efetivação. <strong>Direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, para que tenhameficácia jurídica e sejam mais do que meros postulados morais, precisam do suportejudicial.Não significa que a corte tenha a exclusivida<strong>de</strong> na interpretação daconstituição. Num regime constitucional, por <strong>de</strong>finição, todos os po<strong>de</strong>res tomam suas<strong>de</strong>cisões tendo em vista a constituição. Portanto, interpretam-na. Apesar do fenômenorotineiro da interpretação extra-judicial, o estado <strong>de</strong> direito requer, em nome daestabilida<strong>de</strong> e em caso <strong>de</strong> conflito, que somente uma <strong>de</strong>ssas autorida<strong>de</strong>s – a corte –<strong>de</strong>fina o significado da constituição. 1382.6 “A corte é um agente externo que julga com imparcialida<strong>de</strong>. Olegislador não po<strong>de</strong>ria julgar a si mesmo”.Este é um argumento bastante conhecido na literatura. Aparece geralmentecomo apêndice do argumento anterior. Tem um apelo intuitivo. Se couber ao própriolegislador examinar a compatibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus atos com a constituição, ele fará137 Esse é o raciocínio que inspira a invenção do controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> pela Suprema Corteamericana, na <strong>de</strong>cisão Marbury v. Madison, <strong>de</strong> 1803. Tem estrutura lógica similar à <strong>de</strong>fesa que Kelsenfaz por uma corte constitucional. Os dois argumentos são bem analisados por Nino (The Constitution ofDeliberative Democracy).138 Fre<strong>de</strong>rick Schauer e Larry Alexan<strong>de</strong>r sustentam tal argumento baseado no “rule of law” e suarespectiva necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão única, estável, previsível (“On Extrajudicial ConstitutionalInterpretation”); Cf. também Owen Fiss (“Between Supremacy and Exclusivity”).69


inevitavelmente um julgamento em causa própria. Trata-se da aplicação do princípioda nemo iu<strong>de</strong>x in sua causa. Se à maioria, nesse mesmo sentido, couber julgar quaissão os limites da própria maioria, a <strong>de</strong>sejada proteção das minorias não passaria <strong>de</strong>um embuste. 1392.7 “A corte é um veto inerente à dinâmica da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res”.A <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é uma ferramenta institucional do estado <strong>de</strong> direito.Seu princípio supõe que a diluição das funções faz com que os po<strong>de</strong>res controlem-sereciprocamente. Ao evitar a concentração <strong>de</strong> forças num único pólo, preserva aliberda<strong>de</strong>. Trata-se <strong>de</strong> um maquinário dotado <strong>de</strong> um mecanismo endógeno <strong>de</strong>limitação, não <strong>de</strong> uma norma exógena à qual os po<strong>de</strong>res prestam obediência. Não háuma substância normativa que os subordine. É a dinâmica puramente formal <strong>de</strong>interação que impe<strong>de</strong> que eles extrapolem. Não passa <strong>de</strong> uma distribuição <strong>de</strong>capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vetar e <strong>de</strong> estatuir. Nas palavras cruas <strong>de</strong> Madison, é um sistema emque “ambição se contrapõe à ambição”, e cada po<strong>de</strong>r tem que possuir mecanismos <strong>de</strong><strong>de</strong>fesa proporcionais ao perigo <strong>de</strong> ser atacado. 140 Madison, inclusive, acreditava sereste o único modo <strong>de</strong> limitar o po<strong>de</strong>r. Declarações <strong>de</strong> direitos seriam meras “barreiras<strong>de</strong> papel” contra a opressão. 141Não é porque o parlamento tem o pedigree <strong>de</strong>mocrático, portanto, que eleestará imune à tentação do abuso. Para diminuir esse risco, a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rescria vetos que reduzem a velocida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong>cisório. Assim, é saudável que aoparlamento se oponha um contrapeso que ao menos possa combater a “política dahisteria transitória”. 142O argumento da dissertação <strong>de</strong> mestrado, conforme <strong>de</strong>scrito no capítulo 1,baseou-se, em boa medida, nessa idéia. A revisão judicial seria um recursoinstitucional <strong>de</strong>sejável não pela substância <strong>de</strong> justiça que supostamente resguardaria,139 Dworkin, entre outros, invoca esse argumento.140 Cf. James Madison, em Artigos Fe<strong>de</strong>ralistas, n. 51.141 Cf. Tushnet, Taking the Constitution Away From the Courts, p. 167. Madison veio a mudar <strong>de</strong> idéiamais tar<strong>de</strong>, quando apoiou a aprovação do Bill of Rights americano por meio <strong>de</strong> emendas.142 Robert Cover, “The Origins of Judicial Activism in the Protection of Minorities”, p. 1316.70


mas pelo simples efeito mo<strong>de</strong>rador <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong>sse processo. Não se compromete coma resposta certa, mas com o valor por trás <strong>de</strong>ssa técnica formal.2.8 “A corte analisa um caso concreto, submete-o a uma racionalida<strong>de</strong>incremental e o insere <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua jurisprudência”.Este argumento começa a lidar propriamente com capacida<strong>de</strong>s institucionais.A corte, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua posição institucional, teria condições singulares para tomarcertos tipos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. Não seria um órgão que se legitima pelo critério populista,mas por uma expertise.Essa expertise diz respeito à aplicação do direito ao caso concreto. Há umadivisão <strong>de</strong> trabalho jurídico entre os po<strong>de</strong>res. Cada um tem uma função típica que não<strong>de</strong>ve ser misturada: criar regras, executá-las e adjudicar conflitos conforme essasregras. Melhor será a proteção dos direitos <strong>fundamentais</strong> quanto mais a <strong>de</strong>cisão forsensível à particularida<strong>de</strong> do caso concreto.Mesmo que rejeitemos a idéia <strong>de</strong> uma interpretação judicial isenta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>,que seja uma mera aplicação neutra do direito, ponto <strong>de</strong> vista mais obviamenteimplausível no terreno constitucional, o argumento não subestima a vantageminstitucional da corte em relação ao legislador. Este é obrigado a produzir normasprospectivas, gerais e abstratas, que regula situações no atacado. Nem sempre teráfacilida<strong>de</strong> para perceber as implicações <strong>de</strong> direitos <strong>fundamentais</strong>. Quando muito, écapaz apenas <strong>de</strong> especular sobre quais serão seus efeitos reais na socieda<strong>de</strong>. A corte,ao contrário, analisa a lei após essa ter sido processada por episódios reais. Mais doque isso, a corte é treinada numa metodologia <strong>de</strong>cisória mais pertinente para lidar comas mínimas nuances morais <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> direitos <strong>fundamentais</strong>: <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> caso a caso,<strong>de</strong> modo incremental, construindo uma jurisprudência rica em <strong>de</strong>talhes que a regrageral jamais po<strong>de</strong>rá alcançar. Diferentemente do legislador, que olha somente para ofuturo, a corte tem uma abordagem tanto retrospectiva quanto prospectiva (e modulaos efeitos que a <strong>de</strong>cisão presente terá em casos futuros). É uma metodologia que opera<strong>de</strong> baixo para cima (bottom up), dos casos concretos para generalizações mo<strong>de</strong>stas.71


Abdicar <strong>de</strong>sse recurso institucional traz gran<strong>de</strong> prejuízo para a <strong>de</strong>mocracia. 143Promulgar <strong>de</strong>clarações abstratas <strong>de</strong> direitos e responsabilizar cortes por <strong>de</strong>senvolvêlasgradualmente, a conta-gotas, não é um ato <strong>de</strong> arrogância cognitiva, como se umconjunto <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s morais <strong>de</strong>vesse ficar protegido do legislador ordinário. Antes, éum sinal <strong>de</strong> modéstia e do reconhecimento <strong>de</strong> nossa incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber, porantecipação, quais são as melhores soluções para situações que envolvem direitos<strong>fundamentais</strong>. Não significa que essa função retrospectiva e caso a caso esteja vedada,teoricamente, ao legislador. Nas <strong>de</strong>mocracias contemporâneas, no entanto, éimpraticável que ele assuma essa função.Wil Waluchow é quem, recentemente, expôs uma versão refinada <strong>de</strong>sseargumento. 144 A <strong>de</strong>mocracia, para ele, per<strong>de</strong> quando se limita à frieza eimpessoalida<strong>de</strong> da regra geral prospectiva para lidar com situações <strong>de</strong> direitos<strong>fundamentais</strong>. Não se trata <strong>de</strong> cair na tentação do casuísmo, que romperia com a<strong>de</strong>manda do estado <strong>de</strong> direito <strong>de</strong> que casos iguais sejam <strong>de</strong>cididos igualmente. A<strong>de</strong>cisão judicial permite calibrar melhor do que a legislação o nível <strong>de</strong> abstração emque tais “casos iguais” serão estabelecidos. Nesse sentido, a corte também <strong>de</strong>veobediência às suas <strong>de</strong>cisões passadas e permite que indivíduos extraiam <strong>de</strong>ssas<strong>de</strong>cisões regras que orientem sua conduta futura. A diferença é que o tipo <strong>de</strong> “casosiguais” com que a corte lida é construído com maior riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes.143 É a idéia <strong>de</strong>fendida, por exemplo, por Jeremy Webber: “If legislatures or Executives ma<strong>de</strong> all the<strong>de</strong>cisions, we would run the risk of losing sight of individuals’ interests in our rush to achieve a socialaim. (…) different types of institutions carry different advantages — and different biases — in rights<strong>de</strong>finition. Courts excel at the sober analysis of specific claims in a manner that pays close attention toindividuals and that is isolated (though only in relative terms) from broa<strong>de</strong>r political concerns”.(“Institutional dialogue between courts and legislatures in the <strong>de</strong>finition of fundamental rights”).144 Cf. A Common Law Theory of Judicial Review. Waluchow insere este argumento na esteira dadiscussão sobre o método particular <strong>de</strong> adjudicação do common law. Isso levaria o leitor menosfamiliarizado com o assunto a sustentar que nos sistemas <strong>de</strong> civil law haveria metodologia diferente.Contudo, especialmente no plano constitucional, essas diferenças não se aplicam, tanto do ponto <strong>de</strong>vista prático (se verificarmos as semelhanças no modo como as cortes lidam efetivamente comprece<strong>de</strong>ntes), quanto teórico (por não ser sustentável a hipótese <strong>de</strong> que, por ser da tradição <strong>de</strong> civil law,a corte não <strong>de</strong>ve nenhuma consi<strong>de</strong>ração a prece<strong>de</strong>nte). T.R.S. Allan percebe essa relação da técnicaargumentativa do common law com a adjudicação constitucional: “Constitutional adjudication un<strong>de</strong>r acharter of rights is inevitably closer to common law legal reasoning, where the common law is<strong>de</strong>veloped as a vehicle for protecting rights, rather than to the narrower, more formal manner ofstatutory interpretation” (“Constitutional Rights and Common Law”, p. 479). Fuller tem percepçãosemelhante sobre a melhor posição do juiz em relação ao legislador, mas também alerta, comsensibilida<strong>de</strong> sobre capacida<strong>de</strong>s institucionais, para os perigos da tendência <strong>de</strong> advogadosjudicializarem questões que não se acomodam bem à forma <strong>de</strong>cisória judicial (cf. The Morality of Law,p. 104 e 176).72


Isso não se confun<strong>de</strong> com o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma versão cor-<strong>de</strong>-rosa do juiz,conforme Waldron po<strong>de</strong>ria dizer. Mesmo que consi<strong>de</strong>remos tanto juízes quantolegisladores agentes morais autônomos, <strong>de</strong> boa-fé e dignos <strong>de</strong> respeito, equiparar asduas situações <strong>de</strong>cisórias seria uma gran<strong>de</strong> simplificação. Waldron faria vistas grossaspara diferenças relevantes. Toma a <strong>de</strong>cisão legislativa como se estivesse nas mesmascondições da <strong>de</strong>cisão judicial, o que faz o legislador “vencer” a disputa em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sua cre<strong>de</strong>ncial representativa. Não percebe que a perspectiva da corte, quando lidacom questões <strong>de</strong> direitos <strong>fundamentais</strong>, tem maior probabilida<strong>de</strong> do acerto, e menorrisco do erro grosseiro. É como Michelman caracterizou as vantagens institucionaisdo judiciário: “po<strong>de</strong>m não ser mágicas, mas talvez não sejam negligenciáveis”. 145Constitui uma salvaguarda institucional legítima da <strong>de</strong>mocracia. 1462.9 “A corte é menos falível em questões <strong>de</strong> princípio e está mais próximada resposta certa”.Este argumento guarda algumas semelhanças com o anterior, e às vezes osdois se combinam numa única formulação. Aqui, todavia, a ênfase não é tanto navantagem do caso concreto, mas sim no estado <strong>de</strong> espírito e ambiente institucionalnecessários para a <strong>de</strong>cisão sobre questões <strong>de</strong> princípio.O seu afastamento, ainda que relativo, das pressões da política eleitoral, e suaconcentração exclusiva na dimensão <strong>de</strong> princípio, comparativamente aos inúmerosoutros fatores que o legislador sopesa ao votar uma lei, confere ao juiz condiçõesprivilegiadas para <strong>de</strong>cidir com isenção. Vale a pena ter uma instituição cuja funçãoprimária e exclusiva é <strong>de</strong>cidir com base em princípio. 147 A lógica eleitoral colocadireitos em risco e o ambiente parlamentar incentiva compromissos incompatíveis145 Brennan and Democracy, p. 59.146 A literatura sobre a aplicação da “common law methodology” à discussão sobre legitimida<strong>de</strong> darevisão judicial tem alguns outros autores importantes. O próprio Dworkin, quando <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> seu i<strong>de</strong>al<strong>de</strong> integrida<strong>de</strong> no direito, se encaixa, em alguma medida, nessa tradição. A literatura sobre capacida<strong>de</strong>sinstitucionais comparativas do judiciário e do legislador é também bastante variada. Duas referênciasclássicas são a escola do “Legal Process”, li<strong>de</strong>rada por Henry Hart e Albert Sachs, e também diversostextos <strong>de</strong> Lon Fuller (principalmente “The Forms and Limits of Adjudication”), on<strong>de</strong> ele distingue acompetência <strong>de</strong> legisladores para lidar com conflitos policêntricos e <strong>de</strong> cortes para conflitosadversariais.147 Cf. Frank Michelman, Brennan and Democracy, p. 22.73


com a racionalida<strong>de</strong> dos direitos <strong>fundamentais</strong>. 148 Separar o fórum em que predominaa utilida<strong>de</strong> do fórum em que predomina o princípio é uma sábia escolha institucional.O arranjo institucional, portanto, faz com que juízes tenham compromisso eprestem contas somente à razão pública. Disso emerge uma racionalida<strong>de</strong> judicialcom a qual o legislador não po<strong>de</strong> competir, ou ao menos, não com muita freqüência.Como diz Owen Fiss: “Ver a corte trabalhar como <strong>de</strong>veria é ver a razão serrevelada”. 149 Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar, nesse sentido, que juízes lidam diuturnamentecom uma <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> justificação da qual <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong>. Só conquistarãocredibilida<strong>de</strong> se efetivamente funcionarem como um fórum do princípio, condiçãoque não lhes dá liberda<strong>de</strong> para <strong>de</strong>cidirem o que quiserem.Essa idéia foi rejeitada por muitos que a consi<strong>de</strong>raram elitista, como se juízesfossem “reis platônicos”, filósofos com habilida<strong>de</strong>s superiores ao cidadão comumpara emissão <strong>de</strong> um juízo moral. Tais críticas, no entanto, caricaturizam o ponto doargumento. Não se pe<strong>de</strong> que juízes sejam filósofos, seja qual for o sentido místico esolene que essa palavra assume nessas críticas. Requer-se, sim, que ele li<strong>de</strong> comquestões morais da maneira mais bem fundamentada possível. Esse exercício rotineirofaz com que ele <strong>de</strong>senvolva uma competência que esse ambiente institucional <strong>de</strong><strong>de</strong>liberação estimula. 150 Não se presume a infalibilida<strong>de</strong>, apenas a menor falibilida<strong>de</strong>148 Dworkin tradicionalmente <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> esse argumento: “Adding to a political system a process that isinstitutionally structured as a <strong>de</strong>bate over principle rather than a contest over power is nevertheless<strong>de</strong>sirable, and that counts as a strong reason for allowing judicial interpretation of a fundamentalconstitution” (cf. “Democracy and Constitutionalism”, p. 11).149 E ele continua: “Viewed as part of a larger political system, the judiciary’s claim for authority, likethat of any component, <strong>de</strong>pends on its competency to perform its assigned task. (…) The competenceof the judiciary <strong>de</strong>rives not from the persons who are judges, but from the limitations of their exerciseof power – limitations that commit the judiciary to what might be called public reason. Judges who failto respect these limitations forfeit their authority and their claim to supremacy” (“Between Supremacyand Exclusivity”, p. 203).150 Owen Fiss, novamente: “The foundation of judicial power is process. Judges are entrusted withpower because of their special competence to interpret public values embodied in authoritative texts,and this competence is <strong>de</strong>rived from the process that has long characterized the judiciary and that limitsthe exercise of its power. (…) We accept the judicial power on these terms” (cf. “TheBureaucratization of the Judiciary”, p. 1443). Ely também vê no processo contraditório a especialhabilida<strong>de</strong> judicial: “Lawyers are experts on process writ small, the processes by which facts are foundand contending parties are allowed to present their claims” (“Toward a Representation-ReinforcingMo<strong>de</strong> of Judicial Review”, p. 485).74


do juiz. O fato <strong>de</strong> a corte ter discricionarieda<strong>de</strong> não significa que não esteja numcontexto <strong>de</strong> controle racional. 1512.10 “A corte promove uma representação <strong>de</strong>liberativa e argumentativa”.O argumento anterior sobre a especial capacida<strong>de</strong> judicial para aargumentação moral abre espaço para diversificar a noção <strong>de</strong> “representação” napolítica. Se a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática não se limita à agregação <strong>de</strong> interessesindividuais, mas <strong>de</strong>ve abranger <strong>de</strong>cisões dotadas <strong>de</strong> boas justificativas compartilhadaspor todos, conforme propõem teorias da <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>liberativa, instituições políticas<strong>de</strong>vem ser capazes <strong>de</strong> dar conta <strong>de</strong>ssa dupla <strong>de</strong>manda. Por essa razão, o parlamentoeleito é representativo somente no primeiro aspecto da legitimida<strong>de</strong>. A corte é ocandidato principal para cumprir a segunda <strong>de</strong>manda. Deve ser entendida comoinstituição representativa porque é mais sensível a razões, e não a <strong>de</strong>sejosmajoritários. Se, por um lado, não representa indivíduos particulares, por outro,participa <strong>de</strong> um processo argumentativo on<strong>de</strong> as razões <strong>de</strong> todas as partespotencialmente interessadas são ouvidas. Indivíduos po<strong>de</strong>m participar do processo<strong>de</strong>cisório, às vezes <strong>de</strong> modo ainda mais intenso e influente, por fornecerem razões,não somente um voto. 152A corte <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por conta própria, mas dá resposta a cada um dos argumentosque lhe foram apresentados. 153 Juízes que estão abertos a serem efetivamenteinfluenciados pela diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> argumentos merecem nosso respeito por suas151 Herbert Wechsler, Alexan<strong>de</strong>r Bickel, Ronald Dworkin, Frank Michelman, Owen Fiss, John Rawls,entre outros, são conhecidos por <strong>de</strong>senvolver esse argumento.152 Dworkin também propõe esse argumento: “The public participates in the discussion (…) but it doesso not in the ordinary way, by pressuring officials who need their votes or their campaigncontributions, but by expressing convictions about matters of principle” (cf. “Democracy andConstitutionalism”, p. 11)153 Há aqui também muitos autores que po<strong>de</strong>riam ser listados. Christopher Zurn faz uma boacomparação entre como John Rawls, Christopher Eisgruber e Frank Michelman se utilizam <strong>de</strong>ssa idéia:o primeiro <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ria que a corte fala na linguagem moral apropriada para a relação entre cidadãos; naopinião do segundo, a corte falaria para o povo; para o terceiro, a corte falaria com o povo (cf.Deliberative Democracy and the Institutions of Judicial Review, p. 175). Robert Alexy também<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a idéia <strong>de</strong> “representação argumentativa” (cf. “Balancing, constitutional review andrepresentation”). Por fim, po<strong>de</strong>-se dizer que os autores relacionados ao argumento do précomprometimentotambém têm uma <strong>de</strong>manda representativa para a corte, mesmo que ligeiramentediferente: representaria o povo nos seus momentos <strong>de</strong> maior engajamento cívico, o “povo constituinte”.Hamilton, nos Fe<strong>de</strong>ralistas n. 78, também aposta nessa idéia.75


<strong>de</strong>cisões. 154 Ajudam a construir uma “república <strong>de</strong> razões”, 155 não somente uma“república <strong>de</strong> cidadãos” (ou <strong>de</strong> indivíduos auto-interessados). Seria mais provávelencontrar o representante <strong>de</strong>liberativo <strong>de</strong>fendido por Burke, nesse sentido, em cortesconstitucionais, não em parlamentos eleitos periodicamente.2.11 “A corte é instituição educativa e promove o <strong>de</strong>bate público”.Para além <strong>de</strong> representar, a corte po<strong>de</strong> também educar. Provoca o <strong>de</strong>batepúblico mais focado em argumentos <strong>de</strong> princípio do que em disputas partidárias ouestratégias <strong>de</strong> barganha. Sendo uma instituição com habilida<strong>de</strong> especial para <strong>de</strong>cidirpor meio <strong>de</strong> justificação pública e com base em princípio, ela estimula que as reaçõesa tais <strong>de</strong>cisões sejam feitas na mesma linguagem e isso enriquece a política. Sem essainstituição, o <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> princípio praticamente some da vida <strong>de</strong>mocrática, ao menosnos momentos <strong>de</strong> política ordinária. 1562.12 “A corte integra um sistema <strong>de</strong>mocrático, não está à margem <strong>de</strong>le”.Este argumento retoma a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. O governo <strong>de</strong>mocráticoprecisa ser versátil o suficiente para aten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> diferentes tipos, com baseem diferentes critérios <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>. A operacionalização <strong>de</strong>sse i<strong>de</strong>al é complexa, ea invocação do mantra “governo do povo” não po<strong>de</strong> nos levar a pensar que significa“todos <strong>de</strong>cidindo tudo todo o tempo”. Por essa razão, há mediações institucionais, há<strong>separação</strong> entre governantes e governados. São mecanismos <strong>de</strong> distanciamento dopovo e do po<strong>de</strong>r político. A legitimida<strong>de</strong>, assim, <strong>de</strong>ve ser atribuída ao conjunto, e nãoa componentes isolados <strong>de</strong>le. 157154 Cf. Frank Michelman, Brennan and Democracy, p. 59.155 Cf. Cass Sunstein, The Partial Constitution.156 A “tese educativa” aparece principalmente em Dworkin e Bickel. Ela tem muita proximida<strong>de</strong>,porém, com o argumento do tópico anterior, e os autores lá mencionados ecoam essa idéia em boamedida. Barry Friedman, como veremos no capítulo 4, <strong>de</strong>senvolve uma teoria do diálogo bastanteconectada a essa função <strong>de</strong> provocar o <strong>de</strong>bate público.157 Owen Fiss elabora claramente essa idéia: “The <strong>de</strong>mocratic i<strong>de</strong>al should be applied to the politicalsystem as a whole and should not be used to ascertain the legitimacy of each component within thesystem. As a test of the system, <strong>de</strong>mocracy only requires that each component be linked to publicofficials and institutions that are responsive to popular sentiment. (…) Democracy only requires thatthose links between the judiciary and popular sentiment are sufficiently robust to justify the judiciary aspart of the larger system” (cf. “Between Supremacy and Exclusivity”, p. 201).76


eleitas”.2.13 “A corte é composta por membros indicados por autorida<strong>de</strong>sPor fim, <strong>de</strong> forma suplementar, este argumento mostra que juízes não estãocompletamente <strong>de</strong>sconectados das instituições eleitas. Mesmo que, após nomeados,tenham estabilida<strong>de</strong> no cargo e, portanto, não se possa tirá-los <strong>de</strong> lá conforme umaavaliação retrospectiva <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sempenho (como se faz na eleição), há um fiocondutor <strong>de</strong> legitimação <strong>de</strong>mocrática. É verda<strong>de</strong> que esse vínculo vai se afrouxandocom o passar do tempo, pois novas legislaturas assumem o po<strong>de</strong>r e muitos dosmesmos juízes continuam na corte. 158 No entanto, não se po<strong>de</strong> negar que com o tempouma maioria sólida consegue compor uma corte afinada com seus interesses eposições. Não segue o ritmo eleitoral, mas não foge <strong>de</strong>le completamente.3. Contra legisladores e parlamentosDefensores da revisão judicial não abrem mão do legislador representativo.Simplesmente negam a ele a última palavra em direitos <strong>fundamentais</strong>, reservando-lhepapel remanescente. Esses autores atacam o mito por trás da sensação <strong>de</strong> autogovernoque o parlamento estimularia. O mito teria entorpecido a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> olharpara a instituição real e produzido uma ficção: porque elegemos nossos representantespara um mandato temporário, e porque eles <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m por maioria, estaríamos nos autogovernandoe nossas preferências estariam promovendo igual impacto. Essa operaçãoseria simplista. Institucionalizar i<strong>de</strong>ais políticos é uma tarefa mais intrincada. O i<strong>de</strong>aldo auto-governo individual e coletivo requer um conjunto <strong>de</strong> estratégias institucionaisque não se esgotam no parlamento.Divido os argumentos contrários a parlamentos em duas espécies: os quemostram problemas na representação e os que indicam os vícios escondidos na regra<strong>de</strong> maioria. Conforme já dito, a mínima explicitação das objeções ao parlamento po<strong>de</strong>tornar o argumento em favor da supremacia judicial mais forte.3.1 Contra a representação eleitoral158 As possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssa dissonância variam <strong>de</strong> país para país, conforme adotem mandatos por prazo<strong>de</strong>terminado ou vitalício.77


3.1.1 “O parlamento não é a encarnação essencial da <strong>de</strong>mocracia, mas aconversão <strong>de</strong> uma instituição que historicamente exerceu outros propósitos”.Fomos levados a acreditar que a tradução literal dos i<strong>de</strong>ais da <strong>de</strong>mocracia e do“governo do povo” é o parlamento representativo. Este é hoje praticamente umtruísmo político. A eleição passou a ser o evento <strong>de</strong>mocrático por excelência, o atoque permite ao regime pleitear ser membro do grupo. Democracias começariam poraí. O fechamento do congresso, por sua vez, é ato cuja simbologia está diretamenteassociada à ruptura do regime.Para começar, <strong>de</strong>ve-se contextualizar historicamente essa instituição. Celebrálacomo a quintessência da <strong>de</strong>mocracia parece transmitir um otimismo que ignora asua origem oligárquica e assumidamente anti-<strong>de</strong>mocrática (um sistema <strong>de</strong> contençãomontado por “aristocratas ingleses, fazen<strong>de</strong>iros americanos e advogadosfranceses” 159 ).Po<strong>de</strong>r-se-ia dizer, é verda<strong>de</strong>, que sua origem aristocrática no século XVIII nãoimpediu que, com a ampliação do sufrágio, ela tenha se convertido, gradualmente,numa instituição <strong>de</strong>mocrática. A versatilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa instituição lhe teria permitidoassumir diferentes ban<strong>de</strong>iras no <strong>de</strong>correr do tempo. No entanto, se é possível dizerque o sufrágio permitiu uma ampliação da participação, o mesmo não é verda<strong>de</strong> emrespeito ao seu aprofundamento. Adicionou-se um elemento <strong>de</strong>mocrático ao sistema,mas sua essência elitista continua a subsistir. 160 A eleição é, por si só, um mecanismooligárquico e anti-igualitário. Ela exclui e discrimina. Não se permite ao povogovernar, ainda que indiretamente, mas apenas selecionar seus governantes e julgarseu <strong>de</strong>sempenho, periodicamente. 161 Essa dualida<strong>de</strong> nos autoriza a ver nesse arranjo,no máximo, a “constituição mista dos tempos mo<strong>de</strong>rnos”. 162159 Cf. Bernard Manin, The Principles of Representative Government, p. 234.160 Como afirma Nadia Urbinati: “A Janus-faced institution, elections give representation a <strong>de</strong>mocraticface and <strong>de</strong>mocracy an aristocratic twist” (Representative Democracy, p. 3).161 Ibid, p. 162.162 Ibid, p. 238.78


3.1.2 “A dinâmica representativo-eleitoral incentiva um comportamentolegislativo que barateia direitos <strong>fundamentais</strong>”.O parlamento, da maneira como é composto, não permite que se leve direitos asério. Legisladores têm, às vezes legitimamente, muitas outras coisas na cabeça. Sãoinfluenciados por um conjunto <strong>de</strong> incentivos mais imediatos, ligados à conveniênciada política pública. 163 <strong>Direitos</strong>, quando aparecem na balança, são um entre outroscomponentes, não a preocupação primária. Na escala moral <strong>de</strong> um regime que respeitaliberda<strong>de</strong>s, porém, direitos são trunfos. Não po<strong>de</strong>m ser um fator a mais <strong>de</strong> negociaçãoe <strong>de</strong> barganha. Com eles, não há espaço para tra<strong>de</strong>-offs.Essa, porém, ainda é uma imagem otimista do parlamento. Com maisfreqüência, direitos sequer fazem parte <strong>de</strong> uma agenda remota. O comportamento dosrepresentantes é voltado, na maior parte do tempo, a satisfazer interesses imediatos <strong>de</strong>seus eleitores. 164 Suas motivações se reduzem a uma variável simples: escolherão tudoaquilo que aumentar as chances <strong>de</strong> reeleição e <strong>de</strong> ampliar o po<strong>de</strong>r individual. São,nesse sentido, agentes políticos auto-interessados. 165Parlamentos são, ainda, foros <strong>de</strong>stinados à retórica, à teatralização e à opiniãoforte, nada que se compare a um foro <strong>de</strong>liberativo sereno, em que pessoasargumentam sinceramente para tentar convencer seus pares, respeitam o <strong>de</strong>sacordo eestão abertas a serem convencidas. Ao contrário, discursos se dirigem à audiênciaexterna, a marcar posições que resultem em votos nas eleições. 1663.1.3 “A representação eleitoral não é o único tipo possível <strong>de</strong>representação. Trata-se <strong>de</strong> uma representação puramente agregativa, atomística,que pensa a política como mercado”.Este argumento se conecta com o argumento 2.10 acima (em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> cortescomo “representantes <strong>de</strong>liberativos”). Basicamente, reitera que a escolha eleitoral <strong>de</strong>163 Cf. Pickerill, Constitutional Deliberation in Congress, p. 64-65.164 Comportamentos apelidados <strong>de</strong> log-rolling, pork barreling, horse-trading etc.165 Essa é a premissa com base na qual a ciência política costuma analisar a política legislativa e asrelações entre os po<strong>de</strong>res executivo e legislativo (cf. David Mayhew, Congress: the ElectoralConnection).166 Cf. Diego Gambetta, “‘Claro!’ An Essay on Discursive Machismo”.79


epresentantes não esgota a representação. Na política <strong>de</strong>mocrática contemporânea, éapenas uma modalida<strong>de</strong>. 167 A suposição não questionada <strong>de</strong> que a representaçãoeleitoral tem uma qualida<strong>de</strong> inerentemente <strong>de</strong>mocrática não é neutra e incontroversa.Instituições <strong>de</strong>senhadas conforme diferentes critérios carregam vantagens e<strong>de</strong>svantagens entre si. Não se po<strong>de</strong> dizer que a competição eleitoral só traz vantagens,todo o tempo, para a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> todos os temas.A sensação <strong>de</strong> auto-governo não se esfacela simplesmente porque a últimapalavra, em alguns assuntos, não é do parlamento, mas <strong>de</strong> juízes. Nem sempre, sóporque não os elegemos, será impossível consi<strong>de</strong>rar a <strong>de</strong>cisão judicial como “nossa”.Ao contrário, se o legislador não respeitar direitos e prevalecer sobre a corte, nossapercepção <strong>de</strong> auto-governo coletivo diminui. Eventualmente, preferimos nos aliar aum bom argumento do que ao representante em quem votamos. Não que a cortesempre consiga produzir tal bom argumento. Quer-se apenas mostrar que o fenômenodo auto-governo é mais sutil e abrangente do que escolher, periodicamente, por meiodo voto, um representante.A partir do momento em que há necessida<strong>de</strong> prática <strong>de</strong> <strong>separação</strong> entregovernantes e governados (pois não estaríamos mais, com Rousseau, no cantão <strong>de</strong>Genebra, como diria Michelman), restam nas instituições <strong>de</strong>mocráticas apenas“rastros <strong>de</strong> auto-governo”, em diferentes graus, em diferentes modalida<strong>de</strong>s. O“fetichismo do governo representativo” não é melhor do que o fetichismo da corte. 168Por fim, <strong>de</strong>ve-se também dizer que a eleição não dá mais conta <strong>de</strong> criar umórgão representativo suficientemente plural que reflita a diversida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong>atual. A idéia <strong>de</strong> que o parlamento, em alguma medida, espelha a socieda<strong>de</strong> é cada167 O ato <strong>de</strong>liberado da escolha do representante, inclusive, não é elemento necessário para o ato <strong>de</strong>representar. Há diversos exemplos <strong>de</strong> situações em que o representante não foi escolhido pelorepresentado. Waluchow <strong>de</strong>senvolve esse argumento com maior profundida<strong>de</strong> (cf. Common LawTheory of Judicial Review, p. 81 e ss).168 Como diz Frank Michelman: “Congress is not us. The Presi<strong>de</strong>nt is not us. The Air Force is not us.We are not ‘in’ those bodies. Their <strong>de</strong>terminations are not our self-government. Judges overridingthose <strong>de</strong>terminations do not, therefore, necessarily subtract anything from our freedom, although thejudges also, obviously, are not us. Their actions may augment our freedom. As usual, it all <strong>de</strong>pends.One thing it <strong>de</strong>pends on, I believe, is the commitment of judges to the process of their own selfgovernment”(cf. “Foreword – Traces of Self-Government”, p. 75). Nesse texto, a distinção entrerepresentação efetiva e virtual também é útil para aprofundar o tema.80


vez menos plausível num momento em que um único representante ou um únicopartido não consegue carregar, em bloco, as preferências <strong>de</strong> seus eleitores. 1693.1.4 “Restrições ao parlamento eleito não resgatam argumentos datradição anti-<strong>de</strong>mocrática. Simplesmente apontam problemas que os incentivosinstitucionais geram no comportamento do legislador”.Defen<strong>de</strong>r que uma corte, em alguns assuntos, possa prevalecer sobre a <strong>de</strong>cisãolegislativa não guarda nenhuma relação com as clássicas inclinações anti<strong>de</strong>mocráticas(o preconceito contra as massas, o <strong>de</strong>spreparo do cidadão comum, anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> guardiões etc.). Trata-se, apenas, <strong>de</strong> levar instituições a sério. Juízesnão são melhores do que ninguém, nem possuem capacida<strong>de</strong>s argumentativassuperiores. Estão apenas num ambiente institucional mais a<strong>de</strong>quado para um<strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão (não outros, certamente).É surpreen<strong>de</strong>nte, por exemplo, como a complexida<strong>de</strong> congressual passa aolargo do argumento <strong>de</strong> Waldron contra a revisão judicial. Para ele, o congresso é umconjunto <strong>de</strong> representantes que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por maioria. Numa escala menor, correspon<strong>de</strong>ao povo tomando suas <strong>de</strong>cisões em conjunto pelo procedimento mais igualitáriopossível. Sua teoria normativa é tão abstrata e rasa quanto isso. O resto – comitês,hierarquia partidária, po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> agenda etc. – parece ser mero <strong>de</strong>talhe. Seria produto <strong>de</strong>uma visão cínica sobre a pessoa do representante eleito. Não percebe que legisladores,mesmo bem intencionados, estão imersos numa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> constrangimentosinstitucionais incontornáveis. Os problemas da representação eleitoral e da regra <strong>de</strong>maioria não <strong>de</strong>saparecem quando elegemos legisladores virtuosos.Waldron trata parlamentos e cortes como se fossem institucionalmenteequivalentes. Variam apenas quais e quantas cabeças serão contadas. Não se atentapara como a forma institucional importa e não percebe que as vantagens doparlamento são parciais e relativas. 170169 Cf. Gargarella, “Full Representation, Deliberation and Impartiality”.170 Como afirma Keith Whittington: “In striving to paint a rosy picture of legislatures, Waldron analysissuffers from an unwillingness to consi<strong>de</strong>r basic aspects of institutionalized politics. (…) Takinginstitutions seriously becomes particularly important in evaluating the justifications for judicial review81


3.2 Contra a regra <strong>de</strong> maioria3.2.1 “A regra <strong>de</strong> maioria é insensível à intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> preferências”.Um procedimento majoritário, na base <strong>de</strong> votos com peso idêntico, nãoconsegue captar a relevância que a matéria votada tem para cada indivíduo. É umaconseqüência da igualda<strong>de</strong> formal que o inspira. Alguns, geralmente minoriasengajadas, têm no tema a priorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua agenda. Outros estão em dúvida. 171Outros, ainda, são indiferentes, e não se importam com sua aprovação ou reprovação.O fato <strong>de</strong> as três partes entrarem, com igual po<strong>de</strong>r, na contabilização dos votos, fazcom que os primeiros sejam prejudicados. A regra <strong>de</strong> maioria promove, no máximo, aigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> impacto, um i<strong>de</strong>al insuficiente <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>. 1723.2.2 “A regra <strong>de</strong> maioria não tem a racionalida<strong>de</strong> que parece. Seuresultado é arbitrário”.Kenneth Arrow <strong>de</strong>monstrou que a votação por maioria nem sempre traz, comoproduto automático, a “vonta<strong>de</strong> da maioria”. Diferentes <strong>de</strong>cisões resultarão <strong>de</strong>sseprocedimento pela simples variação da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> votação. Quem tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>controlar essa or<strong>de</strong>m consegue, muitas vezes, <strong>de</strong>terminar a <strong>de</strong>cisão final. É o quechamou <strong>de</strong> “ciclo da votação”. Constatou que o procedimento majoritário, em vez <strong>de</strong>encontrar uma “vonta<strong>de</strong> da maioria” (a qual po<strong>de</strong>ria culminar na “tirania da maioria”),mais provavelmente culmina ou na “tirania <strong>de</strong> uma minoria estrategicamente bemposicionada” ou na “tirania do arbítrio irracional”. 173and engaging in the type of comparative institutional analysis that Waldron advocates” (cf. “In Defenseof Legislatures”, p. 696-697).171 Aqui, o problema diz respeito ao lugar que na <strong>de</strong>mocracia ocupa aquele que está em dúvida, que nãoconcorda nem discorda, que não duvida da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver uma resposta certa ou mais próximada verda<strong>de</strong>. Ele po<strong>de</strong> até engajar-se na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir a melhor solução, mas simplesmente nãosabe, não está convencido e não se sente confortável para integrar a maioria ou a minoria.172 Segundo Dworkin, a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> impacto é uma noção pobre, e a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> influência um i<strong>de</strong>alinatingível e in<strong>de</strong>sejável. Por essa razão, segundo ele, <strong>de</strong>vemos antes nos preocupar com a “igualda<strong>de</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração e respeito” que o tribunal po<strong>de</strong>ria promover (cf. Freedom’s Law, cap. 1).173 Ian Shapiro, The State of Democratic Theory, p. 12.82


3.2.3 “O mundo não é bipartido entre maioria e minoria. Preferênciaspolíticas, a<strong>de</strong>mais, não são estáticas”.Em alguma medida, este argumento <strong>de</strong>sdobra os anteriores. Questiona-secomo a “dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária” concebe as escolhas coletivas. Esta dividiriaa socieda<strong>de</strong> em dois grupos, assumindo o parlamento como maioria e o tribunal comominoria. Pensar em termos <strong>de</strong> maioria e minoria, entretanto, é escon<strong>de</strong>rcomplexida<strong>de</strong>. A premissa <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>cisão do parlamento repercute a vonta<strong>de</strong> damaioria parece supor que ali existe uma simples agregação <strong>de</strong> posições prontas, préformadas,convictas e inflexíveis. Nossas preferências, porém, são maleáveis esujeitas a transformações por meio do <strong>de</strong>bate, da experiência, <strong>de</strong> novas informaçõesetc. Não são fixas e exógenas (pré-políticas), mas mutáveis e endógenas. 174 Elas seestruturam num contínuo e não numa escala binária. Somos contra e a favor emdiferentes graus.A socieda<strong>de</strong> não está dividida entre duas alternativas estáticas. A votação final<strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> lei, por exemplo, não po<strong>de</strong> ser vista como uma divisão entre aquelesque a aprovam e os que a rejeitam, pois isso ignoraria todo o processo anterior <strong>de</strong>composição <strong>de</strong> diferentes graus <strong>de</strong> interesse. Legisladores íntegros po<strong>de</strong>rão ter escalas<strong>de</strong> preferências morais sinceras (não meramente escalas <strong>de</strong> interesses egoísticos), mas,<strong>de</strong> qualquer modo, terão que compor.A “vonta<strong>de</strong> da maioria”, enfim, não é um bloco monolítico e uníssono, masheterogêneo. Seus componentes fizeram concessões à esquerda e à direita. Mesmoque estivesse isenta do problema apontado por Arrow, não é uma entida<strong>de</strong> facilmentei<strong>de</strong>ntificável. Menos ainda no <strong>de</strong>correr do tempo. Não há estabilida<strong>de</strong> e continuida<strong>de</strong>.A sintonia entre opiniões do povo e <strong>de</strong> seus representantes, quando há, é efêmera. Se174 Barry Friedman, autor que <strong>de</strong>talharemos no capítulo 4, resume essa posição: “In a sense thecountermajoritarian difficulty treats popular will as the aggregation of fixed exogenous preferences,when preferences necessarily are shifting and endogenous. Preferences are continually shaped andreshaped by public opinion. Every minute is an or<strong>de</strong>ring and reor<strong>de</strong>ring for each of us about what wewant and care about. The assumption that there is a ‘majority’ whose ‘will’ is embodied ingovernmental <strong>de</strong>cisions is, at best, overstated. Decisions must be ma<strong>de</strong> at specific times. At best, theremay be one brief moment when governmental <strong>de</strong>cision does represent majority will, though thatmoment may come and go in an instant as views and choices change. The political process cannotpossibly reflect individual’s and society’s constantly changing preferences” (“Dialogue and JudicialReview”, p. 641).83


assim é, o que as cortes revogam pelo controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser,exatamente, a vonta<strong>de</strong> da maioria.4. Quem e como e quando e por que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre direitos numa <strong>de</strong>mocraciaconstitucional?Esse capítulo tentou sistematizar diferentes caminhos para respon<strong>de</strong>r à“dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária”. Desenhou um mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> juiz e corteconstitucional. Adotou uma estratégia expositiva intercalada: na <strong>de</strong>fesa, umargumento positivo pela revisão judicial; no ataque, um argumento negativo contra aabsoluta supremacia parlamentar.Cortes <strong>de</strong>vem <strong>de</strong>cidir por último sobre direitos pela conjugação <strong>de</strong> razõesformais e substantivas <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> e pela sua capacida<strong>de</strong> institucional <strong>de</strong> colocálasem prática. Tem vantagem comparativa em relação, pelo menos, à alternativacogitada: o parlamento.84


Capítulo 3A inclinação por legisladores e parlamentos1. IntroduçãoEsse capítulo adota estratégia expositiva semelhante à do anterior, mas inverteos sinais. Ataca e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> em sentido contrário. Tem o mesmo objetivo horizontal:dar uma noção da multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> argumentos envolvidos no <strong>de</strong>bate, não dos<strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> cada um.Estrutura-se também em duas partes. Começo pelos argumentos em <strong>de</strong>fesa dasupremacia dos parlamentos representativos. Na segunda parte, abordo os contrários àrevisão judicial. Há um paralelismo quase linear com o capítulo 2, em especial entreos argumentos relativos à revisão judicial.2. A favor <strong>de</strong> legisladores e parlamentosAo contrário <strong>de</strong> juízes e cortes, a relação <strong>de</strong> legisladores e parlamentos com a<strong>de</strong>mocracia é tida como mais óbvia e natural. Não tem um ônus especial <strong>de</strong>justificação. Por essa razão, essa instituição não só preserva, suplementa ou dinamizaa <strong>de</strong>mocracia. Encarnar, espelhar e representar são verbos mais a<strong>de</strong>quados para asteses aqui enumeradas.O argumento em favor da supremacia legislativa soma, pelo menos, doisvalores: (i) a representação eleitoral, 175 recurso usado para replicar, em menor escala,o povo, e (ii) a regra <strong>de</strong> maioria, recurso procedimental que promove a igualda<strong>de</strong>. 176A literatura constitucional ten<strong>de</strong> a ser superficial nesse aspecto e a assumir como175 Po<strong>de</strong>ria ir mais longe no exercício e optar pela vertente consi<strong>de</strong>rada ainda mais <strong>de</strong>mocrática darepresentação, a sua modalida<strong>de</strong> proporcional. Para os fins do argumento, esse passo é <strong>de</strong>snecessário.176 Seria possível ainda somar três elementos ao conjunto: (iii) a sabedoria da multidão (usado porWaldron, inspirado em Aristóteles e Condorcet, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a maior capacida<strong>de</strong> epistêmica <strong>de</strong> umforo <strong>de</strong>liberativo gran<strong>de</strong>), que <strong>de</strong>scarto por achar menos plausível; (iv) o elemento <strong>de</strong>liberativo interiorao parlamento, apesar <strong>de</strong> a literatura não consi<strong>de</strong>rar este um ponto favorável ao legislador (cf. Pickerill,Constitutional Deliberation in Congress); (v) a competência institucional específica para lidar com“conflitos policêntricos”, em oposição à capacida<strong>de</strong> para lidar com conflitos adversariais dos tribunais,conforme Lon Fuller elaborou em texto clássico (cf. “The Forms and Limits of Adjudication”). Esteúltimo foi absorvido, em alguma medida, pelos argumentos favoráveis à representação, pois seu<strong>de</strong>talhamento extrapolaria o objetivo do capítulo.85


postulado não-problemático o legislador como institucionalização da vonta<strong>de</strong> popularmajoritária por excelência. Tento coletar os argumentos mínimos que po<strong>de</strong>mexplicitar melhor essa suposição.A presença <strong>de</strong> Waldron continua intensa em partes <strong>de</strong>sse capítulo. Mais <strong>de</strong>cinco anos após seu último livro sobre o assunto, e à luz das intensas reações quegerou na teoria constitucional, este autor voltou recentemente ao tema. Em novotexto, preten<strong>de</strong> apresentar o que chama <strong>de</strong> “argumento essencial” contra a revisãojudicial. 177 “Essencial” porque não está vinculado a constituições nacionaisespecíficas, e não invoca exemplos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões históricas <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> exemplar.Cortes e parlamentos tomam <strong>de</strong>cisões boas e más. Ambos falham e acertam. Quer umargumento <strong>de</strong> pretensão universal que passe por cima <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações paroquiais e<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões específicas.Há novida<strong>de</strong>s em relação às numerosas publicações anteriores. Waldron passaa admitir que, em situações excepcionais, a revisão judicial po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sejável, maspermanece convicto <strong>de</strong> sua raiz anti<strong>de</strong>mocrática. A <strong>de</strong>fesa da supremacia doparlamento, portanto, torna-se relativa e condicionada. Esclarece também que seualvo é o mo<strong>de</strong>lo forte <strong>de</strong> revisão judicial <strong>de</strong> matriz americana, que possibilita a umtribunal não eleito revogar uma lei e dispor <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> última na interpretaçãoconstitucional. Admite que mo<strong>de</strong>los fracos possam ter alguma contribuição útil. 178Cria uma distinção importante entre “situação típica” e “situação atípica oupatológica”. 179 Na primeira, a revisão judicial é ilegítima, in<strong>de</strong>sejável e <strong>de</strong>snecessária.Na segunda, ela po<strong>de</strong> ser aceitável, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>monstre que a corte, emcomparação à alternativa parlamentar, protegerá direitos <strong>de</strong> modo mais eficaz.A espinha dorsal do argumento está na compreensão da “situação típica”. Elacompreen<strong>de</strong> quatro componentes: (i) instituições <strong>de</strong>mocráticas em bomfuncionamento; 180 (ii) instituições judiciais não representativas em bom177 “The core of the case against judicial review”, 2006.178 A distinção entre mo<strong>de</strong>los fortes e fracos será melhor explicada no capítulo 4, quando <strong>de</strong>screvobrevemente os mo<strong>de</strong>los cana<strong>de</strong>nse, britânico, e neo-zelandês.179 Essa foi a tradução imperfeita que adotei para as expressões “core” e “non-core situations”.180 Waldron explica rapidamente o que ele quer dizer com isso: parlamento representativo eleito pormeio <strong>de</strong> sufrágio universal, realização <strong>de</strong> eleições periódicas, legisladores que levam a sério seu papel86


funcionamento; 181 (iii) um compromisso genuíno da maioria da socieda<strong>de</strong> com a idéia<strong>de</strong> direitos; (iv) um persistente <strong>de</strong>sacordo <strong>de</strong> boa-fé sobre direitos. Os dois primeiros,portanto, envolvem condições institucionais. Os dois últimos, culturais.Se um <strong>de</strong>sses quatro componentes não estiver presente, e isso for um estadoendêmico, estaremos diante <strong>de</strong> uma “situação atípica e patológica”. Não significa,como vimos, que a revisão judicial seja a alternativa automática: há ainda o ônus <strong>de</strong> sejustificá-la no contexto específico. Eventualmente, os custos <strong>de</strong> se recorrer a talinstituição elitista po<strong>de</strong>m ter que ser pagos em função <strong>de</strong> parlamentos disfuncionais,<strong>de</strong> culturas políticas corruptas, <strong>de</strong> legados <strong>de</strong> racismo etc. Só nessas circunstâncias arevisão judicial faria sentido. Não po<strong>de</strong> ser vista como “epítome do respeito adireitos” ou como elemento sempre <strong>de</strong>sejável das <strong>de</strong>mocracias. É uma solução nãoi<strong>de</strong>al para circunstâncias extraordinárias.Por um momento, po<strong>de</strong>-se pensar que Waldron se tornou um <strong>de</strong>fensor darevisão judicial para o mundo real, enquanto continua a relativizá-la do ponto <strong>de</strong> vistanormativo. Não é a quintessência da <strong>de</strong>mocracia, mas seria aceitável diante darealida<strong>de</strong>. O autor, contudo, insiste que suas <strong>de</strong>mandas para o “caso típico” não sãoirrealistas ou utópicas – não exige instituições perfeitas ou infalíveis, mas apenas queestejam em bom funcionamento, orientadas pelo princípio da igualda<strong>de</strong> e capazes <strong>de</strong>monitorar-se e <strong>de</strong> corrigir-se. Waldron parece otimista quanto à existência da situaçãotípica em boa parte das atuais <strong>de</strong>mocracias que adotam a revisão judicial.Sua tese geral contra a revisão judicial já é conhecida. 182 Baseia-se, sobretudo,numa apreciação do direito à participação e da regra <strong>de</strong> maioria. Curiosamente, comose sabe, sempre fez a <strong>de</strong>fesa da supremacia legislativa sem contar com uma teoria darepresentação, exceto na forma <strong>de</strong> uma suposição genérica e rápida. No novo texto,ela continua ausente. Dá apenas algumas indicações <strong>de</strong> que uma teoria completa dalegitimida<strong>de</strong> precisa lidar com duas perguntas: Por que <strong>de</strong>terminadas pessoas<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m? Por que se utilizam <strong>de</strong> um dado procedimento? A resposta para a primeira<strong>de</strong> representantes, o parlamento como órgão <strong>de</strong>liberativo acostumado a lidar com questões <strong>de</strong> justiçaetc. (Ibid, p. 1361).181 Cortes não são eleitas, e portanto não estão permeadas pelo “ethos” da representação eleitoral, o queé importante para sua função no interior do estado <strong>de</strong> direito.182 Dedico o capítulo 3 da minha dissertação <strong>de</strong> mestrado a <strong>de</strong>screver o argumento <strong>de</strong> Waldron em<strong>de</strong>talhe.87


seria uma teoria <strong>de</strong> eleições eqüitativas; para a segunda, uma teoria sobre o valormoral da regra <strong>de</strong> maioria. A “teoria <strong>de</strong> eleições eqüitativas”, apenas esboçadaabstratamente ali, não me parece ainda satisfazer às <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> uma teoria darepresentação. Essa ausência é surpreen<strong>de</strong>nte, ainda mais quando se lembra queWaldron muitas vezes insistiu em dizer que a corte também <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por maioria, e queo elemento distinto do parlamento seria outro (justamente o atributo que ele <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolver com a atenção que <strong>de</strong>dicou à regra da maioria).Abaixo <strong>de</strong>lineio alguns dos argumentos tradicionais em nome <strong>de</strong>sses doisvalores principais por trás do parlamento eleito. Tento iluminar questões que precisamser melhor trabalhadas para preencher as lacunas da teoria <strong>de</strong> Waldron.2.1 A favor da representação eleitoralA prática da representação envolve muitos aspectos controversos malresolvidos pela teoria política. Debaixo <strong>de</strong> significativo consenso sobre quais são asinstituições representativas e o papel central das eleições, há um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordosobre o que significa, afinal, “representar”, e quais são os <strong>de</strong>veres do representante. 183Várias possibilida<strong>de</strong>s aparecem: aten<strong>de</strong>r aos interesses expressos <strong>de</strong> seus eleitores;seguir a opinião pública; buscar <strong>de</strong>scobrir o que seus eleitores <strong>de</strong>cidiriam seestivessem na posição privilegiada do parlamento, com a riqueza <strong>de</strong> informações e <strong>de</strong><strong>de</strong>bates ali disponíveis; tentar enten<strong>de</strong>r os interesses genuínos e autênticos <strong>de</strong> seuseleitores, mesmo que seja necessário ir contra os <strong>de</strong>sejos expressos <strong>de</strong>les; 184 aten<strong>de</strong>rao melhor interesse <strong>de</strong> toda a socieda<strong>de</strong> e buscar as melhores respostas por meio <strong>de</strong><strong>de</strong>liberação sincera etc.Naturalmente, a resposta a essas dúvidas <strong>de</strong>terminará o maior ou menor apelonormativo do parlamento representativo na <strong>de</strong>mocracia, e também a construção <strong>de</strong>incentivos institucionais para possibilitar aquele comportamento que seja maiscompatível com esse regime. Os argumentos abaixo passam ao largo <strong>de</strong>ssas183 Nadia Urbinati ilumina essa distinção: “Elections ‘make’ representation but do not ‘make’representatives. At a minimum they make responsible and limited government, but not representativegovernment” (Representative Democracy, p. 224).184 Sobre a distinção entre interesses autênticos e inautênticos dos representados, cf. Waluchow, ACommon Law Theory of Judicial Review, p. 86.88


discussões. Assumem que o parlamento cumpre a missão <strong>de</strong> representar, seja ela qualfor.2.1.1 “O parlamento representativo é o mais próximo que se po<strong>de</strong> chegardo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia nos estados mo<strong>de</strong>rnos (second-best choice). Émanifestação do povo, ainda que indireta”.A representação é um recurso pragmático para contornar dificulda<strong>de</strong>s quetornaram inviável a adoção do padrão <strong>de</strong>mocrático original. Nas socieda<strong>de</strong>smo<strong>de</strong>rnas, dadas sua dimensão e complexida<strong>de</strong>, indivíduos não po<strong>de</strong>m ocupar-se dapolítica todo o tempo. A magnitu<strong>de</strong> do <strong>de</strong>mos e a extensão geográfica dos estadosnacionais, a<strong>de</strong>mais, não permitem reuni-los numa assembléia. Sua participaçãosomente po<strong>de</strong> ser limitada e periódica. Dada a inviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> implementar o i<strong>de</strong>al, arepresentação, ao menos, é uma aproximação, um mal menor. O povo se faz presentepor meio das eleições, e governa, ainda que indiretamente, por intermédio <strong>de</strong> seusrepresentantes. 185 Mesmo que a idéia <strong>de</strong> “vonta<strong>de</strong> da maioria” possa ser problemática,o parlamento é representativo e isso basta para rejeitar uma instituição judicial que, senão é necessariamente contra-majoritária, é contra-representativa.2.1.2 “O processo <strong>de</strong> composição do parlamento representativo estruturaa competição política”.A escolha pragmática da técnica representativa viabilizou a <strong>de</strong>mocracia nãotanto porque o povo teria passado a governar indiretamente. A idéia <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> umavonta<strong>de</strong> comum por meio <strong>de</strong> instituições representativas é equivocada. Esse processo,porém, disciplina e estimula a competição política em bases eqüitativas, e permite aoeleitor escolher e rejeitar os competidores. O que <strong>de</strong>fine tal regime como <strong>de</strong>mocráticoé o igual direito <strong>de</strong> qualquer cidadão <strong>de</strong> votar e <strong>de</strong> ser votado.2.1.3 “O parlamento representativo é um aperfeiçoamento da <strong>de</strong>mocraciadireta (first-best choice)”.185 Cf. Nino, The Constitution of Deliberative Democracy, p. 171.89


Enxergar a representação como uma aproximação <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al em face dainviabilida<strong>de</strong> prática <strong>de</strong> sua completa realização correspon<strong>de</strong> a uma visãoempobrecida da política e da <strong>de</strong>mocracia. Urbinati, recentemente, buscou construiruma fundamentação normativa da representação que aten<strong>de</strong>sse à provocação <strong>de</strong>Thomas Paine: “Atenas, através da representação, teria superado sua própria<strong>de</strong>mocracia”. 186 Representação, nesse sentido, é um salto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> e umaperfeiçoamento, não um retrocesso.Segundo ela, a representação traz à tona a dimensão do julgamento e da<strong>de</strong>liberação na política. Impe<strong>de</strong> a primazia da <strong>de</strong>cisão e do voto, e que a política sereduza e seja <strong>de</strong>vorada por atos <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>, na dimensão do “aqui e agora”(“presentismo”). 187 Num governo direto, a presença física e o imediatismo são a molamestra da vida política. Com a representação, consegue-se transformar a presençafísica em presença por meio da voz, conectar as esferas formal e informal da políticanum contínuo <strong>de</strong> influência e <strong>de</strong>liberação. Acima <strong>de</strong> tudo, multiplica as dimensõestemporais da política e torna a <strong>de</strong>mocracia capaz <strong>de</strong> enxergar o longo prazo, <strong>de</strong> olharo futuro e <strong>de</strong> aperfeiçoar-se continuamente. Sem a mediação representativa, a políticafica refém dos espasmos do voto.2.1.4 “A ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisória do parlamento estimula o compromisso, aacomodação <strong>de</strong> extremos, não a polarização”.Ainda que as idéias <strong>de</strong> “representação do povo” e <strong>de</strong> “vonta<strong>de</strong> da maioria” nãosejam persuasivas, <strong>de</strong>ve-se levar em conta a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse foro <strong>de</strong>liberativo. Tratase<strong>de</strong> um valor epistêmico remanescente que não po<strong>de</strong> ser ignorado. O parlamentotem, numa escala incomparável em relação à corte, capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coletarinformações, obter avaliações técnicas <strong>de</strong> todos os pontos <strong>de</strong> vista, consi<strong>de</strong>rar amultiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interesses em jogo, balancear interesses, fazer concessões ecompromissos. Não está preso a uma lógica adversarial, e por isso lida com conflitospolicêntricos <strong>de</strong> maneira mais eficaz. Consi<strong>de</strong>ra os direitos <strong>fundamentais</strong> <strong>de</strong>ntro dagama diversificada <strong>de</strong> pon<strong>de</strong>rações necessárias <strong>de</strong> uma política pública. Isso não se186 Citado por Urbinati, Representative Democracy, p. 3.187 “It marks the end of a yes/no politics and the beginning of politics as open arena of contestableopinions and ever-revisable <strong>de</strong>cisions” (Representative Democracy, p. 224).90


confun<strong>de</strong> com “baratear direitos”, mas consiste numa estratégia mais responsável emenos retórica e polarizada <strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões coletivas.2.1.5 “A objeção contra a supremacia do parlamento representativo ecoapreconceitos da tradição anti-<strong>de</strong>mocrática”.Restrições ao parlamento insistem em resgatar, sub-repticiamente, os velhosmedos anti-<strong>de</strong>mocráticos contra a ignorância e o <strong>de</strong>spreparo das massas. Comolembrou Waldron, a revisão judicial não conseguirá proteger os direitos das minoriasse não houver nenhum apoio a esses direitos na socieda<strong>de</strong>. Os <strong>de</strong>fensores da revisãojudicial não discordam disso, mas curiosamente acham que tal apoio virá <strong>de</strong> elites:“Eles <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rão isso como um dado empírico, mas preciso dizer que é inteiramentecompatível com antigos preconceitos sobre a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>mocrática”. 1882.2 A favor da regra <strong>de</strong> maioria2.2.1 “A regra <strong>de</strong> maioria é o único princípio <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão coletiva querespeita o imperativo moral da igualda<strong>de</strong>”.A <strong>de</strong>cisão majoritária é tratada <strong>de</strong> modo passageiro por muitos textos clássicosda política. Para Waldron, esse pequeno esforço filosófico dispensado ao tema pareceindicar que a regra <strong>de</strong> maioria sempre foi pensada e praticada como algo natural eintuitivo, que não precisaria <strong>de</strong> maiores fundamentações. Constrói sua teorianormativa da regra <strong>de</strong> maioria por meio da interpretação <strong>de</strong> uma passagem <strong>de</strong> Locke,segundo a qual a “maioria é mais forte”. Waldron enten<strong>de</strong> que tal força não po<strong>de</strong> serlida na acepção física da expressão, mas na sua dimensão moral. O que mantém acomunida<strong>de</strong> integrada é o que chamou <strong>de</strong> “física do consentimento”.A regra <strong>de</strong> maioria é uma conquista porque permite que esse consentimentoresulte da força moral da igualda<strong>de</strong>. Respeita indivíduos <strong>de</strong> duas maneiras: leva asério diferenças <strong>de</strong> opinião e não os reprime por pensar diferente; e,fundamentalmente, trata-os como iguais. A acusação <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong>, nesse sentido,188 “The core of the case against judicial review”, p. 1405.91


não percebe as razões pelas quais a legislação é uma fonte <strong>de</strong> direito digna <strong>de</strong>respeito: suas cre<strong>de</strong>nciais majoritárias permitem que cada participante tenha igualpeso na <strong>de</strong>cisão. 1892.2.2 “A regra <strong>de</strong> maioria limita o po<strong>de</strong>r”.Segundo Ian Shapiro, ao contrário do que se pensa, a possibilida<strong>de</strong> dos “ciclos<strong>de</strong> votação”, contrariamente aos receios gerados pelo diagnóstico <strong>de</strong> Arrow sobre aprobabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões arbitrárias, contribui para a estabilida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>mocracia.Uma vez abandonada a expectativa <strong>de</strong> uma “vonta<strong>de</strong> geral” ou <strong>de</strong> um “bem comum”racionalmente produzido por um método <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão coletiva, po<strong>de</strong>-se perceber outravirtu<strong>de</strong> no procedimento majoritário. 190 Além disso, a história <strong>de</strong>monstraria que aprobabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma “tirania da maioria” é menor em <strong>de</strong>mocracias do que emregimes não-<strong>de</strong>mocráticos, o que gera dúvidas plausíveis sobre o conhecido receio <strong>de</strong>Tocqueville. 1912.2.3 “Decisões sobre questões <strong>de</strong> justiça não <strong>de</strong>vem ser sensíveis àintensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> preferências”.A intensida<strong>de</strong> da preferência não diz nada sobre a sua justiça. O fato <strong>de</strong>estarmos mais ou menos convictos, ou termos mais ou menos afeição por umaproposta, não tem absolutamente nenhum impacto na avaliação <strong>de</strong> sua correção.Quando direitos <strong>fundamentais</strong> estão em disputa, pouco interessa o quanto cada parte<strong>de</strong>seja <strong>de</strong>terminado resultado. A legitimida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>cisão será testada por suacompatibilida<strong>de</strong> substantiva com o princípio <strong>de</strong> justiça. 1923. Contra juízes e cortes189 Cf. The Dignity of Legislation, p. 151 e ss.190 The State of Democratic Theory, p. 15-16.191 Ibid, p. 20.192 Essa é a conhecida resposta <strong>de</strong> Rawls: “To the contrary, whenever questions of justice are raised, weare not to go by the strength of feeling but must aim instead for the greater justice of the legal or<strong>de</strong>r.(…) Where issues of justice are involved, the intensity of <strong>de</strong>sires should not be taken into account” (ATheory of Justice, p. 230-231).92


A <strong>de</strong>fesa da supremacia legislativa tem resposta, em alguma medida, a cadaum dos argumentos favoráveis à revisão judicial. Distorcer, <strong>de</strong>bilitar ou <strong>de</strong>snaturarsão verbos que melhor expressam o tom <strong>de</strong>ssa resposta. Esses argumentos não<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m propriamente a extinção da ativida<strong>de</strong> jurisdicional em matéria <strong>de</strong>interpretação constitucional, mas não admitem que a construção do significado daconstituição possa ser dominada pela corte.3.1 “A corte não protege as pré-condições da <strong>de</strong>mocracia, pois não estáfora da política”.A teoria constitucional teria engendrado uma operação conceitual rasteira, emduas partes. Primeiro, <strong>de</strong>squalifica como “meramente procedimental” o conceito <strong>de</strong><strong>de</strong>mocracia que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a prevalência do legislador na resolução <strong>de</strong> dilemas moraiscoletivos (geralmente traduzidos na linguagem dos direitos). Seria como se todo tipo<strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa da supremacia legislativa estivesse baseada numa visão amoral <strong>de</strong>sseregime. 193 Estaria apegada somente à forma e seria insensível à justiça (acusaçãosemelhante à feita ao positivismo jurídico na teoria do direito). Seria um conflito entreos que levam direitos a sério e os que os <strong>de</strong>sprezam. Segundo, tal operação teóricatambém constrói uma noção <strong>de</strong> cortes como agentes imunes ao conflito i<strong>de</strong>ológico eque po<strong>de</strong>m garantir respostas certas na proteção <strong>de</strong> direitos.Em relação ao primeiro, confun<strong>de</strong> teoria da autorida<strong>de</strong> com teoria da justiça.Ou seja, mistura num mesmo argumento a pergunta “o que <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir” com “quem<strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir”. É plenamente possível construir uma ambiciosa noção substantiva <strong>de</strong><strong>de</strong>mocracia sem abrir mão <strong>de</strong> que o legislador tenha primazia na busca <strong>de</strong>ssas metas.Negar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um controle externo ao parlamento jamais significou que oparlamento possa <strong>de</strong>cidir o que bem entenda. Os riscos da política, a<strong>de</strong>mais, não sãoeliminados por meio da corte. 194Em relação ao segundo, <strong>de</strong>ve-se perceber que a corte não está fora da políticae não é o agente neutro que às vezes se supõe. Especialmente quando se trata <strong>de</strong>193 Como exemplifica Waldron: “I am tired of hearing opponents of judicial review <strong>de</strong>nigrated as beingrights-skeptics. The best response is to erect the case against judicial review on the ground of a strongand pervasive commitment to rights” (Ibid, p. 1366).194 Waldron <strong>de</strong>senvolve esse argumento em Law and Disagreement.93


interpretar a constituição, as posições são controversas e a opinião judicial nãosoluciona o <strong>de</strong>sacordo. Apenas adiciona uma interpretação possível, mas com umcusto para a <strong>de</strong>mocracia: essa opinião vem enfeitada com os adornos <strong>de</strong> umalinguagem aparentemente técnica, que escon<strong>de</strong> a manifestação <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> e aafirmação <strong>de</strong> agendas i<strong>de</strong>ológicas. 195 Faz parecer que o direito tem autonomia e que acorte atua num domínio puramente neutro. Essa visão açucarada das cortes cria umaconveniente imunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas opiniões à contestação pública. Como afirmou MartinShapiro: “O direito, aquele particularmente complexo, processual, o direito dosadvogados, é uma arma maravilhosa quando se está per<strong>de</strong>ndo no domínio menosesotérico da política”. 1963.2 “A corte não protege direitos das minorias: moralmente, isso écontroverso; empiricamente, isso é falso”.A linguagem da “tirania da maioria” encobre retoricamente um fenômenomais complicado do ponto <strong>de</strong> vista moral. Não há nada necessariamente tirânico nofato <strong>de</strong> que uma minoria perca no parlamento, mesmo que com freqüência. Não sepo<strong>de</strong> fazer essa acusação à maioria gratuitamente. Waldron, por exemplo, não nega apossibilida<strong>de</strong> da tirania da maioria, mas salienta a importância do refinamentoanalítico. A maioria po<strong>de</strong> estar certa. A minoria po<strong>de</strong> não ter o direito que ela pensaque tem. Po<strong>de</strong> haver um <strong>de</strong>sacordo razoável e sincero entre pessoas que levamdireitos a sério. Tirania da maioria não <strong>de</strong>ve ser confundida, por isso, com qualquersituação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo. É uma preocupação legítima somente quando as maioriastópicas se alinham às maiorias <strong>de</strong>cisórias. 197 Se isso for endêmico, trata-se, natipologia <strong>de</strong> Waldron, <strong>de</strong> uma “situação atípica”, especialmente quanto ao seu terceiroelemento (o compromisso <strong>de</strong> levar direitos a sério).195 Duas escolas da teoria jurídica americana são famosas por esse ataque à neutralida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>cisãojudicial: o realismo jurídico, bastante influente nos anos 20 e 30, e os “estudos jurídicos críticos”, dosanos 70 e 80. Na ciência política, essa visão sobre adjudicação ecoou em estudos empíricos queassumem o juiz como ator i<strong>de</strong>ológico, o que é mais evi<strong>de</strong>nte na corrente dos “attitudinal studies”.196 “Law, particularly complex, procedural, lawyers’ law, is a won<strong>de</strong>rful weapon if one is losing in theless esoteric realms of politics” (“Apa: past, present and future”, p. 461).197 Essa é uma distinção importante <strong>de</strong> Waldron. Maioria ou minoria “tópica” correspon<strong>de</strong> ao grupo <strong>de</strong>pessoas que é atingido pela <strong>de</strong>cisão (não ao que votou nela), seja por acréscimo ou <strong>de</strong>créscimo <strong>de</strong>direitos. A maioria ou minoria “<strong>de</strong>cisória” se refere aos que votam para um ou para outro lado. Pessoasque levam direitos a sério tomam posição in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> se beneficiarem ou <strong>de</strong> se prejudicarempessoalmente com a <strong>de</strong>cisão. Somente quando uma minoria <strong>de</strong>cisória coinci<strong>de</strong> sistematicamente com aminoria tópica, para Waldron, há um sinal da real existência <strong>de</strong> uma minoria “insular e separada”, quepo<strong>de</strong> estar sofrendo a tirania da maioria (Ibid, p. 1401).94


Em alguma medida, a tirania é inevitável. 198 Ocorrerá sempre que <strong>de</strong>cisõeserradas sobre direitos forem tomadas. É um conceito substantivo, não procedimental.In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do modo como a <strong>de</strong>cisão é tomada, mas da <strong>de</strong>cisão correta ou incorretasobre direitos. Corte e parlamento po<strong>de</strong>m atuar, igualmente, <strong>de</strong> modo tirânico. Issonão <strong>de</strong>corre do procedimento que adotam.Do ponto <strong>de</strong> vista empírico, por sua vez, essa hipótese tampouco se sustenta,pois uma maioria consistente não <strong>de</strong>mora a vencer. 199 A corte não tem como resistirpor muito tempo. Nesse intervalo, po<strong>de</strong> eventualmente submeter o regime a umainjustificável “tirania da minoria”, por ser uma instituição elitista que persegue seusinteresses. 200Ao negar que o risco <strong>de</strong> tirania seja um bom argumento a favor da revisãojudicial, não se subestima a importância dos direitos. Defen<strong>de</strong>-se, apenas, que direitosserão melhor respeitados se cada cidadão efetivamente gozar do status <strong>de</strong> agentemoral autônomo, com sua opinião contada igualmente nas <strong>de</strong>cisões coletivas. <strong>Direitos</strong>continuam a ser a linguagem político-moral dominante, mas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> outrainstituição mais compatível com o igual status dos cidadãos.3.3 “A corte não é emissária do po<strong>de</strong>r constituinte nem mecanismo <strong>de</strong>pré-comprometimento. Esse é um disfarce que encobre um agente político quefaz escolhas morais controversas”.Recorrer à lógica do pré-comprometimento para justificar restrições à açãocoletiva é uma manobra falaciosa. O povo, ao ter se comprometido a respeitar certosvalores abstratos, não se posicionou sobre suas implicações concretas. Estas geram<strong>de</strong>sacordos sinceros sobre os quais ele, povo, <strong>de</strong>ve continuar <strong>de</strong>cidindo. Os juízes não198 “Democratic institutions will sometimes reach and enforce incorrect <strong>de</strong>cisions about rights. Thismeans they will sometimes act tyrannically. But the same is true of any <strong>de</strong>cision process. Courts willsometimes act tyrannically as well. Tyranny, on the <strong>de</strong>finition we are using, is more or less, inevitable.It is just a matter of how much tyranny there is likely to be” (Ibid, p. 1396).199 Robert Dahl, “The Supreme Court as a National Policy-Maker”.200 Como diria Robert Bork: “Majority tyranny occurs if legislation inva<strong>de</strong>s the areas properly left toindividual freedom. Minority tyranny occurs if the majority is prevented from ruling where its power islegitimate” (“Neutral Principles and Some First Amendments Problems”, p. 8).95


estão simplesmente respeitando as <strong>de</strong>cisões constituintes originais. Estão tomandosuas próprias <strong>de</strong>cisões sobre questões controversas, disfarçadas atrás da capa do po<strong>de</strong>rconstituinte.Há também, por trás da idéia <strong>de</strong> dualismo constitucional, uma concepçãoin<strong>de</strong>sejável <strong>de</strong> política: pressupõe que o cidadão somente manifesta virtu<strong>de</strong> cívica epreocupação com o bem comum em poucos e rápidos momentos <strong>de</strong> sua vida. Uma<strong>de</strong>mocracia vibrante, no entanto, precisa da participação não apenas nos rarosmomentos constitucionais. O fato <strong>de</strong> a fundação constitucional ter sido <strong>de</strong>mocrática,a<strong>de</strong>mais, não diz nada sobre o produto <strong>de</strong>sse processo. Dito <strong>de</strong> outro modo, não sepo<strong>de</strong> dizer que a revisão judicial é <strong>de</strong>mocrática porque um po<strong>de</strong>r constituinte<strong>de</strong>mocrático a aprovou. Ele po<strong>de</strong> aprovar toda sorte <strong>de</strong> regime, dos mais aos menos<strong>de</strong>mocráticos. O fato <strong>de</strong> o “criador” ser formalmente <strong>de</strong>mocrático não significa que a“criatura” também o será.3.4 “A corte, <strong>de</strong> fato, po<strong>de</strong> ter sua <strong>de</strong>cisão rejeitada, ao final, pelo po<strong>de</strong>r<strong>de</strong> emenda ou por uma nova constituição. Essa dificulda<strong>de</strong>, porém, não sejustifica”.O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> impor dificulda<strong>de</strong> tamanha é uma violação da igualda<strong>de</strong>pressuposta na regra <strong>de</strong> maioria. É um elemento anti-majoritário que enfraquece aresponsabilida<strong>de</strong> do povo. Democracia não serve apenas para momentos <strong>de</strong> exceção.O povo não <strong>de</strong>ve ser chamado a se manifestar somente por meio <strong>de</strong> válvulas <strong>de</strong>escape. Um regime <strong>de</strong> auto-governo pressupõe ativida<strong>de</strong> política permanente. 2013.5 “A revisão judicial não é <strong>de</strong>corrência necessária do estado <strong>de</strong> direito enão <strong>de</strong>ve ter exclusivida<strong>de</strong> na interpretação da constituição. Interpretações doparlamento po<strong>de</strong>m prevalecer”.É equivocada a inferência segundo a qual a constituição, para ser suprema,precisa, por imposição lógica, ser resguardada pela revisão judicial. Se assim o fosse,201 Em minha dissertação, construí justificativa parecida para criticar o “paroxismo” da rigi<strong>de</strong>zconstitucional brasileira, que permite ao STF controlar, inclusive, a constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> emendasconstitucionais.96


seria impossível admitir que leis inconstitucionais, com freqüência, sobrevivem econtinuam obrigatórias seja em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> seu não questionamento na corte, sejaem virtu<strong>de</strong> do erro judicial. 202 A qualida<strong>de</strong> normativa da constituição (e do direito emgeral) é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da existência <strong>de</strong> uma instituição que aplique sanções.Se não é por necessida<strong>de</strong> lógica ou conceitual, po<strong>de</strong> ser que a revisão judicialseja <strong>de</strong>sejável por conveniência prática, <strong>de</strong> modo a maximizar a eficácia do direitoconstitucional. Michelman, inclusive, admitiu que a revisão judicial, mais do que umcorolário lógico do constitucionalismo, é apenas um “edifício <strong>de</strong> prudência políticaliberal”. 203 No entanto, essa tese superestima a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a corte produzirinterpretações constitucionais melhores que as do parlamento. 2043.6 “A corte não é um agente externo que julga com imparcialida<strong>de</strong>, poisnão está fora da política. Alguém precisa <strong>de</strong>cidir por último, e nenhum dospossíveis candidatos a essa autorida<strong>de</strong> será neutro”.Não se <strong>de</strong>ve obscurecer a lógica elementar da autorida<strong>de</strong> 205 e confundirsituações em que o juiz age como um terceiro não interessado (como em conflitosentre dois indivíduos, por exemplo), com o cenário muito mais conflituoso eimpactante do controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. Nesse terreno, não há uma autorida<strong>de</strong>que esteja na condição <strong>de</strong> terceiro não interessado, que não possa julgar em causaprópria. Os efeitos <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões atingem a todos e o <strong>de</strong>sacordo continuará a serreinante. Portanto, melhor que tal autorida<strong>de</strong> seja o parlamento, tanto pelo valor moralque o alimenta, quanto por sua melhor capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alcançar soluções maisbalanceadas em face <strong>de</strong> temas irremediavelmente controversos. 206 Vale, aqui, amesma resposta contra o refrão da “tirania da maioria”: numa socieda<strong>de</strong> que levadireitos a sério, mas que discorda sinceramente sobre sua aplicação, não há nada <strong>de</strong>202 O que Nino chamou <strong>de</strong> “falácia <strong>de</strong> Marshall” (The Constitution of Deliberative Democracy, p. 192).203 Brennan and Democracy, p. 135.204 Whittington constrói uma resposta bastante elaborada contra a corrente crítica à possibilida<strong>de</strong> dainterpretação extrajudicial, conforme <strong>de</strong>screveremos no capítulo 4.205 Esse argumento é rotineiro em Waldron: “Facile invocations of nemo iu<strong>de</strong>x in sua causa are noexcuse for forgetting the elementary logic of authority: people disagree and there is need for a final<strong>de</strong>cision and a final <strong>de</strong>cision-procedure” (Law and Disagreement, p. 297).206 Waldron novamente: “The need for settlement does not make the fact of disagreement evaporate;rather, it means that a common basis for action has to be forged in the heat of our disagreements” (“Thecore of the case against judicial review”, p. 1370, 1371).97


necessariamente tirânico na maioria que <strong>de</strong>squalifique o parlamento e qualifique acorte.3.7 “O controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> não é mera <strong>de</strong>corrência dadinâmica da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Não há razão para que tenha a últimapalavra”.Não se nega a importância da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Há inúmeros outroselementos que mo<strong>de</strong>ram e contrabalanceiam a ativida<strong>de</strong> legislativa. No entanto, hánecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que, ao final do jogo, alguma instituição tenha a última palavra parasolução <strong>de</strong> dúvidas sobre a constituição. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a corte revogue umalei cria, a<strong>de</strong>mais, dois efeitos perversos: distorce a política pública, que será<strong>de</strong>sconfigurada pela interferência judicial e per<strong>de</strong>rá a racionalida<strong>de</strong> original intentadapelo legislador; e <strong>de</strong>bilita a <strong>de</strong>mocracia, pelas razões já expostas anteriormente. 2073.8 “No controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, a corte não analisa exatamenteum caso concreto diferente dos casos concretos que informam a <strong>de</strong>liberação <strong>de</strong>uma lei”.Naquele argumento, há duas suposições equivocadas: que a corte tem sempreuma rica <strong>de</strong>scrição concreta <strong>de</strong> um caso; que o legislador, ao <strong>de</strong>liberar, não estáinspirado e não leva em consi<strong>de</strong>ração uma gama diversificada <strong>de</strong> casos reais. A cortefreqüentemente estará menos informada que o parlamento. Este dispõe <strong>de</strong> inúmerosrecursos para captar informações <strong>de</strong> variados grupos sociais, e tem melhor noção <strong>de</strong>impacto da lei pela experiência legislativa anterior (afinal, raros são os temas que,hoje, começam do zero sua história legislativa).A corte não está em posição vantajosa e nem tem capacida<strong>de</strong> especial parasaber se uma lei é constitucional ou não. Seria subverter uma escolha já feita pelolegislador. É claro que à ela continuará a função <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver a lei e adaptá-la àscircunstâncias concretas cambiantes. Mas isso não justifica que ela possa revogá-la,pura e simplesmente. Não se nega a necessária margem <strong>de</strong> construção interpretativa207 Cf. Mark Tushnet, “Policy Distortion and Democratic Debilitation: Comparative Illumination of theCounter-Majoritarian Difficulty”.98


por parte da corte. A jurisprudência criativa é parte necessária da história <strong>de</strong>enraizamento <strong>de</strong> uma lei nas práticas sociais.Eventualmente, é verda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> ser que o legislador tenha mais dificulda<strong>de</strong>spara enxergar a dimensão <strong>de</strong> direitos <strong>fundamentais</strong> numa lei que envolveconsi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> muitos outros tipos. Para evitar essas potenciais miopiasesporádicas, um mo<strong>de</strong>lo “fraco” <strong>de</strong> revisão judicial basta, pois ele será capaz <strong>de</strong>lançar luzes sobre o problema <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> sem tirar do legislador o po<strong>de</strong>r<strong>de</strong> revogar a lei. 2083.9 “A corte é igualmente falível em questões <strong>de</strong> princípio e pessoasdiscordam sobre a resposta correta”.A idéia <strong>de</strong> que a corte tem melhor capacida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>liberar sobre princípiosi<strong>de</strong>aliza exageradamente o que <strong>de</strong> fato se passa ali. Esse argumento tem dois aspectos:um relacionado à expertise; outro ao ambiente institucional insulado das pressõeseleitorais.Quanto ao primeiro, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>legar questões <strong>de</strong> princípio à expertise. Sãobatalhas normativas e i<strong>de</strong>ológicas, não ciências neutras e técnicas. As escolhas moraisque a corte realiza não são mais qualificadas do que aquelas feitas por legisladoressinceros. Quanto ao segundo, em muitos sentidos, o insulamento po<strong>de</strong> ser justamenteo problema, não a solução. 209 Esse argumento ficará mais claro nos pontos abaixo.3.10 “A corte não promove uma representação <strong>de</strong>liberativa ouargumentativa. Juízes não representam, não são eleitos, e sim uma eliteprofissional”.Aqui, a patologia da i<strong>de</strong>alização da corte se torna mais acentuada. Não énecessário discordar da idéia <strong>de</strong> que a representação possa ser um fenômeno mais ricodo que simplesmente sua modalida<strong>de</strong> eleitoral para recusar que a corte seja vista208 Cf. Waldron, “The core of the case against judicial review”, p. 1370.209 Como afirmou Suntein: “From the moral point of view, insulation from majoritarian pressures issometimes the problem, not the solution” (“Testing minimalism”, p. 128).99


como a “representante da razão”, em oposição ao “representante da agregação”. Asuposição da super-racionalida<strong>de</strong> judicial é uma obsessão dos teóricos normativos,mas já foi seguidamente <strong>de</strong>smistificada por diferentes correntes que, animadas pelobenefício da dúvida, <strong>de</strong>ram mínima atenção a evidências empíricas. O ponto abaixoformula essa crítica com maior exatidão.3.11 “A corte não é instituição educativa, nem promove um <strong>de</strong>batepúblico melhor do que o legislador. Está presa a uma linguagem empobrecida,verborrágica, inflexível e amarrada a tecnicalida<strong>de</strong>s jurídicas”.Há dois problemas na idéia <strong>de</strong> que a corte correspon<strong>de</strong>ria a um padrãoexemplar <strong>de</strong> razão pública. Em primeiro lugar, geralmente assume que o legisladornão justifica suas <strong>de</strong>cisões, tarefa que seria típica somente no judiciário. 210 Emsegundo, vê na corte uma qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa que, ao menos segundo mo<strong>de</strong>los<strong>de</strong>sejáveis <strong>de</strong> discussão <strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong> temas controvertidos, não existe.Os padrões típicos da argumentação técnica judicial não convivem bem com aboa <strong>de</strong>liberação moral. A corte polariza e divi<strong>de</strong>, não pacifica. Está presa a umaretórica adversarial, característica incurável da linguagem dos direitos. Suas rígidas<strong>de</strong>clarações abstratas <strong>de</strong> princípio impe<strong>de</strong>m o acordo e o compromisso. De suas<strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>correm vencedores e per<strong>de</strong>dores. As partes do processo ou estãototalmente certas, ou totalmente erradas, sem concessões intermediárias. 211 Nãomo<strong>de</strong>ra extremos nem acomoda posições em disputa. Despolitiza conflitos e, comoconseqüência, <strong>de</strong>smobiliza e neutraliza movimentos <strong>de</strong> mudança. 212Para além do problema da rigi<strong>de</strong>z, há também o da verborragia.Freqüentemente, a argumentação judicial tem um caráter legalista e hermético. Estámais preocupada com a semântica do que com os valores subjacentes, mais presa aojargão do que ao argumento. A busca do significado verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> expressões210Para Waldron, é possível captar gran<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> argumentativa nos registros <strong>de</strong> <strong>de</strong>batesparlamentares: “The difference is that lawyers are trained to close study of the reasons that judges give;they are not trained to close study of legislative reasoning” (“The core…”, p. 1382).211 Cf. Rainer Knopff , “Courts Don’t Make Good Compromises”.212 Essa é a tese <strong>de</strong> Gerald Rosenberg que, ao contrário da gran<strong>de</strong> celebração do caso Brown v. Boardof Education, consi<strong>de</strong>ra pequeno o papel da Suprema Corte americana no gran<strong>de</strong> movimento daintegração racial nos EUA durante a década <strong>de</strong> 60 (cf. The Hollow Hope).100


escritas, que ganham vida própria, vira uma obsessão <strong>de</strong>sconectada dos problemasreais que precisam resolver. Juízes estão enredados em camisas-<strong>de</strong>-força verbais.Escorregam para digressões e <strong>de</strong>svios irrelevantes. Dispersam-se em argumentoslaterais sobre os cânones da argumentação jurídica, em vez <strong>de</strong> lidar com o dilema <strong>de</strong>fundo <strong>de</strong> modo franco e aberto. Em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberação moral com a qual o povo possainteragir, geram efeitos diversionistas.Se tudo isso for verda<strong>de</strong>, a proposta <strong>de</strong> que ela possa cumprir uma funçãoeducativa e ensinar como argumentar sobre questões constitucionais essenciais nãopassa <strong>de</strong> mais uma fetichização engendrada pela teoria normativa. A <strong>de</strong>cisão do casoRoe v. Wa<strong>de</strong> é bom exemplo do efeito perverso <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão judicial na<strong>de</strong>liberação pública. Tal <strong>de</strong>cisão teria sufocado a política e bi-polarizado a socieda<strong>de</strong>americana num tema que vinha gradualmente recebendo soluções criativas por parteda legislação reguladora do aborto. Extraiu o tema do foro <strong>de</strong> negociação pública e otransformou numa questão rígida e binária <strong>de</strong> princípio. 213 No texto da <strong>de</strong>cisão, porsua vez, há páginas <strong>de</strong>dicadas à discussão sobre a aplicabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes, eapenas alguns parágrafos sobre a importância moral <strong>de</strong> direitos reprodutivos. 214 Nãocontribuiu para que a socieda<strong>de</strong> percebesse os reais argumentos em jogo, e <strong>de</strong>sviou ofoco para legalismos moralmente irrelevantes.palavra”.3.12 “A corte integra um sistema <strong>de</strong>mocrático, mas não <strong>de</strong>ve ter a últimaA resposta aqui repete a mesma linha da observação acima sobre <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res. Obviamente, a <strong>de</strong>mocracia não é um regime <strong>de</strong> “todos <strong>de</strong>cidindo tudo todo otempo”. Há, <strong>de</strong> fato, uma intrincada re<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>legações e distribuição <strong>de</strong> funções.Porém, disso não <strong>de</strong>corre que não <strong>de</strong>va existir alguma hierarquização interna.Algumas <strong>de</strong>cisões precisam ser dotadas <strong>de</strong> mais autorida<strong>de</strong> do que outras, e algumainstituição precisa ser a autorida<strong>de</strong> máxima. Mesmo que <strong>de</strong>vamos pensar alegitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática do regime em bloco, há também que se consi<strong>de</strong>rarinstituições mais e menos <strong>de</strong>mocráticas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse bloco. É <strong>de</strong>ssa análise que<strong>de</strong>corre a atribuição da última palavra ao legislador.213 Cf. Cass Sunstein, One Case at a Time, p. 36, e Mary Ann Glendon, Rights Talk, p. 58.214 Waldron, “The core of the case against judicial review”, p. 1381.101


3.13 “A corte é composta por membros indicados por autorida<strong>de</strong>s eleitas,mas este mecanismo não é suficiente para a prestação <strong>de</strong> contas <strong>de</strong>mocrática”.Mesmo que esse mecanismo confira, <strong>de</strong> fato, alguma conexão dos juízes comas autorida<strong>de</strong>s eleitas, do ponto <strong>de</strong> vista comparativo, não há como justificar que acorte prevaleça sobre o legislador. Não basta uma remota semente <strong>de</strong>mocrática.Legitimida<strong>de</strong> se me<strong>de</strong> pela comparação: é preciso <strong>de</strong>monstrar que a autorida<strong>de</strong> dotadada última palavra é mais <strong>de</strong>mocrática que as alternativas, e essa hipótese não seadapta ao caso.4. Quem e como e quando e por que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre direitos numa <strong>de</strong>mocraciaconstitucional?Parlamentos <strong>de</strong>vem <strong>de</strong>cidir por último sobre direitos pela mescla <strong>de</strong> razõesmorais e instrumentais esboçadas acima. Do ponto <strong>de</strong> vista moral, o parlamento é umainstituição valiosa tanto por representar o povo (e potencializar a dinâmica<strong>de</strong>liberativa que o distanciamento representativo permite), quanto por dar a cadaindivíduo igual importância. Num contexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo, todos <strong>de</strong>vem ter a igualpossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar do processo <strong>de</strong> resolução, em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>legar a uma elite.Democracia, <strong>de</strong> fato, tem pré-condições, mas elas não se realizam senão pelaestratégia institucional <strong>de</strong> representação e da regra <strong>de</strong> maioria.Para além das razões <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>, há também uma capacida<strong>de</strong> institucionalvantajosa do parlamento. Permite que a linguagem dos direitos seja <strong>de</strong>senvolvida <strong>de</strong>um modo menos técnico e hermético e que os dilemas morais sejam enfrentados nasua substância, não por obsessões semânticas.5. Os cenários <strong>de</strong>sbalanceados dos capítulos 2 e 3 e preâmbulo do capítulo 4Num cenário, um legislador predominantemente egoísta e venal, <strong>de</strong>dicadoexclusivamente ao alpinismo político, à expansão e perpetuação <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r, contraum heróico e impassível juiz <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> direitos, lí<strong>de</strong>r do <strong>de</strong>bate moral, e consciência102


crítica e educadora da <strong>de</strong>mocracia. No outro, um juiz verborrágico, legalista ei<strong>de</strong>ológico contra um legislador virtuoso e <strong>de</strong> espírito público.É possível acomodar as críticas ao legislador e os elogios ao juiz (cap. 2),junto com as críticas ao juiz e os elogios ao legislador (cap. 3)? São faces possíveis damesma moeda? Uma teoria está con<strong>de</strong>nada ao ônus da escolha entre as versões<strong>de</strong>generadas e i<strong>de</strong>alistas <strong>de</strong> juiz e legislador?Teorias do diálogo, como se verá no próximo capítulo, são também variadas,mas lidam melhor com essas duas faces à medida que se mostram menos preocupadascom a última palavra. Na sua versão mais elaborada, a perspectiva do diálogoprovavelmente faz isso: aceita a falibilida<strong>de</strong> das duas instituições e a combina comum ambicioso projeto normativo que leve em conta as vantagens comparativas dasduas, uma vez que não são mais necessariamente exclu<strong>de</strong>ntes. Diversos dosargumentos expostos nos capítulos 2 e 3 reaparecerão, implícita ou explicitamente, nocapítulo 4. A estrutura <strong>de</strong> exposição, porém, muda para consi<strong>de</strong>rar em maior <strong>de</strong>talheautores específicos que dão alguma contribuição particular ao <strong>de</strong>bate.103


Capítulo 4A inclinação por ambos: diálogo sem última palavra1. IntroduçãoDiálogo é uma imagem fecunda e expressiva para a política. É signo <strong>de</strong>igualda<strong>de</strong>, respeito mútuo e reciprocida<strong>de</strong>. Denota uma relação horizontal e nãohierárquica. Carrega, portanto, um valor sedutor para justificar <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>.Indivíduos dialogam em ambientes formais e informais da política. No interior dasinstituições, <strong>de</strong>cisões não costumam ser tomadas sem uma prática mínima <strong>de</strong> diálogo.Po<strong>de</strong>m instituições dialogarem entre si?Esse capítulo aborda teorias que aceitam, em alguma medida, tal hipótese.Trata-se, claro, <strong>de</strong> um tipo menos visível <strong>de</strong>ssa prática. Não reproduz, à perfeição, oque costumamos pensar como diálogo. Requer alguma abstração para sustentar que asinterações entre as instituições são <strong>de</strong>ssa natureza. A <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é o pano<strong>de</strong> fundo <strong>de</strong>ssas teorias, cujo <strong>de</strong>safio é mostrar que tal imagem traz algo <strong>de</strong> novo paraa forma como esse mecanismo básico do constitucionalismo é concebido. Não se <strong>de</strong>vecobrar <strong>de</strong>ssas teorias a <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> que as instituições estão conversandoamistosa e pacificamente umas com as outras, mas ao menos uma abordagem original.A relação específica para a qual o capítulo se dirige é a estabelecida entreparlamentos representativos e cortes constitucionais. 215 Teorias do diálogo, em geral,contrariamente às apresentadas nos capítulos 2 e 3, não fazem gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mandasnormativas sobre o tipo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> legislador ou <strong>de</strong> juiz. Estão preocupadas em enten<strong>de</strong>ro significado <strong>de</strong> sua interação. Apresentam uma forma nova <strong>de</strong> olhar a revisão judiciale o processo legislativo, vítimas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança por parte das teorias da últimapalavra. Essa mudança <strong>de</strong> perspectiva preten<strong>de</strong> produzir impacto relevante ao<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que a <strong>de</strong>cisão da corte não é, e não tem como ser, o fim da linha.215 Uma abordagem integral da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res através da “perspectiva dialógica” requereriatambém a análise <strong>de</strong> como o executivo participa nesse processo. Este trabalho, porém, concentra-senuma versão incompleta <strong>de</strong> uma teoria mais ampla. Esse foco restrito à relação entre parlamentos ecortes é a opção tradicional da teoria constitucional e tem uma razão <strong>de</strong> ser: o po<strong>de</strong>r executivo nuncafoi consi<strong>de</strong>rado um candidato para a última palavra em questões <strong>de</strong> direitos <strong>fundamentais</strong>.104


As sementes da idéia <strong>de</strong> que há uma interlocução institucional que <strong>de</strong>ve serincorporada à justificativa da revisão judicial já apareciam na dissertação. A metáforaexiste na literatura americana há bastante tempo. Bickel, na década <strong>de</strong> 60, já falavaem “colóquio contínuo” (continuing colloquy) e em “conversa permanente”(permanent conversation). 216 Louis Fisher, em publicações das décadas <strong>de</strong> 70 e 80, jáse referia a “ diálogos constitutionais”. Bruce Ackerman consi<strong>de</strong>ra essa imagem parapensar a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res americana, principalmente pela idéia <strong>de</strong> “dualismoconstitucional” (a variação entre momentos <strong>de</strong> “política normal” e <strong>de</strong> “políticaconstitucional”).Teorias do diálogo, com nuances variadas, procuraram amenizar apreocupação com a “dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária”, nos termos <strong>de</strong> Bickel. Aquelaimagem, também inaugurada pelo mesmo autor, não foi tão bem sucedida quanto estaexpressão que o celebrizou, mas vem renascendo e impregnando o <strong>de</strong>bate americanonos últimos 20 anos. Teorias do diálogo tentam escapar da armadilha da últimapalavra e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m uma atitu<strong>de</strong> teórica que rompa essa camisa-<strong>de</strong>-força. Propõem-secomo uma “terceira via”, um meio-termo. 217 A <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong>sse prisma é feita por umaliteratura multifacetada, composta por um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> autores.Além das nuances e versões das diferentes teorias do diálogo, <strong>de</strong>ve-se percebero que elas têm em comum e como contrastam com teorias da última palavra. Dois sãoos seus principais <strong>de</strong>nominadores comuns: a recusa da visão juricêntrica e do216 “Virtually all important <strong>de</strong>cisions of the Supreme Court are the beginnings of conversations betweenthe Court and the people and their representatives. They are never, at the start, conversations betweenequals. The Court has the edge… [but] the effectiveness of the judgment universalized <strong>de</strong>pends onconsent and administration” (The Supreme Court and the I<strong>de</strong>a of Progress, p. 91). “The Court interactswith other institutions, with whom it is engaged in an endlessly renewed educational conversation…And it is conversation, not a monologue” (The Morality of Consent, p. 111).217Kent Roach reconhece que, por ocupar um espaço intermediário, a teoria do diálogo éinevitavelmente atacada pelos <strong>de</strong>fensores da supremacia judicial, em virtu<strong>de</strong> do excessivo espaço queconce<strong>de</strong>ria ao legislador, e vice-versa: “If so, an interesting feature of dialogue theory is that it mayoccupy the middle ground between those who are suspicious of courts and rights protection and thosewho are passionate <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rs of courts and rights protection. Dialogue theory is criticized both for<strong>de</strong>fending judicial review and for allowing legislature to overri<strong>de</strong> rights. There is often much wisdomin middle-ground or half-way positions. Alas, however, you can end up being shot at by both si<strong>de</strong>s!”(“Sharpening the Dialogue Debate”, p. 177; cf. também Roach em The Supreme Court on Trial, p. 292)A estratégia expositiva, adotada também por essa tese, <strong>de</strong> apresentar duas posições polarizadas e tentarconciliá-las por uma terceira, já foi aplicada por outros autores. Cf., p. ex., Janet Hiebert, em CharterConflicts: What is Parliament’s Role?, on<strong>de</strong> concebe um regime <strong>de</strong> “responsabilida<strong>de</strong>scompartilhadas” entre cortes e parlamentos, contra a <strong>de</strong>ferência judicial recomendada por uma posiçãooriginalista ou a imponência judicial <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> uma concepção substantiva da revisão judicial.105


monopólio judicial na interpretação da constituição, a qual é e <strong>de</strong>ve ser legitimamenteexercida pelos outros po<strong>de</strong>res; a rejeição da existência <strong>de</strong> uma última palavra, ou, pelomenos, <strong>de</strong> que a corte a <strong>de</strong>tenha por meio da revisão judicial.Divi<strong>de</strong>m-se em duas categorias gerais. 218 A primeira propõe uma teoria da<strong>de</strong>cisão judicial que leve em conta a interação com o legislador. Não se tratapropriamente <strong>de</strong> um método <strong>de</strong> interpretação, mas <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> que a cortereconheça e participe do diálogo. É uma forma <strong>de</strong> compreensão normativa do seupapel. A segunda <strong>de</strong>fine o diálogo como produto necessário da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res,uma <strong>de</strong>corrência do <strong>de</strong>senho institucional, não necessariamente da disposição <strong>de</strong>qualquer dos po<strong>de</strong>res por “dialogar”. Nessa categoria, teorias são predominantementeempíricas, mas a fronteira entre argumentos positivos e normativos torna-segradualmente nebulosa. Com freqüência, proposições <strong>de</strong>scritivas influenciam opróprio comportamento das instituições que participam do diálogo, o qual passa a seruma razão invocada para a escolha <strong>de</strong>cisória, como se verá no caso cana<strong>de</strong>nse.A primeira, portanto, tem um caráter endógeno e a segunda aponta para ofenômeno exógeno, menos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da postura <strong>de</strong> cada instituição. Os argumentosdos últimos dois capítulos não saem <strong>de</strong> cena, mas ganham novo peso e lugar na ca<strong>de</strong>iaargumentativa. O capítulo sistematiza essas duas categorias, indicando os principaisautores <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada uma. Em seguida faz sínteses conclusivas que fecham, juntocom os últimos dois capítulos, o bloco <strong>de</strong>scritivo da tese. O critério <strong>de</strong> seleção <strong>de</strong> cadaautor e cada corrente foi a adição <strong>de</strong> algo novo ao <strong>de</strong>bate. Mesmo que, comfreqüência, esses autores se repitam em diversos pontos, acredito que haja aspectosparticulares a serem ressaltados em cada um.218 Essa divisão entre duas categorias gerais guarda semelhança com a classificação feita por ChristineBateup em texto bastante útil para uma revisão bibliográfica (“The Dialogic Promise”). Não sigoprecisamente essa autora nas outras subdivisões que realiza <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssas categorias e tampouco suasconclusões. Ela apresenta tais teorias numa seqüência linear das piores para as melhores, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndoque a melhor teoria do diálogo <strong>de</strong>ve surgir da combinação das perspectivas <strong>de</strong> Janet Hiebert (queilumina a interação horizontal entre as instituições) e <strong>de</strong> Barry Friedman (que <strong>de</strong>staca o diálogo maisamplo com a socieda<strong>de</strong> e o papel da opinião pública). Procuro encontrar maior complementarida<strong>de</strong>entre teorias que ela apresenta <strong>de</strong> forma exclu<strong>de</strong>nte.106


2. Diálogo no interior da <strong>de</strong>cisão judicialA tensão básica entre os autores que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m uma <strong>de</strong>cisão judicial sensívelao diálogo é <strong>de</strong> grau: alguns preferem atuações <strong>de</strong>ferentes, passivas e minimalistas;outros uma intervenção ativa e maximalista. Essas abordagens chamam atenção para acomplexida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>cisão em controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. Esta não se restringe auma escolha binária entre o constitucional e o inconstitucional. Mesmo que, do ponto<strong>de</strong> vista formal, essas <strong>de</strong>cisões tenham que se posicionar em um dos dois lados, hádiferentes intensida<strong>de</strong>s pelas quais fazê-lo. Essas <strong>de</strong>cisões dão sinalizações aolegislador e fazem, mais do que uma estrita interpretação jurídica, um juízo <strong>de</strong> ocasiãosobre até on<strong>de</strong> a corte po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve interferir no respectivo caso.2.1 Virtu<strong>de</strong>s passivas2.1.1 Alexan<strong>de</strong>r Bickel, virtu<strong>de</strong>s passivas e colóquio socrático: a corte comoanimal político pru<strong>de</strong>nteAlexan<strong>de</strong>r Bickel é um autor que ocupa posição curiosa na teoriaconstitucional contemporânea. Po<strong>de</strong>-se dizer que, em gran<strong>de</strong> medida, formulou aagenda da geração que o suce<strong>de</strong>u. No entanto, se as questões que levantou e asexpressões que cunhou tiveram, por um lado, gran<strong>de</strong> impacto, suas respostas nãoexerceram tanta influência. Entre suas expressões, a mais célebre <strong>de</strong>las foi a“dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária”, referência <strong>de</strong> primeira página <strong>de</strong> todos os livros quediscutiram o assunto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então. 219A leitura <strong>de</strong> sua obra enfrenta algumas dificulda<strong>de</strong>s. Nela não há elaboração <strong>de</strong>fôlego <strong>de</strong> um argumento, uma seqüência sistemática <strong>de</strong> uma idéia. Entremeiapinceladas teóricas instigantes com muitas análises <strong>de</strong> casos e passagensconstitucionais da história americana. É um autor que se <strong>de</strong>staca pela eloqüência <strong>de</strong>algumas <strong>de</strong> suas frases, pelas suas provocações inspiradoras e por ter iluminado219 Para Bickel, a revisão judicial obviamente representava uma <strong>de</strong>sconfiança em relação ao legisladore das maiorias: “The root difficulty is that judicial review is a counter-majoritarian force in our system.(…) That, without mystic overtones, is what actually happens. It is an altogether different kettle of fish,and it is the reason the charge can be ma<strong>de</strong> that judicial review is un<strong>de</strong>mocratic. (…) nothing in thesecomplexities can alter the essential reality that judicial review is a <strong>de</strong>viant institution in the American<strong>de</strong>mocracy” (The Least Dangerous Branch, p. 16-18).107


perspectivas férteis e originais para lidar com o problema. 220 Derivar <strong>de</strong> seus textosuma teoria constitucional bem articulada, portanto, é um <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> interpretação.Todavia, é também um exercício necessário para <strong>de</strong>monstrar que seu legado não seresume a um conjunto <strong>de</strong> slogans.Sua obra foi construída no calor das agitações da década <strong>de</strong> 60, momentoturbulento da socieda<strong>de</strong> americana. A Suprema Corte teria assumido, naquelemomento, papel <strong>de</strong> protagonista na condução das transformações sociais, relacionadassobretudo a casos <strong>de</strong> segregação racial. Intrigava a Bickel encontrar uma justificativapara o ativismo que a corte vinha exercendo <strong>de</strong>ntro da <strong>de</strong>mocracia. 221 Ao mesmotempo, pelo caráter contra-majoritário da corte, queria enten<strong>de</strong>r como ela sobreviveuno período.Sua forma <strong>de</strong> abordar essas questões reúne passagens enigmáticas einconclusivas, talvez pelos conceitos atípicos e inovadores que ele insere na reflexãosobre adjudicação constitucional. Virtu<strong>de</strong>s passivas, colóquio socrático, arte docompromisso, prudência, longo prazo, gradualismo, pragmatismo, acomodação,estabilida<strong>de</strong>, entre outras, são palavras que geram certa perplexida<strong>de</strong> para quem estáacostumado a enten<strong>de</strong>r o papel da corte à luz da prática <strong>de</strong> interpretaçãoconstitucional e da proteção dos direitos.Bickel ajuda a perceber que há mais no controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> do queinterpretação e aplicação do direito. Essa não é, propriamente, uma novida<strong>de</strong>, pois orealismo jurídico e as vertentes da ciência política que investigaram o judiciáriosempre <strong>de</strong>sacreditaram <strong>de</strong>ssa premissa. A perspectiva <strong>de</strong> Bickel é inovadora, contudo,porque <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> as virtu<strong>de</strong>s políticas da corte e as insere numa teoria normativa darevisão judicial. Não se trata apenas <strong>de</strong> dizer que é inevitável a corte ser influenciadapor fatores externos ao direito, mas <strong>de</strong> sustentar que é assim que <strong>de</strong>ve ser, a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<strong>de</strong> quais forem esses fatores. Esse é o argumento <strong>de</strong> Bickel que se conecta com a idéiado diálogo, e passo a abordá-lo com mais <strong>de</strong>talhe.220 Suas frases mais importantes estarão transcritas em notas <strong>de</strong> rodapé durante o capítulo.221 Uma justificativa que superasse as explicações <strong>de</strong> Marshall, em Marbury v. Madison, <strong>de</strong> JamesThayer, <strong>de</strong> Learned Hand e <strong>de</strong> Herbert Wechsler, autores abordados no capítulo 2 do livro.108


Juízo político é tabu na teoria constitucional normativa. Dificilmente alguém oadmite com total clareza. Quando se <strong>de</strong>sconfia <strong>de</strong> algum traço discricionário na<strong>de</strong>cisão, o objetivo é censurá-lo, evitá-lo, controlá-lo (ou, eventualmente, escondê-lo).O juízo político que Bickel tem em mente, porém, não é associado ao impulso, aosentimento, à predileção i<strong>de</strong>ológica. Continua a ser informado por uma vonta<strong>de</strong><strong>de</strong>sinteressada e isenta. Consiste num juízo qualificado pela virtu<strong>de</strong> da prudência e é,sobretudo no exercício da prudência, que a corte se comporta como “animalpolítico”. 222Para Bickel, em toda <strong>de</strong>cisão política, inescapavelmente, há duas dimensões: a<strong>de</strong> princípio e a <strong>de</strong> conveniência e oportunida<strong>de</strong> (expediency). 223224 Em todo ato <strong>de</strong>governo, po<strong>de</strong>m-se observar dois aspectos: o seu efeito concreto imediato e a suarelação com os valores duradouros que dão coesão e unida<strong>de</strong> à comunida<strong>de</strong> política.O gerenciamento da tensão entre ambos é a essência da arte <strong>de</strong> governo, e isso seaplica tanto ao juiz quanto ao legislador, ainda que em doses diferentes. Esse era oargumento da filosofia política <strong>de</strong> Lincoln, don<strong>de</strong> Bickel <strong>de</strong>nominá-la <strong>de</strong> “tensãolincolniana”. 225 A corte, e também os outros po<strong>de</strong>res, estão imersos nessa tensão, enão se po<strong>de</strong> tentar eliminá-la ou dissimulá-la. 226222 Essa expressão, assim como várias outras passagens do seu livro mais famoso, The Least DangerousBranch, aparecem num artigo anterior, em que já apresenta suas primeiras idéias: “Foreword: ThePassive Virtues”. Após <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o uso <strong>de</strong> certas técnicas <strong>de</strong> “não <strong>de</strong>cisão”, Bickel conclui: “They markthe point at which the Court gives the electoral institutions their head and itself stays out of politics,and there is nothing paradoxical in finding that here the Court is most a political animal. But this is notto conce<strong>de</strong> judgment proceeding from impulse, hunch, sentiment, predilection, inarticulable andunreasoned. The antithesis of principle in an institution that represents <strong>de</strong>cency and reason is not whim,nor even expediency, but pru<strong>de</strong>nce” (p. 51 do artigo, p. 132 do livro).223 “No good society can be unprincipled; and no viable society can be principle-rid<strong>de</strong>n. But it is nottrue in our society that we are generally governed wholly by principle in some matters and indulge arule of expediency exclusively in others. There is no such neat dividing line. (...) both requirementsexist most imperatively si<strong>de</strong> by si<strong>de</strong>: guiding principle and expedient compromise” (The LeastDangerous Branch, p. 63-64).224 Essa distinção não se confun<strong>de</strong> com a <strong>de</strong> Ronald Dworkin, entre princípios e políticas públicas,apesar <strong>de</strong> algumas relações óbvias po<strong>de</strong>rem ser traçadas.225 “Our <strong>de</strong>mocratic system of government exists in this Lincolnian tension between principle an<strong>de</strong>xpediency, and within it judicial review must play its role” (The Least Dangerous Branch, p. 68, ou“Foreword: The Passive Virtues”, p. 49).226 A tentativa <strong>de</strong> Wechsler <strong>de</strong> restringir o papel da corte à busca dos “princípios neutros” seria, paraBickel, uma gran<strong>de</strong> distorção: “No attempt to lift the Court out of the Lincolnian tension can besuccessful” (The Least Dangerous Branch, p. 131).109


Não há gran<strong>de</strong> precisão, como tampouco em outras noções <strong>de</strong> Bickel, na<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> princípio. 227 Refere-se à enunciação dos valores que regulam a política eas relações sociais numa socieda<strong>de</strong>. Enten<strong>de</strong>-se melhor o seu significado pelocontraste com a noção <strong>de</strong> conveniência e oportunida<strong>de</strong>. Esta implica no exercício docompromisso, da faculda<strong>de</strong> pragmática <strong>de</strong> perceber o que é factível. O princípio, aocontrário, <strong>de</strong>nota um valor moral rígido, que não faz concessões. O agente <strong>de</strong>cisórioprecisa ser dotado <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong> especial para saber balancear as <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong>princípio com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acomodação estável à realida<strong>de</strong>. Não po<strong>de</strong> apegar-se àambição <strong>de</strong> mudança abrupta do princípio. Há <strong>de</strong> ter flexibilida<strong>de</strong> para conduzirmudanças graduais e estáveis.A missão principal da corte, da qual <strong>de</strong>corre a justificativa <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong>, é<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a dimensão <strong>de</strong> princípio. 228 Essa é sua capacida<strong>de</strong> institucional singular,difícil <strong>de</strong> ser encontrada no parlamento representativo. 229 Para a promoção doprincípio, são necessários hábitos mentais e costumes institucionais que a corte temmaior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver. 230 Além disso, ela também tem a vantagem <strong>de</strong>lidar com casos concretos, que fornecem um teste saudável para as abstraçõesvalorativas. Se o parlamento não está bem equipado para essa tarefa, é natural que àcorte caiba a missão <strong>de</strong> guardar e pronunciar tais princípios. 231 No entanto, Bickel sepõe uma pergunta: “como a corte, encarregada da função <strong>de</strong> enunciar princípios,produz ou permite os necessários compromissos?” 232 Como evitar que seja forçada aimpor sobre a socieda<strong>de</strong>, repentinamente, regras rígidas que vão contra as práticasenraizadas?227 “Principle, ethics, morality – these are evocative, not <strong>de</strong>finitional, terms; they are attempts toenclose meaning, not to enclose it” (The Least Dangerous Branch, p. 199).228 “the role of the Court and its raison d’être are to evolve, to <strong>de</strong>fend and to protect principle” (TheLeast Dangerous Branch, p. 187-188, ou “Foreword: The Passive Virtues”, p. 77).229 [In legislative assemblies] “men will ordinarily prefer to act on expediency rather than take the longview. [Our system calls for] evolution of principle in novel circumstances, rather than only for itsmechanical application. (…) the creative establishment and renewal of a coherent body of principledrules – that is what our legislatures have proven themselves ill equipped to give us. (…) courts havecertain capacity for <strong>de</strong>aling with matters of principle that legislatures and executives do not possess”(The Least Dangerous Branch, p. 25).230 “Their insulation and the marvelous mystery of time give courts the capacity to appeal to men’sbetter natures” (Ibid, p. 24).231 Ibid, p. 24.232 Ibid, p. 69.110


A corte, diante <strong>de</strong> um caso, dispõe <strong>de</strong> três alternativas. Em primeiro lugar, temo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> revogar uma lei por inconstitucionalida<strong>de</strong>. Em segundo lugar, po<strong>de</strong> validare legitimar essa lei, se entendê-la constitucional. 233 Tanto uma quanto outra precisamser tomadas com base em princípios. São as duas escolhas óbvias que um tribunalpo<strong>de</strong> fazer quando analisa o mérito da disputa constitucional. Há, no entanto, umaterceira opção: a corte po<strong>de</strong> não fazer nenhuma das duas coisas, e <strong>de</strong>cidir não <strong>de</strong>cidir.Para tanto, lança mão <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> “técnicas <strong>de</strong> não <strong>de</strong>cisão”, as chamadas virtu<strong>de</strong>spassivas. São ferramentas processuais por meio das quais a corte evita emitir suaopinião sobre o caso, pois ela não po<strong>de</strong> estar obrigada a legitimar tudo aquilo que nãoconsi<strong>de</strong>re inconstitucional. 234 Em face <strong>de</strong> dois extremos, abre uma saída pelo meio,um mecanismo para aplicar a máxima do juiz Bran<strong>de</strong>is: “a coisa mais importante quefazemos é não fazer”. 235A corte precisa ter, por isso, sensibilida<strong>de</strong> para o exercício <strong>de</strong>ssa tarefa maissutil <strong>de</strong> não <strong>de</strong>cidir, <strong>de</strong> saber se, quando e quanto <strong>de</strong>cidir, perguntas inadmissíveispara concepções rígidas da revisão judicial. Há, segundo o autor, uma diferença <strong>de</strong>tipo, e não <strong>de</strong> grau, entre a interpretação do direito e o uso <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s passivas, estasmais ligadas à prudência. 236 O princípio é a antítese da prudência, o que não significaque esta não tenha um significado racional. 237 A revisão judicial po<strong>de</strong> jogar, naspalavras do autor, com o “maravilhoso mistério do tempo” e esperar. Esse tempo <strong>de</strong>espera é valioso para que processos <strong>de</strong>liberativos sejam estimulados na socieda<strong>de</strong>,233 O que Bickel chamou <strong>de</strong> “função mística”, do efeito simbólico (Ibid, p. 29).234 As virtu<strong>de</strong>s passivas específicas a que Bickel se refere correspon<strong>de</strong>m a uma série <strong>de</strong> doutrinas sobrejusticiabilida<strong>de</strong> que a Suprema Corte usa para evitar ter que <strong>de</strong>cidir o mérito do caso. Entre elas:political question doctrine, mootnes, ripeness, standing, certiorari etc. São instrumentos técnicostípicos do processo americano, que eventualmente encontram equivalentes em outros sistemas.235 Ibid, p. 69.236 “It is different, just so; but only by means of a play on words can the broad discretion that the courtshave in fact exercised be turned into an act of constitutional interpretation. The political-questiondoctrine simply resists being domesticated in this fashion. There is something different about it, inkind, not in <strong>de</strong>gree, from the general ‘interpretive process’; something gently more flexible, somethingof pru<strong>de</strong>nce, not construction and not principle. And it is something that cannot exist within the fourcorners of Marbury v. Madison” (“Foreword: The Passive Virtues”, p. 46).237 “The passive <strong>de</strong>vices that I have canvassed do not produce constitutional <strong>de</strong>cisions. They do notcheck or legitimate on principle. They are not themselves principled, they do not operatein<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntly, and the variables that ren<strong>de</strong>r them <strong>de</strong>cisive cannot be contained in any principle; (…)But the passive <strong>de</strong>vices have intrinsic, rational significance. The Court’s authority to employ them is<strong>de</strong>rived from its ultimate function of ren<strong>de</strong>ring principled adjudications; for this is a function that canbe wisely and fruitfully exercised only if the Court is empowered also to <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> whether and when toexercise it. The presence in the case of the ultimate issue of constitutional principle is the source of theCourt’s authority to make a lesser <strong>de</strong>cision (…)” (The Least Dangerous Branch, p. 205).111


antes que se tome uma <strong>de</strong>cisão rígida <strong>de</strong> princípio. Deixa-se a questão <strong>de</strong> princípioamadurecendo e sendo testada pela experiência.A corte, ainda, segundo Bickel, <strong>de</strong>ve tentar persuadir antes <strong>de</strong> coagir,encontrar uma acomodação tolerável entre as <strong>de</strong>mandas do princípio e <strong>de</strong>conveniência. 238 Se seguir o rumo contrário à opinião pública, ao longo do tempo, suaautorida<strong>de</strong> ruirá. 239 Em algumas circunstâncias, não seria sábio interferir no processo<strong>de</strong>mocrático por meio <strong>de</strong> um julgamento rígido <strong>de</strong> princípio. 240 A obrigação <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidirtodo o tempo levaria a um processo manipulativo da <strong>de</strong>mocracia, ou então,provavelmente, ao abandono do princípio, o que faria a corte simplesmente substituiro julgamento <strong>de</strong> conveniência do legislador (e a tornaria um second guesser 241 ). Asvirtu<strong>de</strong>s passivas, assim, “toleram <strong>de</strong>svios do princípio” em nome <strong>de</strong> umaacomodação estável das mudanças sociais. 242Essa é, para Bickel, a missão educativa da corte, instituição que cumpre opapel <strong>de</strong> “professor da cidadania” (teacher of the citizenry). 243 Ao evitar <strong>de</strong>cidir, acorte estimula um colóquio (colloquy 244 ) com os outros po<strong>de</strong>res e a socieda<strong>de</strong>. 245Mantém-se <strong>de</strong>ntro da tensão entre princípio e conveniência, mo<strong>de</strong>ra extremos eprevine que a socieda<strong>de</strong> se divida. 246 Esse colóquio ten<strong>de</strong> a gerar uma pressão poração legislativa que, não raro, é mais efetiva que uma or<strong>de</strong>m judicial inflexível, nosmol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um <strong>de</strong>creto. 247 A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>ve ser a exceção; o exercício <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s238 “And the Court’s arguments need not be compulsory in or<strong>de</strong>r to be compelling. Many of the <strong>de</strong>vicesof not doing engage the Court, as I have shown, in colloquies with the political institutions” (Ibid, p.188).239 Ibid, p. 28.240 Ibid, p. 206.241 Ibid, p. 200.242 Ibid, p. 232.243 Ibid, p. 188. Usando as palavras <strong>de</strong> Dean Rostow, Bickel <strong>de</strong>staca o papel da corte como “teachers ina vital national seminar”. E continua: “And such a seminar can do a great <strong>de</strong>al to keep our society frombecoming so riven that no court will be able to save it” (Ibid, p. 24).244 Esse é um termo constante no argumento <strong>de</strong> Bickel, e daí seu lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nas teorias dodiálogo. Cf., p. ex., pp. 70, 143, 179, 180, 187, 196, 216, 231.245 “When the Court, however, stays its hand, and makes clear that it is staying its hand and notlegitimating it, then the political processes are given relatively free play. Such a <strong>de</strong>cision needsrelatively little justification in terms of consistency with <strong>de</strong>mocratic theory. (…) [The Court has<strong>de</strong>veloped an arsenal of] techniques for eliciting answers, since so often they engage the Court in aSocratic colloquy with the other institutions of government and with society as a whole. (…) All thewhile, the issue of principle remains in abeyance and ripens” (Ibid, p. 70-71).246 “It may do neither, and therein lies the secret of its ability to maintain itself in the tension betweenprinciple and expediency” (Ibid, p. 69).247 Ibid, p. 196.112


passivas, a regra, um meio termo entre o judicialismo autoritário e a <strong>de</strong>mocracia. 248 Acorte <strong>de</strong>ve ter sabedoria para <strong>de</strong>ixar o colóquio <strong>de</strong>cantar novos valores, e <strong>de</strong>cidirsomente quando a solução pareça uma <strong>de</strong>corrência natural <strong>de</strong>sse processo. 249 Oprincípio, nesse sentido, é um guia valorativo que se <strong>de</strong>senvolve pelo diálogo, nãopela imposição unilateral. 250 Por meio <strong>de</strong>le, a corte abre a oportunida<strong>de</strong> da “repriselegislativa”. 251Compromissos pragmáticos que não alcançam a meta ótima do princípiopo<strong>de</strong>m ser necessários por um tempo. Fazê-los não reduz a efetivida<strong>de</strong> dos princípios,mas apenas reconhece o grau <strong>de</strong> sua factibilida<strong>de</strong> num dado momento. 252 As virtu<strong>de</strong>spassivas <strong>de</strong>ixam espaço aberto para isso. Como a corte somente po<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir combase em princípio (para que seja vinculante e dotada <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>), a maneira <strong>de</strong>possibilitar soluções <strong>de</strong> compromissos é não <strong>de</strong>cidir. Escapa da armadilha binária daobrigação <strong>de</strong> invalidar uma lei ou legitimá-la. 253 Equilibra-se numa zonaintermediária. Usa <strong>de</strong> uma válvula <strong>de</strong> escape para driblar a obrigação <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir combase em princípio. 254 Pratica uma sabedoria institucional ao <strong>de</strong>ixar não <strong>de</strong>cidido, eviabiliza um gradual exercício <strong>de</strong> “tentativa e erro”. 255A corte permite que questões sejam postas no <strong>de</strong>bate público, e prefere nãorespondê-las, exceto em circunstâncias excepcionais. Se a regra é <strong>de</strong>ixar não <strong>de</strong>cidido,qual o critério para saber quando, enfim, <strong>de</strong>cidir? Essa é uma chave fundamental doargumento. Para Bickel, esse momento se <strong>de</strong>termina por três critérios alternativos:248 Ibid, p. 244.249 “The first wisdom, (…), is that the moment of ultimate judgment need not come either sud<strong>de</strong>nly orhaphazardly. Its timing and circumstances can be controlled. (…) Over time, as a problem is lived with,the Court does not work in isolation to divine the answer that is right. It has the means to elicit partialanswers and reactions from the other institutions, and to try tentative answers itself. When at last theCourt <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>s (…), the answer is likely to be a proposition ‘to which wi<strong>de</strong>spread acceptance mayfairly be attributed’, because in the course of a continuing colloquy with the political institutions andwith the society at large, the Court has shaped and reduced the question, and because it has ren<strong>de</strong>redthe answer familiar, if not obvious” (Ibid, p. 240).250 “Principle may be an universal gui<strong>de</strong>, not an universal constraint, that leeway is provi<strong>de</strong>d toexpediency along the path to, and alongsi<strong>de</strong> the path of, principle, and, finally, that principle is evolvedconversationally nor perfected unilaterally” (Ibid, p. 244).251 Ibid, pp. 217, 221, 223, 230.252 “The effectiveness of principle is not less because we are allowed to admit that we do not live up toit when we don’t” (Ibid, p. 96).253 “This is not to say that the Supreme Court should legitimate them – only that it should leave theirconstitutionality un<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>d” (Ibid, p. 72).254 “More typically, the passive <strong>de</strong>vices of the colloquy prece<strong>de</strong>, and prepare or avoid, the moment ofconstitutional judgment” (Ibid, p. 254).255 Ibid, p. 192.113


quando a corte tem expertise especial no assunto; quando há informação econhecimento confiável; quando seu senso político diz que é necessário. 256 Somente<strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir quando esgotados os recursos <strong>de</strong> promoção do diálogo, quando houverclara necessida<strong>de</strong>. 257 Precisa adivinhar os princípios que, no futuro não distante,ganharão assentimento social. 258 Faz um juízo prospectivo. Tem a obrigação <strong>de</strong>, emalguma medida, acertar, sob pena <strong>de</strong> cair em <strong>de</strong>scrédito.Não se trata <strong>de</strong> um critério formal, quantificável e calculável a priori, mas <strong>de</strong>um faro político, <strong>de</strong> um senso <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong> histórica, um radar para captar o estado<strong>de</strong> espírito da comunida<strong>de</strong>. A corte, nessas situações, está no terreno intangível dojuízo <strong>de</strong> ocasião e <strong>de</strong> medida, do exercício da prudência. Bickel reconhece adificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar esse conceito, dado seu caráter escorregadio. É umasabedoria prática, uma capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecer o momento certo segundo o casoparticular. 259 Diante <strong>de</strong>ssa dificulda<strong>de</strong>, usando as palavras do juiz Frankfurter, Bickelcompara tal habilida<strong>de</strong> à do artista, que precisa <strong>de</strong> um sensor que registre sentimentospara além <strong>de</strong> provas lógicas e quantitativas. A corte opera como um profeta, um lí<strong>de</strong>r<strong>de</strong> opinião que aponta para o futuro. Não é apenas alguém que espelha e registra asopiniões presentes. 260Quando, enfim, escolhe <strong>de</strong>cidir, <strong>de</strong>ve também verificar o quanto, mais umaescolha orientada pelo critério da necessida<strong>de</strong>. Há <strong>de</strong>cisões mais interventivas queoutras e é preciso saber calcular a extensão da <strong>de</strong>cisão a cada momento, <strong>de</strong> acordo256 “The answer cannot be, across the board, yes, we have no principles; let expediency rule (…) It canonly be, yes, in contravention of principle, if necessary (…); The judgment of necessity is pru<strong>de</strong>ntial.The Court sometimes makes bold to un<strong>de</strong>rtake for itself and to cause principle to prevail, usually whensubject matter is well within its experience, as in the administration of criminal law, or when its ownpolitical sense (which can be treacherous) tells it that the necessity has abated, or when it can draw onsome fairly stable body of knowledge to disprove the necessity. Otherwise the Court is capable of onlytentative estimate” (The Least Dangerous Branch, p. 187, ou “Foreword: The Passive Virtues”, p. 77).257 Ibid, p. 189.258 “What is meant, rather, is that the Court should <strong>de</strong>clare as law only such principles as will – in time,but in a rather immediate foreseeable future – gain general assent” (Ibid, p. 239).259 “In one sense, we have thus got no nearer to parsing the inexpressible” (Ibid, p. *).260 “The Court is a lea<strong>de</strong>r of opinion, not a mere register of it, but it must lead opinion, not merelyimpose its own; and – the short of it is – it labors un<strong>de</strong>r the obligation to succeed. (…) the Court mustpronounce only those principles which can gain ‘wi<strong>de</strong>spread acceptance’, that it is at once shaper andprophet of the opinion that will prevail and endure. To be sure, there is still not much help in‘quantitative proof’; it is still a question of ‘antennae’” (Ibid, p. 239).114


com o “continuum do po<strong>de</strong>r judicial”. 261 Os movimentos da corte não <strong>de</strong>vem serrepentinos e bruscos, mas cautelosos, em pequena escala. 262Tudo isso ecoa, certamente, o espírito conservador <strong>de</strong> Edmund Burke, e Bickelreconhece explicitamente essa fonte em outro livro que publicou anos mais tar<strong>de</strong>. 263Ali, <strong>de</strong>senvolve um pouco melhor a conciliação entre sua inclinação conservadora esua <strong>de</strong>fesa da constituição liberal. 264 Rejeita uma corte absolutista dos princípios,convicta ao modo da tradição contratualista francesa. Prefere uma corte burkeana,gradualista, cética, pru<strong>de</strong>nte e realista ao estilo político inglês. A primeira vertente,po<strong>de</strong>ríamos cogitar, apega-se à última palavra. A segunda, ao diálogo.Seu conservadorismo não <strong>de</strong>nota o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> manutenção do status quo, massim o <strong>de</strong> planejamento cauteloso da mudança, ou, nas palavras <strong>de</strong> Burke, “nãoproduzir nada totalmente novo, e não reter nada totalmente obsoleto”. 265 A corte,quando participa do processo <strong>de</strong> mudança, <strong>de</strong>ve operar como uma “bomba-relógio” da<strong>de</strong>mocracia. 266 A pretensão <strong>de</strong> mudanças bruscas fracassa, quanto mais as tentadaspela corte. Deve evitar espasmos e prezar pela continuida<strong>de</strong>. 267 O autor menciona doisexemplos opostos: a <strong>de</strong>cisão trágica do caso Dred Scott, que não usou <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>spassivas para evitar proferir uma <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> princípio que legitimou um regimerepulsivo <strong>de</strong> escravidão (mesmo que a socieda<strong>de</strong> ainda não estivesse madura para a261 “not all constitutional <strong>de</strong>cisions have the same weight, the same reach, the same binding quality; notall encounter with equal <strong>de</strong>gree of shock the countermajoritarian difficulty; some are nearer the passiveend than others” (Ibid, p. 207).262 “The Court’s first obligation is to move cautiously, straining for <strong>de</strong>cisions in small compass, morehesitant to <strong>de</strong>ny principles held by some segments of the society than ready to affirm comprehensiveones for all, (…) and always anxious first to invent compromises and accommodations before <strong>de</strong>claringfirm and unambiguous principles” (The Morality of Consent, p. 25).263 The Morality of Consent.264 Esse tema foi discutido por John Moeller, que concluiu: “Politics is the place where Burkeanconservatism and Madisonian liberalism can coexist” (“Alexan<strong>de</strong>r M. Bickel: Toward a Theory ofPolitics”).265 “when it does take upon itself to strike a balance of values, it does so with an ear to the promptingsof the past and an eye strained to a vision of the future much more than with close regard to the present.Burke’s <strong>de</strong>scription of an evolution meets the case: to produce nothing wholly new and retain nothingwholly obsolete” (The Morality of Consent, p. 25).266 “To the extent that they are instruments of <strong>de</strong>cisive change, Justices are time bombs, not warheadsthat explo<strong>de</strong> on impact” (The Least Dangerous Branch, p. 31).267 “But it is the function of the Court – in the sphere of its competence – to maintain the continuity inthe midst of change. Change should be a process of growth. (…) Change should not come about inviolent spasms. Government un<strong>de</strong>r law is a continuum, not a series of jerky fresh <strong>de</strong>partures. And sothe past is relevant. (…) control the rate of change in society. Moreover, the recor<strong>de</strong>d past is, of course,experience; it is a laboratory in which i<strong>de</strong>as and principles are tested” (Ibid, p. 108).115


total integração, que começou com o caso Brown); e a pena <strong>de</strong> morte, que ainda nãofoi extinta nos EUA, mas que po<strong>de</strong>rá ser no momento a<strong>de</strong>quado. 268Bickel vê o direito e a política como um processo em fluxo contínuo, nãocomo um conjunto <strong>de</strong> regras estáticas que vinculam a todos rigidamente no <strong>de</strong>correrdo tempo. Está preocupado com a acomodação que evite o choque <strong>de</strong> extremos, nãocom a teoria ou a i<strong>de</strong>ologia. 269 Uma corte que assuma a tarefa <strong>de</strong> promover oprogresso sozinha não é uma boa saída. Os efeitos <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>vem sersentidos no agregado, ao longo do tempo. 270Em síntese, o que procurei expor não foi só o Bickel preocupado com adificulda<strong>de</strong> contramajoritária, mas com uma corte que estimule o diálogo. A corte,para ele, não é o animal político que inspira as correntes dos Critical Legal Studies ouda ciência política. Não é um ser puramente i<strong>de</strong>ológico. É político porque precisaexercer prudência, calcular como sua <strong>de</strong>cisão será recebida pela opinião pública efazer um prognóstico.O objetivo <strong>de</strong> seu principal livro é contribuir para o entendimento das virtu<strong>de</strong>spassivas e para uma administração mais <strong>de</strong>liberada e criteriosa <strong>de</strong>las. As virtu<strong>de</strong>spassivas são, para ele, prática inevitável <strong>de</strong> uma corte duradoura. Se a corte quisergovernar tudo que tocar, tornar-se-ia um “reino platônico contrário à moralida<strong>de</strong> doauto-governo”. 271 Saber se, quando, e quanto <strong>de</strong>cidir é um problema não resolvido.Bickel aponta para isso e inspira uma revisita à questão. Soma à pergunta “éconstitucional?” a pergunta “é o momento certo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir?” ou “há razões paraesperar?”. Ainda que a proposta das virtu<strong>de</strong>s passivas possa ser insatisfatória, pareceabrir uma janela frutífera e necessária para enten<strong>de</strong>r um papel da corte que é, nomínimo, mais colorido do que convencionalmente se acredita.268 “But only a shortsighted and rather imprisoned lawyer would maintain that capital punishment cannever be <strong>de</strong>clared unconstitutional” (Ibid, p. 241).269 Ibid, pp. 10 e 19.270 “We wish it to endure (…) because, asi<strong>de</strong> from its forays into broad social policy, the Courtdischarges a much narrower, but still reasoned and principled, law-making function. It makes lawinterstitially, with effects that may be far-reaching and wi<strong>de</strong>ly felt, if they are at all, only in theaggregate, over time” (The Supreme Court and the I<strong>de</strong>a of Progress, p. 176).271 The Least Dangerous Branch, p. 199.116


A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> esperar é feita por uma pon<strong>de</strong>ração que está fora da análise <strong>de</strong>estrita constitucionalida<strong>de</strong>. Envolve a percepção do momento oportuno e maduro paraa mudança <strong>de</strong> rota do projeto constitucional. Difícil sustentar que ela não integre asvariáveis <strong>de</strong>cisórias da revisão judicial. O <strong>de</strong>safio é saber como lidar com essa técnicaque, quando utilizada <strong>de</strong> maneira dissimulada, impe<strong>de</strong> o <strong>de</strong>bate, o controle e a crítica,e permanece no conforto das escolhas subterrâneas.A participação da corte na política é mais sutil e imaginativa do que o sensocomum admite. Não se trata somente <strong>de</strong> aplicar o direito ou proteger a socieda<strong>de</strong>contra suas fraquezas e vicissitu<strong>de</strong>s, mas também <strong>de</strong> criativamente li<strong>de</strong>rar a agendapública sobre temas amortecidos e dormentes, apontar horizontes e provocar reações.Nada disso é captado por teorias da interpretação, que não nos permitem ler a rica teiaestratégica em que a corte está enredada. Bickel traz clareza a isso, e mostra que aúltima palavra é “uma questão <strong>de</strong> grau”. 272 Segundo ele, a “expectativa <strong>de</strong> vida” <strong>de</strong>um princípio não costuma ser maior do que uma ou duas gerações. Portanto, <strong>de</strong>cisõesda corte sempre serão provisórias. 273O mais próximo <strong>de</strong>ssa percepção que teorias da interpretação constitucionalconseguiram chegar foi na noção <strong>de</strong> “living constitution”, <strong>de</strong> “mutaçãoconstitucional”, <strong>de</strong> que o texto se adapta ao tempo e está sujeito a <strong>de</strong>senvolvimentos emudanças ao longo da história. É importante enten<strong>de</strong>r e conceituar esses diferentespapéis, em vez <strong>de</strong> jogá-los na vala comum, genérica e indistinta (em geral, pejorativae resignada) <strong>de</strong> que “a corte é política”.Para Bickel, a corte é, com todas as qualificações que o afastam <strong>de</strong> Dworkin,um fórum <strong>de</strong> princípio. Mas, antes, tem que exercer sabedoria prática por meio dasvirtu<strong>de</strong>s passivas. Não confia na legitimida<strong>de</strong> automática das gran<strong>de</strong>s ousadias <strong>de</strong>ativismo judicial, que avocam o leme da história e <strong>de</strong>finem a direção do progresso. Oenraizamento <strong>de</strong> um princípio na socieda<strong>de</strong> não é tarefa da corte sozinha. Bickel quer272 “Finality is a matter of <strong>de</strong>gree” (Ibid, p. 117).273 “And so what one means by the ultimate, final judgment of the Court is quite frequently a judgmentultimate and final for a generation or two” (Ibid, p. 244).117


saber como a corte, sem uma atitu<strong>de</strong> imperial e monopolística, po<strong>de</strong> insuflar napolítica a dimensão <strong>de</strong> princípio, da visão <strong>de</strong> longo prazo. 274Po<strong>de</strong> parecer que a posição <strong>de</strong>fendida por ele culmina numa corte tímida, <strong>de</strong>fachada, mero coadjuvante. O ponto <strong>de</strong>le, porém, é mais preciso. Quer saber como,sem <strong>de</strong>cidir, a corte po<strong>de</strong> fazer o legislador e a socieda<strong>de</strong> se movimentarem eacomodarem seus impulsos por mudança. Tudo isso, através da arte do compromisso.Clama pela percepção da complexida<strong>de</strong> do processo político, que po<strong>de</strong> tornar gran<strong>de</strong>s<strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> princípio inócuas na prática (mesmo que, no mérito, concordássemoscom elas). A missão da corte não é encontrar a “resposta certa”, mas a resposta quemelhor consiga li<strong>de</strong>rar a socieda<strong>de</strong> (caso não possa exercer as virtu<strong>de</strong>s passivas eincentivar o colóquio). A técnica <strong>de</strong>cisória que ele propõe requer a modulagemconsciente das virtu<strong>de</strong>s passivas – exercício que <strong>de</strong>manda imaginação, pois essastécnicas resistem à codificação.Bickel não está encapsulado na perspectiva interna da revisão judicial,pensando apenas em como <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> princípio <strong>de</strong>vem ser tomadas, mas como as<strong>de</strong>cisões judiciais integram o <strong>de</strong>safio complicado da efetivida<strong>de</strong> das <strong>de</strong>cisõespolíticas. Ele está discutindo a arte <strong>de</strong> governar e o lugar da corte na tarefa <strong>de</strong> geriruma comunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> mantê-la costurada. Tem o mérito <strong>de</strong> colocar a discussão sobrelegitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática num quadro mais sofisticado dos tipos variados <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisãoque a corte toma.Anthony Kronman, entre outros, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma reavalição do papel atual daprudência no pensamento político, e consi<strong>de</strong>ra subestimada a importância <strong>de</strong> Bickel.A prudência, virtu<strong>de</strong> fora <strong>de</strong> moda, não <strong>de</strong>veria ser <strong>de</strong>scartada como obscurantista enecessariamente conservadora. A pessoa pru<strong>de</strong>nte, para ele, resiste à tentação dosimperativos morais, tolera acomodações e a baixa velocida<strong>de</strong> das mudanças, valorizao consentimento. Essa disposição seria também virtuosa para instituições políticas. 275274 “Judicial review brings principle to bear on the operations of government” (Ibid, p. 199).275 Kronman, numa passagem elucidativa: “A pru<strong>de</strong>nt judgment or political program is, above all, onethat takes into account the complexity of its human and institutional setting” (“Alexan<strong>de</strong>r Bickel’sPhilosophy of Pru<strong>de</strong>nce”, p. 1569).118


Certamente, há muitas perguntas que Bickel não respon<strong>de</strong>: Como provocar ocolóquio se as virtu<strong>de</strong>s passivas são manobras para permanecer em silêncio? Éplausível a expectativa <strong>de</strong> que, ao não <strong>de</strong>cidir, o tema continue na agenda pública?Qual o impacto <strong>de</strong>ssa variável pru<strong>de</strong>ncial <strong>de</strong>ntro do raciocínio jurídico? Em quemedida as virtu<strong>de</strong>s passivas são legítimas? Cass Sunstein, no próximo tópico, ajuda a<strong>de</strong>senvolver algumas <strong>de</strong>ssas questões.2.1.2 Cass Sunstein e o minimalismo: a corte quando navega mares<strong>de</strong>sconhecidosCass Sunstein é o autor que conferiu às idéias <strong>de</strong> Bickel um contorno teóricomais refinado. Batizou sua teoria da revisão judicial <strong>de</strong> minimalismo: a prática <strong>de</strong>dizer não mais do que o necessário para justificar o resultado, e <strong>de</strong>ixar o máximopossível não <strong>de</strong>cidido. 276 Essa teoria, em regra, evita o maximalismo: a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>cidir, em todo caso, tudo o que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>cidido. Ao contrário <strong>de</strong> Bickel, queinvestiga “as técnicas da não <strong>de</strong>cisão”, Sunstein está interessado em explorar umafaceta mais produtiva das virtu<strong>de</strong>s passivas. 277 Bickel prioriza um exame da corte nosmomentos em que ela “<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> não <strong>de</strong>cidir”. Sunstein prefere olhar para o momentoem que a corte <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> pouco. Diferencia-se, também, daqueles que<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m as “virtu<strong>de</strong>s ativas”, uma corte que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> muito, conforme verificaremosno tópico seguinte.Sunstein ameniza um ponto que parece problemático em Bickel. Para esteautor, a corte <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir lançando mão <strong>de</strong> ferramentas processuaisdiscricionárias e difíceis <strong>de</strong> serem controladas racional e publicamente. Para Sunstein,a corte <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir o mínimo possível – exercício que ainda está <strong>de</strong>ntro do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>invalidar ou legitimar com base em princípio. A fundamentação <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>cisão, porém,é mo<strong>de</strong>sta. Ele <strong>de</strong>sdobra ainda mais as nuances e diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhas <strong>de</strong>ntro daadjudicação constitucional, e explora a hipótese que parece uma heresia para o estado<strong>de</strong> direito pensado em termos mecânicos e binários: a proibição do non liquet, da<strong>de</strong>cisão que não soluciona o caso.276 One Case at a Time, p. 3.277 “My suggestion is that the notion of the ‘passive virtues’ can be analyzed in a more productive wayif we see that notion as part of judicial minimalism and as an effort to increase space for <strong>de</strong>mocraticchoice and to reduce the costs of <strong>de</strong>cision and the costs of error” (One Case at a Time, p. 40).119


Não se ouve tão obviamente, em Sunstein, os ecos do conservadorismoburkeano e sua resistência a mudanças abruptas em nome <strong>de</strong> acomodações econcessões ao compromisso. Está preocupado com o risco da <strong>de</strong>cisão judicial errada,e também com a <strong>de</strong>cisão certa que, por ser muito ambiciosa, gera efeitoscontraproducentes. Inscreve sua teoria no “princípio liberal <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>” 278 e sepreocupa com a <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>liberativa, i<strong>de</strong>al com o qual, segundo ele, a constituiçãoamericana teria se comprometido. Nas suas palavras, esse projeto político quisconstruir uma “república das razões”, em que todo ato <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> é acompanhado<strong>de</strong> justificativas. 279No lugar das virtu<strong>de</strong>s passivas, Sunstein cria um vocabulário novo: “<strong>de</strong>ixarcoisas não <strong>de</strong>cididas” (leaving things un<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>d), “acordos teóricos incompletos”(incompletely theorized agreements) e “uso construtivo do silêncio” são as expressõesque sintetizam o minimalismo. Percebe que, ao menos na Suprema Corte americana,juízes freqüentemente <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m pouco e fazem escolhas <strong>de</strong>liberadas sobre o que<strong>de</strong>veria permanecer não dito. Não adotam e nem se comprometem com uma teoriaunitária da interpretação. “Em vez <strong>de</strong> adotar teorias, eles <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m casos”. 280 Ominimalismo é uma forma <strong>de</strong> auto-contenção, mas não se confun<strong>de</strong> com as outrasmodalida<strong>de</strong>s existentes. Rejeita a auto-contenção como regra geral ou o apreçoirrestrito ao majoritarismo, que são crenças maximalistas. Os minimalistas “preferem<strong>de</strong>ixar questões <strong>fundamentais</strong> não <strong>de</strong>cididas. Esta é a sua característica maisdistinta”. 281Minimalistas evitam raciocínios <strong>de</strong>dutivos. Preferem examinar asparticularida<strong>de</strong>s do caso e pensar por meio <strong>de</strong> analogias e casos hipotéticos. 282 Sãoconscientes <strong>de</strong> suas limitações e atentos às conseqüências imprevisíveis <strong>de</strong> suas<strong>de</strong>cisões. A principal qualida<strong>de</strong> da prática minimalista seria a redução do ônus da<strong>de</strong>cisão judicial, pois não força juízes a concordarem com formulações muito gerais.Tornaria, por isso, os erros judiciais menos freqüentes e danosos. O juiz minimalista278 “I am thus suggesting a form of minimalism that is self-consciously connected with the liberalprinciple of legitimacy” (“Foreword: Leaving Things Un<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>d”, p. 8).279 The Partial Constitution, p. 17.280 One Case at a Time, p. 9281 Ibid, p. x.282 Ibid, p. 9.120


não tenta <strong>de</strong>cidir <strong>de</strong> uma vez por todas. A <strong>de</strong>cisão minimalista não reduz o espectro <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong>s para discussões e <strong>de</strong>cisões posteriores. Assim, favorece novos <strong>de</strong>batese enriquece a <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>liberativa. 283 Quando a corte está lidando com umaquestão <strong>de</strong> alta complexida<strong>de</strong> (pela falta <strong>de</strong> informação, pelas circunstânciascambiantes ou incerteza moral), na qual a socieda<strong>de</strong> se encontra dividida, esta seria amelhor estratégia judicial.O minimalismo tem componentes formais e substantivos. Do ponto <strong>de</strong> vistaformal, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>ve ter duas qualida<strong>de</strong>s: <strong>de</strong>ixar questões não <strong>de</strong>cididas e perseguiracordos teóricos incompletos. Em outros termos, o minimalista consistente <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><strong>de</strong>cisões estreitas em vez <strong>de</strong> largas, rasas em vez <strong>de</strong> profundas. Explique-se.Decisões judiciais po<strong>de</strong>m ser pensadas em duas dimensões. A dimensão dalargueza diz respeito ao número <strong>de</strong> casos atingidos pela <strong>de</strong>cisão. Numa <strong>de</strong>cisãoestreita, nesse sentido, o juiz esforça-se por <strong>de</strong>cidir somente o caso que tem diante <strong>de</strong>si, e por minimizar os reflexos jurídicos sobre outros casos. A dimensão daprofundida<strong>de</strong>, por sua vez, diz respeito às variações no nível <strong>de</strong> abstração. Num“acordo teórico incompleto”, juízes buscam concordar com uma solução concreta semprecisar ascen<strong>de</strong>r no nível das razões utilizadas. Trata-se <strong>de</strong> uma técnica <strong>de</strong> reduçãodo <strong>de</strong>sacordo. Às vezes, a redução do <strong>de</strong>sacordo funciona da maneira inversa. Numprocesso constituinte, por exemplo, é mais fácil conquistar o acordo em relação aprincípios abstratos do que resolver <strong>de</strong>talhes concretos da constituição. 284 Essa seria atécnica da “abstração não completamente especificada”. Portanto, em certas situações,pessoas lutam no plano abstrato e convergem no concreto. Em outras, convergem nosgran<strong>de</strong>s princípios, mas divergem na sua aplicação.Acordos e <strong>de</strong>sacordos po<strong>de</strong>m ter muitas virtu<strong>de</strong>s, mas também riscos. 285Ambos po<strong>de</strong>m ser sinal <strong>de</strong> respeito mútuo, mas, eventualmente, sinais autoritários283 Ibid, p. 4.284 [Many constitution-making processes] “succee<strong>de</strong>d by virtue of incompletely theorized agreementsin the form of incompletely specified abstractions” (Ibid, p. 12).285 “Incompletely theorized agreements have many virtues; but their virtues are partial. Stability, forexample, is brought about by such agreements, and stability is usually <strong>de</strong>sirable; but a constitutionalsystem that is stable and unjust should probably be ma<strong>de</strong> less stable. (…) In law, as in politics,disagreement can be a productive and creative force, revealing error, showing gaps, moving discussionand results in good directions. (…) Agreements may be a product of coercion, subtle or not, or of afailure of imagination” (“Constitutional Agreements Without Constitutional Theories”).121


também. Qual a combinação ótima <strong>de</strong> acordo e <strong>de</strong>sacordo numa socieda<strong>de</strong><strong>de</strong>mocrática? Quanto precisa do primeiro para viabilizar a convivência? Quanto dosegundo para permitir a criativida<strong>de</strong>, a busca <strong>de</strong> soluções originais, o controle dopo<strong>de</strong>r? Para Sunstein, esse é um problema que só po<strong>de</strong> ser resolvidopragmaticamente.Ambas as técnicas para redução <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordos (elevar e reduzir a abstração)são indispensáveis para a constituição <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, e certamente para amanutenção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> pluralista. 286 Para Sunstein, elas são um sinal <strong>de</strong>respeito mútuo. 287 Nos casos judiciais, o mais importante é conquistar a primeirameta. 288 O minimalismo judicial, portanto, promove um “objetivo crucial do sistemapolítico: torna possível que pessoas concor<strong>de</strong>m quando o acordo é necessário, e torna<strong>de</strong>snecessário que pessoas concor<strong>de</strong>m quando o acordo é impossível”. 289Obviamente, a avaliação <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões judiciais como largas ou estreitas,profundas ou rasas, recorre a medidas gradualistas. Por mais que tente ser estreita,uma <strong>de</strong>cisão judicial racional sempre transcen<strong>de</strong> o caso concreto em algum grau. Oesforço do juiz é por minimizar essa medida, sem <strong>de</strong>srespeitar o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> proferir uma<strong>de</strong>cisão fundamentada. Pensando num contínuo, Sunstein exemplifica essas variações:num extremo, está a <strong>de</strong>cisão bruta, <strong>de</strong>scolada da pronúncia <strong>de</strong> razões. No outro, está a<strong>de</strong>cisão que preenche todo o espaço <strong>de</strong> teorização sobre o assunto. 290 O minimalismoe o maximalismo com os quais Sunstein lida estão na zona intermediária. Valeobservar que essas dimensões também não são estáticas, mas se cruzam: é possívelencontrar <strong>de</strong>cisões profundas e estreitas, rasas e largas, e assim por diante. 291Do ponto <strong>de</strong> vista substantivo, o minimalismo precisa proteger algunselementos constitucionais essenciais, sem os quais a prática minimalista não encontra286 “A key task for a legal system is to enable people who disagree on first principles to converge onoutcomes in particular cases. Incompletely theorized agreements help to produce judgments on relativeparticulars amidst conflict on relative abstractions. (…) But judges must <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> many cases quickly;they have limited time and capacities” (“Incompletely Theorized Agreements”).287 Ibid, p. 14.288 “Agreements on particulars and on unambitious opinions are the ordinary stuff of constitutionallaw” (Ibid, p. 13).289 One Case at a Time, p. 14.290 One Case at a Time, p. 10.291 Ibid, p. 16.122


azão <strong>de</strong> ser. Esse coração substantivo não é estático, e po<strong>de</strong> variar com a história.Para a socieda<strong>de</strong> americana, no presente, este núcleo consensual correspon<strong>de</strong> aoconjunto <strong>de</strong> direitos <strong>de</strong>mocráticos básicos previstos na constituição. 292 Nesse ponto doargumento, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>sconfiar que Sunstein não está propriamente <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo ominimalismo, mas selecionando temas em que a <strong>de</strong>cisão judicial <strong>de</strong>ve ser larga eprofunda. Faz uma concessão ao maximalismo, don<strong>de</strong> se percebe que sua <strong>de</strong>fesa dominimalismo é relativa, não absoluta. O minimalismo é mais a<strong>de</strong>quado em certashipóteses. O maximalismo, em outras. Quais seriam elas?Sunstein oferece alguns parâmetros abstratos, a serem conferidos caso a caso.Recomenda a atuação maximalista quando o juiz tenha (i) “consi<strong>de</strong>rável confiança nomérito da solução”, quando a (ii) “solução possa reduzir o custo da incerteza” paralitigantes futuros, quando (iii) o planejamento for importante, e quando (iv) lidar comas pré-condições da <strong>de</strong>mocracia ou criar incentivos que tornem mais provável aprestação <strong>de</strong> contas das instituições eleitas. O minimalismo, por sua vez, seria maisa<strong>de</strong>quado quando o caso envolver (i) gran<strong>de</strong> incerteza factual ou moral, quando uma(ii) solução tiver o risco <strong>de</strong> confundir casos futuros, quando a (iii) necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>planejamento não for premente e quando as (iv) pré-condições da <strong>de</strong>mocracia nãoestiverem em jogo. Portanto, Sunstein <strong>de</strong>ixa claro que “a <strong>de</strong>fesa do minimalismo nãoé separável <strong>de</strong> uma avaliação das controvérsias substantivas subjacentes”. 293Aparentemente, são orientações triviais. Mas, em coerência com a teoria <strong>de</strong>Sunstein, formular orientações mais precisas po<strong>de</strong> trair o seu próprio espíritoparticularista, caso a caso. Por essa razão, seu livro prefere argumentar por meio <strong>de</strong>exemplos concretos <strong>de</strong> cada circunstância. 294 O argumento do autor é flexível osuficiente, nesse sentido, para acomodar o minimalismo e o maximalismo. As duasestratégias são legítimas e a<strong>de</strong>quadas, a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da avaliação do contexto. Não se292 Ibid, p. 63.293 One Case at a Time, p. 57.294 É interessante, p. ex., a comparação, sob o ponto <strong>de</strong> vista dos efeitos, entre os casos Dred Scott,Brown e Roe. Correspon<strong>de</strong>m, respectivamente, segundo Sunstein, ao caso mais vilificado, ao maiscelebrado e ao mais contestado da história constitucional americana, e são episódios que oferecem boaslições sob o ponto <strong>de</strong> vista do minimalismo (Ibid, p. 36).123


po<strong>de</strong> apoiar ou rejeitar um ou outro em abstrato e sem maiores qualificações. 295 Essaressalva é feita várias vezes em seu livro.Há, contudo, uma presunção em favor do minimalismo. As exceções dizemrespeito ao mínimo substantivo que o minimalismo pressupõe, <strong>de</strong> modo que ele façasentido como técnica promotora da <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>liberativa. Decisões judiciais, emgeral, <strong>de</strong>vem ser “catalíticas em vez <strong>de</strong> preclusivas” <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberações posteriores, e,para tanto, algumas pré-condições precisam estar preservadas. 296 Afora essascondições, a corte está navegando “mar <strong>de</strong>sconhecido”. 297 Po<strong>de</strong> preferir silenciar, sejaporque não tem segurança <strong>de</strong> que está certa, seja porque teme a reação pública. 298 Omaximalismo também ambiciona promover a <strong>de</strong>mocracia, mas o minimalismo temmaior <strong>de</strong>sconfiança da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o juiz fazê-lo. 299 A escolha entre um e outro,nesse sentido, necessita <strong>de</strong> uma avaliação comparativa <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> institucional. 300Entre um e outro há oscilações <strong>de</strong> grau, não <strong>de</strong> tipo. Ambos estão mirando odiálogo e a <strong>de</strong>mocracia. Um, por meio <strong>de</strong> uma participação judicial mais substantiva.O outro, por meio <strong>de</strong> provocações e pelo “uso construtivo do silêncio”. Este prefere<strong>de</strong>volver o problema, levantar perguntas, exigir clareza das <strong>de</strong>finições ambíguas dolegislador etc. 301295 Como sugere a pergunta rígida <strong>de</strong> Michael Heise: “Specifically, will active, robust courtparticipation enhance the <strong>de</strong>liberative processes and thereby advance <strong>de</strong>mocratic principles? Or, incontrast, will active court participation ero<strong>de</strong> or supplant the constitutional duties allocated to theexecutive or legislative branches?” A provável resposta <strong>de</strong> Sunstein seria: “Depen<strong>de</strong>” (cf. “PreliminaryThoughts on the Virtues of Passive Dialogue”, p. 84).296 “For this reason courts should usually attempt to issue rulings that leave things un<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>d and that,if possible, are catalytic rather than preclusive. They should indulge presumption in favor ofminimalism” (One Case at a Time, p. 5-6).297 “Like a sailor on an unfamiliar sea (…) a court may take small, reversible steps, allowing itself toaccommodate unexpected results” (One Case at a Time, p. 259).298 Ibid, p. 23299 “Courts know that they may be wrong, and they know too that even if they are right, a broad, earlyruling may have unfortunate systemic effects. It may prevent the kind of evolution, adaptation, andargumentative give-and-take that tend to accompany lasting social reform” (One Case at a Time, p.26).300 “These points show that no <strong>de</strong>fense of minimalism should be unqualified. Sometimes minimalism isa blun<strong>de</strong>r; sometimes it creates unfairness. Whether minimalism makes sense cannot be <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>d in theabstract; everything <strong>de</strong>pends on context, prominently including assessments of comparativeinstitutional competence” (Ibid, p. 262).301 Ibid, p. 27 (lista <strong>de</strong> técnicas minimalistas promotoras da <strong>de</strong>mocracia pois forçam o legislador a<strong>de</strong>liberar).124


Sunstein reflete sobre o impacto <strong>de</strong> cada tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão na <strong>de</strong>liberação<strong>de</strong>mocrática. Uma validação maximalista dá um claro sinal para os outros po<strong>de</strong>res,mas não se <strong>de</strong>ve celebrá-la do ponto <strong>de</strong> vista da <strong>de</strong>liberação. Uma invalidaçãomaximalista é, em regra, a mais prejudicial. De outro lado, uma validação minimalista<strong>de</strong>ixa questões em aberto, mas não estimula tanta continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa.Finalmente, a hipótese sobre a qual Sunstein mais se <strong>de</strong>bruça: a invalidaçãominimalista tem a maior potência para <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong>bates ricos. 302O minimalismo po<strong>de</strong> causar certa repulsa à sensibilida<strong>de</strong> jurídica <strong>de</strong> alguns. Areação mais óbvia contra um juiz que se esforça por limitar a largueza e profundida<strong>de</strong>das <strong>de</strong>cisões judiciais é que isso vai <strong>de</strong> encontro aos valores básicos do estado <strong>de</strong>direito: certeza, segurança, máxima capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> planejamento etc. 303 O ápice <strong>de</strong>ssasqualida<strong>de</strong>s é conquistado por <strong>de</strong>cisões largas e profundas. Sunstein escapa <strong>de</strong>ssaobjeção ao admitir que, nas áreas em que tal previsibilida<strong>de</strong> for fundamental (comocontratos e proprieda<strong>de</strong>, ele exemplifica), a corte po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser maximalista. 304 Masseu ponto é mostrar que, para uma <strong>de</strong>mocracia, é também fundamental que a corte<strong>de</strong>ixe coisas não <strong>de</strong>cididas. Nem sempre há tanta razão para celebrar as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>uma <strong>de</strong>cisão judicial moralmente grandiosa. Com freqüência, do ponto <strong>de</strong> vista moral,“o insulamento em relação às pressões majoritárias é o problema, não a solução”. Nãose trata <strong>de</strong> abandonar o heroísmo moral da corte. “Ao seu próprio modo discreto, ominimalismo po<strong>de</strong> ser heróico também”. 3052.2 Virtu<strong>de</strong>s ativas2.2.1 Uma segunda chance ao legislador: a corte como conselheira302 “In such cases, courts attempt to promote what I have suggested are the two goals of a <strong>de</strong>liberative<strong>de</strong>mocracy: political accountability and reason-giving” (Ibid, p. 28).303 “Here there is an argument for width as a judicial virtue. It is a virtue because it promotes rule oflaw values, by limiting judicial discretion and improving predictability. But it is also a <strong>de</strong>mocraticvirtue, because it creates a reliable backdrop for use by citizens and representatives” (One Case at aTime, p. 22).304 “If a court has reason for confi<strong>de</strong>nce about the theoretical foundations of some area of law, it hasearned the right to <strong>de</strong>pth; I have suggested that this is now true for the area of sex equality. When thereis a great need for predictability, and good reason for confi<strong>de</strong>nce that an a<strong>de</strong>quate rule can be advised,width is entirely appropriate and perhaps indispensable; consi<strong>de</strong>r property and contract law” (Ibid, p.263).305 “Testing minimalism: a reply”, p. 128.125


Bickel e Sunstein são hoje as duas referências canônicas da <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> umacorte promotora do diálogo por meio <strong>de</strong> uma ação pru<strong>de</strong>nte e minimalista. Algunsautores mais recentes, contudo, exploram a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a corte buscar o mesmoobjetivo adotando estratégia oposta: em vez <strong>de</strong> silenciar, a corte aconselha e mandarecados por meio <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões.Katyal é o autor que sistematizou concretamente, num longo artigo, essa via<strong>de</strong> ação. Aconselhamento consiste no ato <strong>de</strong> recomendar, mas não <strong>de</strong> impor, um rumo<strong>de</strong>cisório específico a outro po<strong>de</strong>r. 306 Segundo ele, sua tentativa é dar continuida<strong>de</strong> “auma história contada, primeiramente, por Bickel”. Este teria tido o mérito <strong>de</strong> mostrarque a corte tem uma saída intermediária entre validar e invalidar, e transcen<strong>de</strong>u aopção dicotômica. Sunstein, a partir daí, <strong>de</strong>senvolveu essa idéia e construiu formas <strong>de</strong>“silêncio jurispru<strong>de</strong>ncial”.Para Katyal, todavia, o silêncio e a inação não são as únicas alternativas. Acorte, nas suas palavras, po<strong>de</strong> ser mais “proativa”. Há um quarto po<strong>de</strong>r escondido nosinterstícios dos outros três. Especificamente, quando juízes atuam comoconselheiros. 307 A corte po<strong>de</strong> aconselhar quando valida, quando invalida e quando usadas virtu<strong>de</strong>s passivas. O aconselhamento seria uma “adaptação natural” num contextoem que juízes temem ter sua legitimida<strong>de</strong> questionada em razão <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões muitoamplas e interventivas.Para evitar a interferência, portanto, juízes tomam <strong>de</strong>cisões estreitas, masadicionam a elas, por meio <strong>de</strong> obiter dicta, conselhos <strong>de</strong> maior amplitu<strong>de</strong>. Como oconselho é veiculado pelos obiter dicta da <strong>de</strong>cisão, e não pela sua ratio, tem maiorflexibilida<strong>de</strong> e não é vinculante. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> propiciar, porém, algumaprevisibilida<strong>de</strong> e direção, pois é dada ex ante. Essa seria sua principal vantagem em306 “Advicegiving occurs when judges recommend, but do not mandate, a particular course of actionbased on a rule or principle in a judicial case or controversy” (Neal Kumar Katyal, “Justices asAdvicegivers”, p. 1710).307 Ibid, p. 1712-1714.126


elação ao minimalismo. 308<strong>de</strong>mocracia e a adaptabilida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>cisão judicial. 309Seria uma técnica mais efetiva para promover aJuízes, <strong>de</strong> forma implícita ou explícita, freqüentemente fornecem conselhosem suas <strong>de</strong>cisões. Trata-se <strong>de</strong> uma prática difícil <strong>de</strong> ser eliminada da argumentaçãojudicial (exceto pela absoluta disciplina minimalista). Em gran<strong>de</strong> parte das <strong>de</strong>cisões,<strong>de</strong> forma mais ou menos direta, é possível i<strong>de</strong>ntificar quais alternativas legislativas acorte aceitaria. Caso o conselho não seja permitido, acabará, provavelmente, sendosub-reptício no texto da <strong>de</strong>cisão, longe do controle público. Uma tradição aberta <strong>de</strong>aconselhamento, segundo Katyal, minimizaria a chance <strong>de</strong> trocas <strong>de</strong> bastidores,reforçaria a legitimida<strong>de</strong> da corte e encorajaria a honestida<strong>de</strong> judicial (judicialcandor). 310Katyal organiza uma tipologia <strong>de</strong> conselhos e <strong>de</strong>screve <strong>de</strong>talhadamente oobjetivo e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um. 311 Seu projeto estaria na esteira da recuperação <strong>de</strong>uma “tradição <strong>de</strong> cooperação e sinergia entre po<strong>de</strong>res”, que rompe com o mo<strong>de</strong>loadversarial. 312 Por meio do aconselhamento, a corte cria condições para que ospo<strong>de</strong>res conversem produtivamente, e evita uma postura que oscila entre a hostilida<strong>de</strong>ou a pura <strong>de</strong>ferência. 313 Com propósito semelhante, mas <strong>de</strong> modo menos elaborado,Erik Luna propõe que a corte se utilize <strong>de</strong> técnicas menos agressivas que encorajem aresposta legislativa pós-invalidação judicial. De forma genérica, atribui à corte opapel <strong>de</strong> cartógrafo: <strong>de</strong> mapear as alternativas compatíveis com a constituição que olegislador tem (constitutional roadmaps). 314 - 315 Essa varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong>cisórias308 “Advicegiving can attain minimalism’s advantage of preserving legislative flexibility whilesimultaneously tempering minimalism’s dangerous ten<strong>de</strong>ncy to reduce predictability and guidance”(Ibid, p. 1716).309 “The combination of ‘narrow-holding + advicegiving dicta” enjoys a natural advantage over broadholdings in terms of <strong>de</strong>mocratic self-rule, flexibility, popular accountability, and adaptability” (Ibid, p.1711).310 Ibid, p. 1821.311Os oito principais tipos seriam: 1) Clarificação; 2) Auto-alienação; 3) Personificação; 4)Exemplificação; 5) Demarcação; 6) Prescrição; 7) Educação; 8) Moralização (Ibid, p. 1717-1718). Cf.também o diagrama da p. 1721, mostrando graficamente o espaço intersticial que as técnicas <strong>de</strong>aconselhamento ocupam frente às três faculda<strong>de</strong>s da corte apontadas por Bickel. Por fim, na p. 1722,há uma tabela que sistematiza e dá exemplos da prática <strong>de</strong>ssas oito técnicas.312 Ibid, p. 1822.313 “Instead of alternating between hostility and <strong>de</strong>ference, courts should self-consciously set out towork in partnership with other branches and other governments” (Ibid, p. 1824).314 Erik Luna, “Constitutional Roadmaps”, p. 1127-1128.315 Guido Calabresi, <strong>de</strong> forma menos ambiciosa que os outros dois, sugere estratégias pelas quais acorte remete o caso <strong>de</strong> volta para uma reconsi<strong>de</strong>ração (second-look) do legislador. Assim, a corte cria127


que permitem ao tribunal intervenções mais “suaves” no processo legislativo não sãoexclusivida<strong>de</strong> da jurisprudência ou da teoria constitucional americanas. 316 O princípioda proporcionalida<strong>de</strong> é um bom exemplo <strong>de</strong> prática que transcen<strong>de</strong> uma únicajurisdição nacional, como se vê no tópico seguinte.2.2.2 A técnica da proporcionalida<strong>de</strong>Para encerrar o quadro das virtu<strong>de</strong>s ativas, vale a menção à técnica daproporcionalida<strong>de</strong>. Não é comum tratá-la no bojo das teorizações sobre diálogo.Parece-se mais com um instrumento <strong>de</strong> clara supremacia judicial. Mesmo que, <strong>de</strong>fato, confira gran<strong>de</strong> margem <strong>de</strong> atuação à corte, prefiro referir-me a ela como umaforma forte <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s ativas e, portanto, ainda <strong>de</strong>ntro do diálogo. A suaflexibilida<strong>de</strong> e abertura para calibração em função do <strong>de</strong>sempenho do legislador<strong>de</strong>ixam claro que, em alguma medida, é disso que se trata, e não <strong>de</strong> um julgamentoestanque <strong>de</strong> princípio.A proporcionalida<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong> a uma moldura analítica para racionalizar aadjudicação sobre a valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> restrições a direitos <strong>fundamentais</strong>. 317 Consiste em trêspassos, ou melhor, submete a legislação a três testes. Em primeiro lugar, ao teste dalegitimida<strong>de</strong> e a<strong>de</strong>quação: verifica se os fins buscados pelo legislador são legítimos ese os meios utilizados têm conexão racional com a persecução daqueles fins. Emseguida, ao teste da necessida<strong>de</strong>: examina se esses meios são realmente necessários,ou se haveria outro menos gravoso, com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atingir o mesmo fim. Por“mini momentos constitucionais” para forçar um exame legislativo concentrado na linguagemconstitucional. (“Foreword: Antidiscrimination and Constitutional Accountability [What the Bork-Brennan Debate Ignores]”, p. 107).316 Bons exemplos <strong>de</strong> práticas dialógicas parecidas em outros países po<strong>de</strong>m ser encontrados no estudocomparativo organizado por Jeffrey Goldsworthy, Interpreting Constitutions. No artigo <strong>de</strong> DonaldKommers (“Germany: Balancing Rights and Duties”), que integra essa coletânea, ele classifica trêsmodos típicos <strong>de</strong> o Tribunal Constitucional Alemão proferir conselhos, apesar <strong>de</strong> não se lhesreconhecer oficialmente como opinião consultiva: 1) quando o tribunal invalida a lei e indica formas <strong>de</strong>correção; 2) quando o tribunal não invalida mas confere um prazo ao legislador para que ele a corrija;3) quando o tribunal <strong>de</strong>clara a incompatibilida<strong>de</strong> da lei mas não a invalida por ser politicamenteinconveniente (p. 211). Kommers observa a importância <strong>de</strong>ssa atitu<strong>de</strong> na legitimação da corte alemã:“This particular approach to constitutional adjudication has avoi<strong>de</strong>d the ‘absolutist’ or categoricalreasoning often typical of American constitutional <strong>de</strong>cisions. And the fact that constitutionalinterpretation is often the by-product of constructive dialogue between the FCC and parliament is stillanother reason for the relative stability and acceptability of judicial review in Germany’s civilian legalsystem” (p. 214).317 Com raízes na teoria do direito alemã do séc. XIX, sua formulação atual, aplicada a direitos<strong>fundamentais</strong>, se <strong>de</strong>ve ao influente livro Teoria dos <strong>Direitos</strong> Fundamentais, <strong>de</strong> Robert Alexy.128


último, submete a lei ao teste da “proporcionalida<strong>de</strong> em sentido estrito”, o que mais seaproxima <strong>de</strong> uma avaliação <strong>de</strong> custo-benefício: confere se, no caso, a prevalência <strong>de</strong>um direito sobre outro é proporcional. O legislador tem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> otimizar apromoção <strong>de</strong> um valor e <strong>de</strong> minimizar a eventual restrição a direito. Basicamente, esteúltimo consiste num sopesamento <strong>de</strong> valores. Se a lei falha, segundo a opiniãojudicial, em qualquer <strong>de</strong>sses testes, ela é inconstitucional.Alec Stone-Sweet é um recente entusiasta <strong>de</strong>ssa técnica. 318 Constata que oexame <strong>de</strong> proporcionalida<strong>de</strong> se expandiu para os julgamentos <strong>de</strong> todas as cortesconstitucionais das <strong>de</strong>mocracias minimamente estáveis no mundo. É o “parâmetro <strong>de</strong>melhor prática” (best-practice standard) na jurisprudência constitucional, a técnicadominante sobre adjudicação <strong>de</strong> direitos. Uma característica já dada como inerente aoconstitucionalismo, um “critério <strong>de</strong> perfeição” do estado <strong>de</strong> direito. 319Essa moldura analítica tem a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> racionalizar, mas nem por isso<strong>de</strong>termina respostas corretas ou “camufla a criação judicial do direito”. 320 É umaestrutura <strong>de</strong> balanceamento que não clama neutralida<strong>de</strong> e, assumidamente, fazescolhas <strong>de</strong> natureza moral e política. No entanto, consegue ao menos uniformizar oargumento e conferir-lhe uma or<strong>de</strong>m. Por que ela seria um instrumento <strong>de</strong> diálogo?Segundo Stone-Sweet, nos contextos em que essa técnica impregnou odiscurso jurídico <strong>de</strong> modo bem sucedido, o judiciário induz os outros po<strong>de</strong>res a pensarnos seus próprios papéis em termos <strong>de</strong> proporcionalida<strong>de</strong>. Cria, portanto, umalinguagem comum pela qual os po<strong>de</strong>res po<strong>de</strong>m se comunicar e, inclusive, esforçar-separa persuadir a corte da valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus atos. Os po<strong>de</strong>res tornam-se monoglotas ecapazes <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r as suas respectivas escolhas.O autor ainda nota que a aplicação do teste <strong>de</strong> proporcionalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> variarao longo do tempo, tanto em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> causas exógenas (mudança dascircunstâncias históricas), quanto endógenas. Estas últimas são importantes para os318 Alec Stone-Sweet e Jud Mathews, “Proportionality Balancing and Global Constitutionalism”. Nessetexto há um útil mapeamento da literatura sobre o princípio da proporcionalida<strong>de</strong> em diversos países.319 Ibid, pp. 4 e 37.320 “In<strong>de</strong>ed, waving it will expose rights adjudication for what it is: constitutionally-based lawmaking”(Ibid, p. 4).129


meus fins aqui. A <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> como o legislador consiga <strong>de</strong>monstrar que está levandoa proporcionalida<strong>de</strong> a sério, a corte po<strong>de</strong> conferir-lhe maior <strong>de</strong>ferência em suasescolhas. 321 Ao longo do tempo, a corte vai gerenciando essa relação, por vezescontraindo, por vezes expandindo a força da proporcionalida<strong>de</strong>. Nessa flexibilida<strong>de</strong>residiria sua virtu<strong>de</strong>.Essa técnica, assim como as outras expostas acima, tem seus críticos e<strong>de</strong>fensores, céticos e crentes. São muitas as objeções que lhe são dirigidas. Umaleitura minuciosa <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões e autores foge dos propósitos aqui. Quero apenas proporque, mesmo que por meio <strong>de</strong> uma condução bastante estrita pela corte, aproporcionalida<strong>de</strong> é também uma forma <strong>de</strong> diálogo. Dá ao legislador uma linguagempor meio da qual po<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r, e eventualmente <strong>de</strong>safiar, a corte.2.3 Síntese: virtu<strong>de</strong>s passivas e ativas na promoção do diálogoA primeira parte do capítulo procurou enten<strong>de</strong>r o diálogo no interior da<strong>de</strong>cisão judicial. Referi-me ao diálogo percebido e administrado pela corte. Há formasmais e menos engajadas <strong>de</strong> se fazê-lo, e por isso propus a divisão entre virtu<strong>de</strong>spassivas e ativas, inspiradas na expressão <strong>de</strong> Bickel, para <strong>de</strong>stacar as variações <strong>de</strong>grau que po<strong>de</strong>m ocorrer nesse engajamento. Quando do exercício da primeira, a cortese restringe ao papel <strong>de</strong> propulsora, catalisadora e supervisora. Quando da segunda,está menos inibida e impõe-se como regente e diretora. Os autores nos forneceramuma gama variada <strong>de</strong> imagens para ilustrar o que diziam. Animal político, profeta,lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> opinião, radar, professor, navegador, cartógrafo etc. são algumas dasutilizadas para atenuar a pretensão da corte guardiã e heróica, que se vislumbra numaposição como a <strong>de</strong>scrita no capítulo 2.A <strong>separação</strong> entre virtu<strong>de</strong>s passivas e ativas po<strong>de</strong> ecoar outra dicotomiaparecida do direito constitucional, entre auto-contenção e ativismo. A primeira,porém, está no contexto do diálogo. A segunda, no contexto da supremacia judicial.Também não se <strong>de</strong>ve confundi-las com a distinção entre minimalismo e321 “Change may also occur endogenously. A court, in processing a stream of cases in the same policydomain, may choose to accord more <strong>de</strong>ference to legislative choices, over time, to the extent thatlawmakers <strong>de</strong>monstrate that they are taking seriously proportionality requirements when they legislate”(Ibid, p. 61).130


maximalismo, feita por Sunstein. Este autor combina aqueles dois planos: a corte,quando minimalista, <strong>de</strong>sperta o diálogo; quando maximalista, impõe a supremaciajudicial. O maximalismo, parece-me, serviria justamente para conter o diálogo no quediz respeito às suas pré-condições substantivas. A meu ver, são essas as diferençasentre o ativismo recomendado por Dworkin e o proposto por <strong>de</strong>fensores doaconselhamento ou da aplicação da proporcionalida<strong>de</strong>. Do mesmo modo, entre aatitu<strong>de</strong> judicial amena sugerida por Bickel e Sunstein, e a propugnada por outrasestratégias conhecidas <strong>de</strong> auto-contenção.Os autores que apresentei até aqui supõem a possibilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m o valor<strong>de</strong>ssa interação dialógica, mas acham que a corte tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> escolher entre<strong>de</strong>spertá-la ou não, e também <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar a forma em que ela vai ocorrer. O diálogo<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da boa vonta<strong>de</strong> da corte, e está ao seu alcance trancá-lo. A divisão dos subtópicosseguiu quatro passos em or<strong>de</strong>m crescente no exercício da autorida<strong>de</strong> judicial:a evasão pura e simples, a interferência mínima, o envio <strong>de</strong> recados e a imposição <strong>de</strong>uma linguagem para o diálogo.Supõem também outras coisas: Bickel e Sunstein, que a <strong>de</strong>liberação entre ospo<strong>de</strong>res e a socieda<strong>de</strong> será melhor quanto menos a corte se intrometer; Katyal, poroutro lado, que o diálogo não será melhor se a corte ficar em silêncio, mas se fizerrecomendações, cogitações, argumentação hipotética e analógica, todas <strong>de</strong> naturezanão-vinculante. Este admite, portanto, o <strong>de</strong>safio legislativo, mas lança-lhe um ônusargumentativo.Sunstein resiste à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aconselhamento, ainda que não vinculante,provavelmente porque traria o risco <strong>de</strong> congelar o <strong>de</strong>bate, e <strong>de</strong> amortecer aspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa. Talvez superestime a autorida<strong>de</strong> da corte,ou subestime a do legislador <strong>de</strong> resistir ao conselho. Katyal não compartilha do medo<strong>de</strong> Sunstein: em alguma medida, nada impe<strong>de</strong> que <strong>de</strong>cisões posteriores <strong>de</strong>safiem acorte. O importante seria que o parlamento não adote postura <strong>de</strong>ferente. Se este forengajado, uma corte maximalista não atrapalha, mas talvez torne o <strong>de</strong>bate ainda maisefetivo.131


Há nuances institucionais e contextos políticos que, no entanto, tornam oproblema mais complicado. Às vezes, é improvável que o parlamento assuma aresponsabilida<strong>de</strong> política por certas <strong>de</strong>cisões. Delegar e livrar-se <strong>de</strong>sse ônus lhe po<strong>de</strong>ser mais cômodo e conveniente. O minimalismo po<strong>de</strong> fazer sentido em alguns casos.O maximalismo, ou outras formas <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s ativas, em outros. No tópico seguinte,<strong>de</strong>screvo uma literatura que olha como o <strong>de</strong>senho das instituições impacta a interaçãoe nos permite avaliar a real capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a corte intervir nesse processo, em cadasituação.3. Diálogo como produto necessário da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>resHá dois ramos principais na literatura que vê o diálogo como fenômenoestrutural da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res: a cana<strong>de</strong>nse e a norte-americana. A divisão éimperfeita, pois não são ramos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Influenciam-se mutuamente nosúltimos 20 anos. Começo pela mais antiga e variada. A norte-americana é maissofisticada metodologicamente e aborda o fenômeno <strong>de</strong> modo mais plural. Por essamesma razão, na falta <strong>de</strong> uma noção estável <strong>de</strong> “diálogo”, qualquer <strong>de</strong>scrição énecessariamente mais pessoal. Exponho, em seguida, a vertente cana<strong>de</strong>nse do <strong>de</strong>bate.Mais recente, seus termos têm maior homogeneida<strong>de</strong>, os marcos mais <strong>de</strong>finidos ediretamente conectados com a mudança <strong>de</strong> regime constitucional em 1982.3.1 O <strong>de</strong>bate americanoSistematizar o <strong>de</strong>bate americano é certamente uma tarefa mais trabalhosa enecessariamente seletiva do que o cana<strong>de</strong>nse. “Diálogo” é um termo utilizado comfreqüência por tradições disciplinares diversas. Optei por dividi-lo em duas partes: naprimeira, abordo o grupo conhecido como “construção coor<strong>de</strong>nada”, que enfeixa umgran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> autores; na segunda, abordo especificamente Barry Friedman, quedá uma contribuição significativa a esse enfoque sobre a revisão judicial.Interpretação coor<strong>de</strong>nada e a teoria do diálogo <strong>de</strong> Friedman são partes <strong>de</strong> um contínuoque tem, num dos extremos, o inimigo comum da supremacia judicial.Construção coor<strong>de</strong>nada e constituição fora das cortes132


Contra a tradição da supremacia judicial inventada por Marshall, segundo oqual a constituição é uma norma <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m superior que só faz sentido se estiver acimada política e for protegida por um guardião, nasce uma corrente que recusa essapremissa a partir <strong>de</strong> variados argumentos e ênfases. Construção coor<strong>de</strong>nada,<strong>de</strong>partamentalismo e constituição fora das cortes são os termos pelos quais essesautores costumam ser classificados. Propõem que a constituição é um instrumento que<strong>de</strong>ve ser interpretado por todos os po<strong>de</strong>res. A interpretação extrajudicial, nessesentido, é um fenômeno legítimo e <strong>de</strong>sejável. Para <strong>de</strong>fensores da supremacia, a corte ésoberana na interpretação. Para a corrente aqui <strong>de</strong>scrita, a corte é um intérprete a mais<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um jogo mais complexo. Há vida constitucional fora das cortes e as teoriascentradas na última palavra judicial ofuscam essa constatação.Em tese, gran<strong>de</strong> parte da literatura <strong>de</strong> ciência política sobre as relaçõesbilaterais entre os três po<strong>de</strong>res (judiciário v. parlamento, e assim por diante), ou sobreo jogo estratégico entre eles, é geralmente colocada <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>ssa rubrica comum.Neste tópico, apresento sucintamente três autores que, combinados, oferecem umpanorama mínimo <strong>de</strong>ssa corrente para os fins <strong>de</strong>sse capítulo: Louis Fisher, um dosprimeiros a abordar o assunto na teoria constitucional; Keith Whittington,representante já consolidado <strong>de</strong>ssa abordagem; e Mitchell Pickerill, que, em livrorecente, oferece pesquisa empírica inovadora sobre a relação entre revisão judicial e<strong>de</strong>liberação parlamentar. 322O principal mérito <strong>de</strong> Louis Fisher é <strong>de</strong>monstrar, com exemplos da históriaamericana, que o processo constitucional é mais nuançado do que a simples emissão,pela corte, da última palavra. A última palavra, segundo essa história confirmaria, nãopertence a nenhuma instituição. Ao contrário, as instituições, e a corte em especial,continuam a ser testadas e <strong>de</strong>safiadas enquanto tomarem <strong>de</strong>cisões que não gozem <strong>de</strong>um mínimo consenso <strong>de</strong>liberativo. Em temas controversos, a <strong>de</strong>mocracia não temcomo escapar <strong>de</strong> uma sucessão ininterrupta <strong>de</strong> testes. A <strong>de</strong>cisão judicial,eventualmente, é final <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um estágio, mas novos estágios políticos se abrem322 A leitura <strong>de</strong>sses três autores oferece um mapa extenso <strong>de</strong> toda a bibliografia sobre o assunto. Nessalista, são nomes obrigatórios o <strong>de</strong> Walter Murphy e a escola <strong>de</strong> direito público que se formou ao redor<strong>de</strong>le em Princeton, com Robert Burt, Susan Burgess, Terri Perretti, entre outros.133


continuamente. 323 Merece respeito, não adoração. 324 A interpretação constitucional,nesse sentido, é um processo circular que só termina ou se estabiliza quando alcanceum mínimo acordo, ainda que com prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>.Whittington promove uma <strong>de</strong>fesa normativa da interpretação constitucionalextrajudicial, além <strong>de</strong> verificar que, empiricamente, ela está presente todo o tempo.Olhar para essa dimensão ampliada é a proposta <strong>de</strong> sua teoria. A resposta que ele dáaos críticos da interpretação extrajudicial permite uma aproximação mais rápida doseu argumento. 325 Supremacia judicial não se confun<strong>de</strong> com exclusivida<strong>de</strong> judicial.Seus <strong>de</strong>fensores admitem que outros po<strong>de</strong>res po<strong>de</strong>m participar da construção <strong>de</strong>sentido constitucional, mas acreditam que um dos po<strong>de</strong>res precisa ter o papelprimordial. Se outros po<strong>de</strong>res reconhecem essa autorida<strong>de</strong> da corte, a prática <strong>de</strong>interpretação extrajudicial não representa uma ameaça à supremacia judicial. 326 Noentanto, Whittington questiona esse tipo <strong>de</strong> hierarquia dos intérpretes e apresentacomo alternativa o “<strong>de</strong>partamentalismo” ou “construção coor<strong>de</strong>nada”, segundo a qualnenhum intérprete é supremo, mas dotado <strong>de</strong> igual autorida<strong>de</strong>. Sob esse enfoque,diferentes acomodações vão surgindo no <strong>de</strong>correr do processo político.Os críticos apontam três vícios <strong>de</strong>ssa concepção <strong>de</strong> <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res: seriaanárquica (por multiplicar os intérpretes sem hierarquizá-los ou dispor <strong>de</strong> umaautorida<strong>de</strong> final e estável), 327 irracional (por não levar a sério consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong>princípio como a corte o faria), e tirânica (por representar um perigo às minorias, queestariam sob proteção da corte). A supremacia judicial corrigiria esses três vícios pormeio <strong>de</strong> três virtu<strong>de</strong>s: a <strong>de</strong> resolução <strong>de</strong>finitiva do problema, <strong>de</strong> sua qualida<strong>de</strong><strong>de</strong>liberativa única, e <strong>de</strong> sua força contramajoritária.Whittington recusa essas respostas. Quanto ao suposto caráter anárquico e àvirtu<strong>de</strong> judicial <strong>de</strong> resolução <strong>de</strong>finitiva, afirma que os críticos estão, ao mesmo tempo,323 Cf. Constitutional Dialogues, pp. 8, 273, 275.324 “Court <strong>de</strong>cisions are entitled to respect, not adoration. When the Court issues its judgment, weshould not suspend ours” (Constitutional Dialogues, p. 279).325 O texto recente que mais repercussão teve na <strong>de</strong>fesa da supremacia judicial foi o <strong>de</strong> Larry Alexan<strong>de</strong>re Fre<strong>de</strong>rick Schauer, “On Extrajudicial Constitutional Interpretation”. Whittington respon<strong>de</strong> a eles notexto “Extrajudicial Constitutional Interpretation: Three Objections and Responses”.326 Ibid, p. 782.327 O que Whittington chama <strong>de</strong> “protestantismo na interpretação da constituição” (Ibid, p. 788).134


superestimando a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o judiciário resolver o problema, e subestimando acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os outros po<strong>de</strong>res produzirem <strong>de</strong>cisões coerentes e estáveis. Alémdisso, estabilida<strong>de</strong> e clareza, que contribuem para a função <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação social,seriam apenas um dos valores subjacentes ao direito, e <strong>de</strong>vem ser balanceados comoutros. A extrema rigi<strong>de</strong>z, especialmente no contexto constitucional, po<strong>de</strong> prejudicarexperimentações importantes para a dinâmica social. 328 Como o constitucionalismoconsiste no balanceamento <strong>de</strong> diversos valores, e não na maximização <strong>de</strong> um só, esseargumento pela supremacia judicial per<strong>de</strong> sua força. Faria duas suposições enganosas:que a estabilida<strong>de</strong> é o único valor constitucional, e que a corte a promoveria. 329Quanto à acusação <strong>de</strong> irracionalida<strong>de</strong> na interpretação dos outros po<strong>de</strong>res e àqualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “fórum do princípio” das cortes, Whittington aponta novamente assuposições equivocadas por trás <strong>de</strong>ssa idéia. Salienta que a capacida<strong>de</strong> interpretativasingular da corte é uma mistificação que não se verifica na realida<strong>de</strong>. Os juízes <strong>de</strong>uma corte colegiada, no seu dia a dia <strong>de</strong>cisório, negociam e barganham seus votos. A<strong>de</strong>cisão final da corte, com freqüência, consiste numa cacofonia <strong>de</strong> opiniões distintaslonge da imaginada qualida<strong>de</strong> da argumentação com base em princípio. Ao mesmotempo, sustentar que a interpretação extrajudicial será sempre refém da pressãopolítica, da conveniência, e distante do <strong>de</strong>bate moral, não correspon<strong>de</strong>ria,rigorosamente, à realida<strong>de</strong>. 330 Exigir que a corte não preste <strong>de</strong>ferência, em nenhumacircunstância, para interpretações extrajudiciais, em razão <strong>de</strong> sua suposta instabilida<strong>de</strong>e irracionalida<strong>de</strong>, seria um movimento teórico equivocado.Por fim, opõe-se também à tradicional <strong>de</strong>fesa da missão anti-tirânica da corte,em nome da proteção <strong>de</strong> minorias. Para Whittington, essa moldura mental confun<strong>de</strong> adinâmica política real entre os po<strong>de</strong>res, que não correspon<strong>de</strong> a uma oposição entremaiorias e minorias. Juízes são constrangidos e, ao mesmo tempo, motivados pelo328 Ibid, p. 791.329 “There must be some finality to the resolution of constitutional and legal disputes for society tofunction productively, but constitutional equilibria can be achieved in myriad ways and the stability ofthe constitutional environment is best regar<strong>de</strong>d as a continuous rather than a dichotomous variable”(Ibid, p. 808).330 “The ready assertion that ‘power’ not ‘reason’ characterizes nonjudicial bodies and preclu<strong>de</strong>sextrajudicial constitutional interpretation is theoretically un<strong>de</strong>r<strong>de</strong>veloped. (…) It is false to assume thatindividual politicians do not therefore have to explain and justify their actions. (…) Admittedly, themo<strong>de</strong>s of legitimate argument available to legislators are more extensive than those available tojudges” (Ibid, p. 822).135


clima político. O papel da corte é mais mo<strong>de</strong>sto do que opor-se a forças majoritárias.Ela publiciza potenciais violações constitucionais que passam <strong>de</strong>spercebidas ou<strong>de</strong>spertam a indiferença dos outros po<strong>de</strong>res. 331 - 332 A política americana seria melhor<strong>de</strong>scrita em termos pluralistas do que majoritários, e não é uma boa saída teóricaisolar a constituição da política. 333 Numa frase indicativa <strong>de</strong>ssa idéia: “O significadoda constituição não po<strong>de</strong> ser presumido. Ele precisa ser conquistado, e conquistado<strong>de</strong>ntro da política”. 334Existiria um “continuum <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> interpretativa” que oscila no interiordos po<strong>de</strong>res no <strong>de</strong>correr do tempo, e não segue uma bula prefixada. A interpretaçãoextrajudicial é um fenômeno real e inevitável, ainda que nem sempre percebido. Aquestão normativa central não é, por isso, discutir se ela <strong>de</strong>ve ocorrer, mas saberquanta <strong>de</strong>ferência os po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>vem conce<strong>de</strong>r-se reciprocamente em cadamomento. 335 O valor da interpretação extrajudicial é o estímulo que ela traz à“sensibilida<strong>de</strong> constitucional” entre os outros po<strong>de</strong>res: “Somente se po<strong>de</strong> esperar queos atores políticos não consi<strong>de</strong>rem a constituição em termos puramente instrumentaisse a interpretação constitucional extrajudicial for levada a sério e valorizada”. 336Pickerill, por sua vez, realiza uma pesquisa empírica reveladora na literaturasobre a construção coor<strong>de</strong>nada. Seu objetivo é verificar em que circunstâncias olegislador ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>liberar seriamente sobre os valores constitucionais. Pelosperíodos estudados, o nexo causal i<strong>de</strong>ntificado vai <strong>de</strong> encontro ao que semprepostulou a tradição: a presença, e não a ausência, <strong>de</strong> uma ameaça real <strong>de</strong> revisãojudicial faz o legislador consi<strong>de</strong>rar com mais cuidado a dimensão constitucional dos331 “The Court can make a significant difference in political life at the margin. But the Court’sconstitutional interpretations are most important when it acts in concert with or in the absence ofpolitical majorities rather than as strongly countermajoritarian force, when judicial interpretationconverges rather than diverges from extrajudicial constitutional interpretation, though the judiciarymay be able to i<strong>de</strong>ntify constitutional applications and violations that would, otherwise, escape politicalnotice” (Ibid, p. 834-835).332 Em outro texto, Whittington também afirma a mesma idéia <strong>de</strong> forma mais direta: “Whatconstitutional courts do best is to publicize constitutional transgressions” (“Constitutional Constraintsin Politics”, p. 8).333 “Such a framework obscures more than it enlightens. It relies on a mo<strong>de</strong>l of an externalizedConstitution that imposes itself on political actors through some in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt third party”(“Extrajudicial…”, p. 839).334 “The meaning of a constitution cannot be taken for granted. It must be won, and it must be wonwithin politics” (“Constitutional Constraints in Politics”, p. 18).335 “Extrajudicial…”, p. 848.336 Ibid, p. 850-851.136


assuntos que trata. Na história política americana, pelo menos no tema do fe<strong>de</strong>ralismoanalisado por ele, o longo período <strong>de</strong> <strong>de</strong>ferência judicial entre 1930 e 1990 significou,no parlamento, a total ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates constitucionais, o sumiço daconstituição. 337 Nos períodos que antece<strong>de</strong>m e suce<strong>de</strong>m a esses dois marcos, quando acorte retomou algum engajamento sobre o assunto, o parlamento passou a construirargumentos constitucionais com mais cuidado. Trata-se <strong>de</strong> uma conclusão menosotimista que a <strong>de</strong> Whittington sobre a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o parlamento empreen<strong>de</strong>r umainterpretação constitucional séria. 338 Não significa, porém, que Pickerill sucumba à<strong>de</strong>fesa da pura supremacia judicial.Sua tese é mais elaborada. Verifica que, apesar <strong>de</strong> o legislador po<strong>de</strong>rrespon<strong>de</strong>r à <strong>de</strong>cisão judicial e ter variadas estratégias para tanto, é muito raro que eletenha interesse em fazê-lo. Dentro da gama <strong>de</strong> incentivos e consi<strong>de</strong>rações que pesamna <strong>de</strong>cisão legislativa, o argumento <strong>de</strong> princípio ocupa posição pouco prestigiada.Sempre que o legislador pu<strong>de</strong>r, em alguma medida aceitável, aten<strong>de</strong>r o objetivo dapolítica pública e, ao mesmo tempo, obe<strong>de</strong>cer os limites impostos pela corte, ele iráfazê-lo. É isso que realmente acontece na rotina da política normal. Em vez <strong>de</strong> pensarnos gran<strong>de</strong>s momentos constitucionais <strong>de</strong> impasse, em que o legislador eventualmentese vê forçado a engajar-se nos <strong>de</strong>bates morais can<strong>de</strong>ntes, essa preocupação está fora<strong>de</strong> sua agenda no dia-a-dia político.O <strong>de</strong>safio legislativo contra a <strong>de</strong>cisão judicial é incomum. O parlamento, emregra, prefere não comprar a briga política ou argumentativa. A prática maiscorriqueira é o parlamento editar uma lei que se adapta às exigências judiciais. Aliteratura sobre construção coor<strong>de</strong>nada costuma presumir que qualquer respostalegislativa correspon<strong>de</strong> a uma rejeição da supremacia judicial, a uma prova <strong>de</strong> que olegislador po<strong>de</strong> prevalecer. Pickerill mostra, contudo, que esses estudos fazem vistasgrossas para diferentes espécies <strong>de</strong> resposta legislativa. Ao não olharem para asubstância da resposta, per<strong>de</strong>m o <strong>de</strong>talhe <strong>de</strong>sse fenômeno. 339 Há diversas variáveisque impactam o tipo <strong>de</strong> resposta legislativa. Se os objetivos gerais da política pública337 Constitutional Deliberation in Congress, p. 95.338 Na resenha crítica que publicou sobre o livro, Whittington argumenta que a conclusão extraída <strong>de</strong>casos sobre fe<strong>de</strong>ralismo, feita por Pickerill, não po<strong>de</strong> ser generalizada para outras áreas (“JamesMadison Has Left the Building”).339 Ibid, pp. 32 e 56.137


po<strong>de</strong>m ser preservados, sem gran<strong>de</strong> prejuízo, a <strong>de</strong>speito da <strong>de</strong>cisão judicial, oparlamento acomoda-se a uma lei <strong>de</strong>ferente à corte. A longevida<strong>de</strong> da lei é tambémrelevante para esse fenômeno. Em geral, o parlamento não tem gran<strong>de</strong> interesse emlutar pela sobrevivência <strong>de</strong> uma lei antiga que não integra a agenda prioritária. 340A política pública final, segundo o autor, é produto da interação e danegociação entre os po<strong>de</strong>res, processo em que há concessões mútuas. A plasticida<strong>de</strong> ea permeabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse jogo produzem <strong>de</strong>cisões diferentes das que seriam tomadas,isoladamente, por qualquer uma <strong>de</strong>ssas instituições. Não se trata <strong>de</strong> um jogo <strong>de</strong> somazero, com vencedores e per<strong>de</strong>dores num braço-<strong>de</strong>-ferro institucional. Consiste, commais freqüência, numa relação “ganha-ganha”, em que ambos os lados têm parte <strong>de</strong>seu objetivo atendido. Exceto em momentos atípicos, o processo não é o <strong>de</strong> umchoque frontal entre vonta<strong>de</strong>s diametralmente opostas e inconciliáveis dadas a priori,uma disputa entre tudo ou nada. 341 O cotidiano político é guiado por acomodações. Acorte influencia o rumo das <strong>de</strong>cisões parlamentares sem criar um impasse. Não é um“obstáculo insuperável” nem um “salvador do povo”. Não consiste num inspetorexterno à política. 342 Mais do que um bloqueio, a revisão judicial é um redutor <strong>de</strong>velocida<strong>de</strong>, ou mesmo um pequeno <strong>de</strong>svio do mapa inicial. 343Por essa razão, Pickerill percebe que sustentar a igual capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ospo<strong>de</strong>res <strong>de</strong>liberarem sobre princípio é equivocada. Não cai, no entanto, naconvencional <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma superiorida<strong>de</strong> ou exclusivida<strong>de</strong> judicial nessas questões.Prefere sistematizar essas dimensões <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberação <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma hierarquia nãoexclu<strong>de</strong>nte. O legislador, primariamente, preocupa-se com as questões <strong>de</strong>conveniência da política pública. Não é por isso que consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> princípioestarão excluídas <strong>de</strong> sua alçada. Nenhum po<strong>de</strong>r está isento da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>boas justificativas constitucionais. Essas, porém, são secundárias <strong>de</strong>ntro do leque <strong>de</strong>340 A ida<strong>de</strong> da lei, a propósito, é uma variável interessante que traz complicações ao <strong>de</strong>bate normativosobre e legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática da revisão judicial. Supondo que a objeção contra o antimajoritarismoda corte seja plausível, não é tão fácil sustentar o mesmo em relação a uma lei antiga, aprovada poruma “vonta<strong>de</strong> da maioria” <strong>de</strong> gerações anteriores.341 “It is difficult to explain congressional responses to judicial review solely as a battle over a prioriand unidimensional policy preferences where either judicial supremacy reigns and the Court wins, orCongress overri<strong>de</strong>s or challenges Court <strong>de</strong>cisions in an exercise of coordinate construction andCongress wins” (Ibid, p. 37).342 Ibid, p. 149-152.343 “While judicial review can be a roadblock to legislation, it is often more of a speed bump or <strong>de</strong>tour”(Ibid, p. 31).138


pesos e medidas que contam na <strong>de</strong>cisão parlamentar (o checklist do legislador). 344 Acorte, por sua vez, tem na consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> princípio sua função primária. Pickerillprefere a idéia <strong>de</strong> primazia judicial (judicial primacy), um meio-termo entresupremacia e igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> funções, como uma melhor maneira <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o valor<strong>de</strong>sse arranjo. 345 O processo real, portanto, estaria numa zona cinzenta entre aimposição da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um só, e a construção puramente igualitária e horizontal dapolítica pública.As evidências empíricas apresentadas mostram que somente na presença <strong>de</strong>uma ameaça real <strong>de</strong> revisão o legislador levou argumentos constitucionais em conta.O congresso, portanto, foi sempre reativo e, mesmo nessas circunstâncias, nãopromoveu <strong>de</strong>liberações constitucionais <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>. Os outros <strong>de</strong>terminantes<strong>de</strong> seu comportamento continuam sendo priorida<strong>de</strong>. O parlamento não tem incentivospara construir um argumento constitucional autônomo. Está sempre voltado a orientarseu posicionamento a partir da jurisprudência da corte. Pickerill retrata um parlamentoamericano em que, nas palavras <strong>de</strong> Whittington, “James Madison saiu do prédio”.Num momento <strong>de</strong>caído da política, o parlamento não está interessado em <strong>de</strong>batergran<strong>de</strong>s questões constitucionais com sincerida<strong>de</strong>. 346Para Pickerill, um sistema <strong>de</strong> <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é <strong>de</strong>senhado para produzirnormas jurídicas que reflitam o balanceamento <strong>de</strong> diferentes instituições. Seria esta,a<strong>de</strong>mais, a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> uma “república das razões”, uma forma <strong>de</strong> gerar <strong>de</strong>cisõesmelhor justificadas e mo<strong>de</strong>radas. 347 Aqui percebemos o <strong>de</strong>sdobramento normativo do344 Conforme afirmou um <strong>de</strong>putado entrevistado por Pickerill quanto à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s levadasem conta em suas <strong>de</strong>cisões: “Policy issues first, how do you get a consensus to pass a bill, six otherthings, then constitutionality” (Ibid, p. 134).345 “Judicial primacy means that the Court has the primary institutional responsibility for interpretingthe Constitution, and that Congress’s motivations and its likelihood of engaging in constitutionalconstruction are limited by the majoritarian and representative nature of the institution. It alsorecognizes, however, that the Court is not ‘supreme’ in the sense that it always have the final say and isunaccountable to Congress, or that every constitutional issue is a legal, or justiciable, issue. A theory ofjudicial primacy appreciates representative policymaking and statute making to be the primary (asopposed to the only) responsibilities of Congress, and in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt constitutional evaluation to be theprimary (as opposed to the only) responsibility of the Court” (Constitutional Deliberation in Congress,p. 152).346 Cf. a resenha crítica escrita por Whittington, “James Madison Has Left the Building”.347 “In my view, we now have more carefully and thoughtfully drafted legislation that reflects an interinstitutionallycollective justification for the legislation, as opposed to having institutional winners andlosers in a battle over a priori and unidimensional policy preferences. When bargaining among multipleinstitutions results in a more comprehensive justification for law and policy, the normative preference139


argumento: mais legítima será a revisão judicial quanto mais claro estiver que nãohouve <strong>de</strong>liberação constitucional no parlamento. Mais do que um “mal necessário”para proteger as minorias contra abusos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a corte dá uma contribuiçãopeculiar ao infundir na política a dimensão valorativa da constituição. 348A corrente apresentada aqui busca construir, po<strong>de</strong>ríamos dizer, umaconcepção integral <strong>de</strong> constitucionalismo, e estimular uma <strong>de</strong>liberação <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong><strong>de</strong>ntro e fora das cortes. A constituição não é, portanto, monopólio das instituiçõesjudiciais. O que Tushnet chamou <strong>de</strong> “distorção da política pública”, 349 outroschamaram <strong>de</strong> construção coor<strong>de</strong>nada, negociação, acomodação, compromisso emo<strong>de</strong>ração. Enquanto constatação empírica, o fato <strong>de</strong> que políticas são produto dainteração parece incontestável. Resta saber se a presença da corte produz resultadosmelhores do que sua ausência. O que ganhamos com e o que per<strong>de</strong>mos sem a revisãojudicial? Para Tushnet, há o risco da distorção, um efeito negativo. Para outros, háuma produção jurídica mais inventiva e atenta a valores constitucionais, umatecnologia institucional para estimular a prática <strong>de</strong> justificação.Barry Friedman: diálogo e o “constitucionalismo popular mediado”A lei não é sempre majoritária. A revisão judicial não é sempre contramajoritária.350 Ao contrário, raramente o é. Ela cumpre papel singular, mas não temcomo ser explicada nos termos <strong>de</strong> uma oposição entre maioria e minoria. 351 Talhipótese é implausível e contra-factual. 352 Essas três teses provavelmente resumem ofor a republic of reasons has been more fully realized” (Constitutional Deliberation in Congress, p. 60;cf. também p. 131).348 “The Court’s constitutional <strong>de</strong>cisions may not be the last word in the judicial supremacy sense, butthey have an important and significant role in infusing constitutional <strong>de</strong>bate into the lawmaking processand in shaping the language and scope of legislation” (Ibid, p. 24).349 Mark Tushnet, “Policy Distortion and Democratic Debilitation”.350 “Although a great <strong>de</strong>al of work has been <strong>de</strong>voted in recent years to the notion that the legislativeprocess is not as majoritarian as we i<strong>de</strong>alize, little focus has been given to the other si<strong>de</strong> of theequation. (…) Measured by a realistic baseline of majoritarianism, courts are relatively majoritarian”(“Dialogue and Judicial Review”, p. 586).351 Tal constatação po<strong>de</strong>ria inspirar uma forma alternativa <strong>de</strong> classificar as teorias da revisão judicial:<strong>de</strong> um lado, as teorias que a pensam nestes termos <strong>de</strong> maioria e minoria, e, <strong>de</strong> outro, as que pensam <strong>de</strong>algum outro modo. Por esse critério, chagaríamos provavelmente a uma sistematização não muitodiferente da proposta nesta tese.352 “Most legal scholarship is focused in a counter-factual: why do we tolerate counter-majoritariancourts? Courts do occasionally interfere with a clear majoritarian consensus, and even more rarely theyfrustrate that consensus for a long period of time” (“The Counter-Majoritarian Problem and thePathology of Constitutional Scholarship”, p. 937).140


coração do argumento <strong>de</strong> Barry Friedman, espalhado numa série <strong>de</strong> artigos publicadosnos últimos vinte anos.Para este autor, a tradição hegemônica da dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária fazduas suposições que, na melhor das hipóteses, são superestimadas, e na pior,simplesmente equivocadas: primeiro, que existe uma vonta<strong>de</strong> da maioria i<strong>de</strong>ntificávele fixa, a qual o legislador espelha, e da qual a corte se distancia; segundo, que a cortetem a última palavra. 353 Tais aparências distorcem o que efetivamente há. Friedmanpropõe substituir essas duas suposições por três idéias que, segundo ele, são maiscompatíveis com a realida<strong>de</strong>: o sistema <strong>de</strong> governo não representa, propriamente, amaioria, mas escuta e integra vozes <strong>de</strong> diferentes grupos; o texto constitucional éflexível o suficiente para acomodar diversas interpretações; o processo <strong>de</strong>interpretação constitucional não é estático, mas dinâmico, e consolida umainterpretação diferente a cada momento. Essas três características fomentariam umainteração vigorosa no cotidiano constitucional. 354A rejeição <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> da maioria i<strong>de</strong>ntificável e estável já apareceu nocapítulo 2 <strong>de</strong>ssa tese, por ocasião da <strong>de</strong>fesa da última palavra judicial. Friedmanendossa essa constatação, e não se impressiona com reivindicações <strong>de</strong> prevalência davonta<strong>de</strong> da maioria, um fenômeno fluido, efêmero, em constante mutação, comvariadas intensida<strong>de</strong>s. Trata-se, se não <strong>de</strong> um mito, <strong>de</strong> uma qualida<strong>de</strong> menos centralda <strong>de</strong>mocracia. 355 Nenhum po<strong>de</strong>r é perfeitamente majoritário. 356 O que existe, paraFriedman, é uma “Babel” <strong>de</strong> vozes que se chocam, se acomodam e se transformam,em progressão infinita. Aos po<strong>de</strong>res cabe negociar e <strong>de</strong>finir uma direção em meio aessa pluralida<strong>de</strong>. 357 “O que o parlamento tem que a corte não tem?” 358 Recorrer anoções <strong>de</strong> maioria para respon<strong>de</strong>r a essa pergunta, implícita nas investidas da“dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária”, só faz induzir novas confusões.353 “Because the judicial word is not the last word, the countermajoritarian difficulty loses force”(“Dialogue and Judicial Review”, p. 644). Em outra expressão: “fallacy of judicial finality” (Ibid, p.654).354 Cf. “Dialogue and Judicial Review”, pp. 583, 615, 629.355 “Although <strong>de</strong>mocracy has something to do with majority rule, in a representative system like ourown majority rule is purely a question of <strong>de</strong>gree” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 587).356 Cf. “Dialogue and Judicial Review”, p. 614.357 Cf. “Dialogue and Judicial Review”, pp. 643 e 657.358 Cf. “Dialogue and Judicial Review”, p. 588.141


Em relação à segunda suposição, Friedman <strong>de</strong>senvolve um longo argumento.Mescla observações da ciência política empírica sobre a <strong>de</strong>cisão judicial com aproposta <strong>de</strong> outra função para o controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> – a <strong>de</strong> facilitador einterlocutor num diálogo permanente. 359Há dois sentidos em que uma <strong>de</strong>cisão po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada a última palavra:no caso específico e no tema geral. 360 Em relação ao caso, o judiciário precisa <strong>de</strong>cooperação <strong>de</strong> outros agentes para implementar suas <strong>de</strong>cisões e, portanto, não <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>o que quer. Essa observação não é trivial e mereceria <strong>de</strong>sdobramentos queverificassem sua acuida<strong>de</strong>, mas, para os fins <strong>de</strong>ssa tese, interessa-me a segundadimensão. Nesta, parece claro que a <strong>de</strong>cisão judicial está longe <strong>de</strong> representar a últimavoz. Friedman recorre ao caso Roe v. Wa<strong>de</strong> para exemplificar essa idéia. A miopiacausada pela dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária veria a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Roe como o fim dahistória sobre o regime jurídico do aborto. Porém, foi apenas o começo, e catalisoudécadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate e <strong>de</strong> renovados testes políticos à <strong>de</strong>cisão. 361 Roe teria representadouma nova era no <strong>de</strong>bate. Num momento em que a inércia legislativa beneficiavaopositores ao aborto e boa parte da população não tinha posição formada, a corte teriaforçado a socieda<strong>de</strong> a pensar. Três décadas <strong>de</strong>pois, po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que a maioria dasocieda<strong>de</strong> americana refletiu e se posicionou a respeito, e continua a <strong>de</strong>bater e a criarnovos <strong>de</strong>safios.A corte, eventualmente, diz que sua palavra é a última. Todavia, enquantohouver <strong>de</strong>sacordo, a <strong>de</strong>liberação política continuará a ocorrer, com grupos semobilizando para contestar a <strong>de</strong>cisão. 362 Como a constituição é um texto aberto eflexível, interpretações são contingentes e sujeitas a mudanças constantes. Não serãoaceitas como corretas para sempre. Há um contínuo percurso <strong>de</strong> atribuição <strong>de</strong> novossignificados. 363 Seria um processo <strong>de</strong> idas e vindas, em que a corte <strong>de</strong>volve o tema359 “This process of constitutional interpretation hardly pits the court against the people. Rather, thecourt mediates the views of various people. The process is interactive (…) Simply put, our process ofconstitutional interpretation is a dialogue” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 654).360 Cf. “Dialogue and Judicial Review”, p. 644.361 Cf. “Dialogue and Judicial Review”, pp. 647, 660 e 661.362 “Yet, absent agreement, finality will not occur. (…) This lack of finality seems the inevitable resultof the general in<strong>de</strong>terminacy of the constitution’s text” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 648-649).363 “The court is free to change its mind. The people are free to disagree with the court. The court isfree to disagree with the people. The members of the court are free to, and usually do, disagree with142


para a socieda<strong>de</strong> e para os outros po<strong>de</strong>res, e vice-versa. Na metáfora <strong>de</strong> Friedman,seria como parceiros numa partida <strong>de</strong> tênis, que rebatem a bola ininterruptamente. 364Os juízes estão constrangidos pelo sistema político que os circunda. Pensar nopapel do juiz exclusivamente a partir <strong>de</strong> regras <strong>de</strong> interpretação teria criado umagran<strong>de</strong> miopia cognitiva. 365 Há muitos outros elementos que limitam o seu po<strong>de</strong>r.Friedman os chamou <strong>de</strong> “círculos concêntricos <strong>de</strong> influência”. 366 Quatro seriam osníveis principais, que se combinam <strong>de</strong> maneira peculiar em cada situação: primeiro, ojuiz está imerso em uma interação estratégia com outros juízes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umcolegiado (espaço em que não há apenas <strong>de</strong>liberação ou agregação, mas tambémbarganhas e acomodações); segundo, pelas pressões impostas por instâncias inferioresdo judiciário; terceiro, pelos outros po<strong>de</strong>res; e, finalmente, pela opinião pública.Diferentes são os incentivos para atentar-se a cada um <strong>de</strong>sses limites. Credibilida<strong>de</strong>institucional, reputação e risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobediência são os principais <strong>de</strong>les.Correspon<strong>de</strong>m a constrangimentos que juízes necessariamente enfrentam, e queteorias da interpretação ignoram.A teoria positiva da qual Friedman se alimenta busca enten<strong>de</strong>r o queefetivamente motiva os juízes, o que eles maximizam. 367Percebe que, além dopróprio direito, e também <strong>de</strong> valores e i<strong>de</strong>ologias pessoais, os elementos políticosenumerados acima <strong>de</strong>limitam os raios <strong>de</strong> ação possível da <strong>de</strong>cisão judicial. Aocontrário do que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m teorias normativas, juízes têm esferas <strong>de</strong> autonomiamenores do que se imagina. 368Hércules seria o epítome da teoria normativa<strong>de</strong>sconectada da realida<strong>de</strong>. Os constrangimentos que enfrenta são aspectos dados dosistema constitucional. Ele não tem escolha, senão levá-los em conta. Hércules nãoone another. As disagreement occurs, the document will take on new meanings” (“Dialogue andJudicial Review”, p. 651).364 “Does this give the courts the last word? As I explain at length elsewhere, it seems not. (…) rightsrarely are trumps. And so, what one gets, is a constant volleying back and forth on the respectiveweighing of rights interests and powers interests. And through this volleying, it seems to me, is how wemost likely are to arrive at a reasonable accommodation. But the whole game falls apart if courtssimply abandon their si<strong>de</strong> of the volleying” (“Trumping Rights”, p. 462). “Courts serve as society’stennis partner, always volleying the ball back” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 669).365 “Normative theorists obviously can argue that what judges are doing is not what they ought to do.But they also must have a story about why judges might act differently or what will make them do so”(“The Politics of Judicial Review”, p. 279).366 No original: “concentric circles of influence and constraint” (“The Politics of Judicial Review”, p.263).367 Cf. “The Politics of Judicial Review”, p. 270.368 Cf. “The Politics of Judicial Review”, p. 331.143


age sozinho. Para obter obediência dos outros agentes políticos, ele precisa calcularcomo eles reagirão. 369 Teorias normativas estariam obcecadas em limitar o po<strong>de</strong>r dosjuízes sem perceber que ele já está limitado por diversas fontes. Cortes não estão novácuo ou numa torre <strong>de</strong> marfim. Precisam <strong>de</strong> cooperação.A dificulda<strong>de</strong> da colaboração inter-disciplinar que Friedman diagnostica se<strong>de</strong>ve à recusa <strong>de</strong> teóricos normativos a aceitar que as principais forças queinfluenciam juízes são políticas. Insistem no velho hábito da <strong>separação</strong> absoluta entrepolítica e direito: o juiz <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir somente <strong>de</strong> acordo com este, e estar insuladodaquela. 370 Criou-se o mito <strong>de</strong> que há uma instituição distante da política. Essarelação, porém, é <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência. Juízes são produtos da socieda<strong>de</strong> em quevivem e são influenciados pelos jogos <strong>de</strong> forças políticas e i<strong>de</strong>ológicas <strong>de</strong>ssasocieda<strong>de</strong>. 371A corte <strong>de</strong>sempenha, apesar <strong>de</strong> todos esses limites, papéis relevantes para aintensida<strong>de</strong> e racionalida<strong>de</strong> do diálogo. Ela coleta argumentos, sintetiza-os, pauta adiscussão, faz escolhas, direciona, catalisa, provoca e mo<strong>de</strong>ra. 372 Perturba e causaruídos no status quo. As partes se influenciam mutuamente e mudam suaspreferências. A corte interage, mas não é a única voz. Não se trata <strong>de</strong> um processo emque a corte fala e o parlamento escuta, em que um manda e o outro obe<strong>de</strong>ce. 373 Assimcomo os outros po<strong>de</strong>res, a corte é um participante ativo do <strong>de</strong>bate. Como tal,posiciona-se sobre o significado da constituição, mas é capaz <strong>de</strong> fazer mais do queisso. Ela também estimula um diálogo social expandido. Ao optar por umainterpretação, a corte <strong>de</strong>sperta a discussão. Este é o resultado inevitável <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>cisão constitucional controversa, e a corte tem condições <strong>de</strong> conduzi-lo einfluenciá-lo, <strong>de</strong> esfriá-lo e esquentá-lo. 374 Daí o caráter dinâmico da interpretação. 375369 “That Hercules is a judge and not just any other political actor is a fact of enormous significance;still, Hercules must do his judging in a political world” (“The Politics of Judicial Review”, p. 260).370 “Old habits die hard” (“The Politics of Judicial Review”, p. 259).371 “When courts are discussed in countermajoritarian terms I often get a funny picture of judges asaliens come from Mars to impose Martian values upon an unwilling electorate” (“Dialogue and JudicialReview”, p. 615). “Judges do not live in a cocoon; they are of this world” (“Mediated PopularConstitutionalism”, p. 2612).372 “Dialogue and Judicial Review”, p. 668.373 “Dialogue and Judicial Review”, p. 663.374 “Dialogue simply is inevitable” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 680).375 “Change is both healthy and inevitable. In reality, the process of constitutional interpretation isdynamic, not static. (…) Moreover, such dynamism is critical to the success of the venture. (…)144


Friedman propõe, nessa perspectiva, que a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res seja percebidacomo “cooperação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res”. Não se trata <strong>de</strong> uma visão ingênua que escon<strong>de</strong> oconflito e o <strong>de</strong>sacordo, mas <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong> para a complexida<strong>de</strong> da interação.Nossa tendência <strong>de</strong> pensar a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res como luta adversarial teriaofuscado a forma como as políticas públicas <strong>de</strong> fato emergem. O autor lança mão daimagem <strong>de</strong> uma porta com várias trancas: cada po<strong>de</strong>r tem uma chave. A corte cumpreuma função, mas não abre a porta sozinha. 376Apesar <strong>de</strong> salientar diversas vezes que seu ponto <strong>de</strong> partida consiste numa<strong>de</strong>scrição da revisão judicial, Friedman não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> fazer uma <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong>ssainstituição (ainda que comedida nos adjetivos). Esta seria a sua “virada normativa”(normative turn). 377 Sem fazer promessas messiânicas, mostra que a corte po<strong>de</strong>cumprir um papel institucional virtuoso. Formular prescrições normativas, na suaversão, precisa levar em conta as informações empíricas. Estabelece as condições paraa conciliação do positivo com o normativo: “Ser não implica em <strong>de</strong>ver ser, mas <strong>de</strong>verser supõe po<strong>de</strong>r ser”. 378 Os limites da teoria normativa seriam “as realida<strong>de</strong>simutáveis do mundo”. 379 Ela precisaria circunscrever-se ao “domínio do possível” eestar atenta ao contexto em que tais prescrições teóricas se aplicam. 380Passar a fazer teoria normativa sem o embrulho da dificulda<strong>de</strong> contramajoritáriae com uma melhor noção do que constrange, realisticamente, oJudicial <strong>de</strong>cisions are experiments, and experiments rarely are completely successful” (“Dialogue andJudicial Review”, p. 652).376 “Separation of powers – and other structural limitations – may just as well be thought of as a‘cooperation of powers’. Each branch or governmental unit has a special role to play, but goals cannotbe advanced unless the branches work together at some extent. Picture a door secured with severallocks, the key to each in another’s hands. If the door is to be unlocked, the keyhol<strong>de</strong>rs must reachagreement to do so. Un<strong>de</strong>r this ‘cooperation of powers’ system, the best <strong>de</strong>cisions are those ma<strong>de</strong> whenthe branches of government agree. That is not to say every branch and unit will get what it wants (…);in<strong>de</strong>ed, the point is that the branches must negotiate and compromise” (“When Rights EncounterReality”, p. 772).377“Prompting, maintaining, and focusing this <strong>de</strong>bate about constitutional meaning is the primaryfunction of judicial review. (…) Although this largely has been a positive account, it is worth makingthe normative turn” (“The Importance of Being Positive”, p. 1296-1297).378 “Is does not imply ought, but ought implies can” (“The Politics of Judicial Review”, p. 261).379 “The immutable realities of the world are the parameters within which normative theory mustoperate. Ought does imply can” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 331).380 “It is being normative, with an eye out for facts about the world in which normative argumentsoperate” (“The Counter-Majoritarian Problem and the Pathology of Constitutional Scholarship”, p.952).145


comportamento judicial, liberaria juízes <strong>de</strong> uma missão que eles não po<strong>de</strong>riamcumprir, por mais bem intencionados que fossem. 381 - 382 Se as cortes estão sujeitas atodo esse conjunto <strong>de</strong> limites, o que po<strong>de</strong>mos esperar ou temer? A partir <strong>de</strong>sses fatos,po<strong>de</strong>-se contar alguma história com um bom apelo normativo? Essa instituiçãoadiciona algum valor? 383Friedman oferece o conceito <strong>de</strong> “constitucionalismo dialógico” ou <strong>de</strong>“constitucionalismo popular mediado” para enfrentar essas questões. 384 Haveria umparadoxo entre dois objetivos que <strong>de</strong>mandamos da <strong>de</strong>mocracia: que os po<strong>de</strong>resreflitam o sentimento popular, mas que também o li<strong>de</strong>rem na persecução <strong>de</strong>alternativas e caminhos inovadores. 385 A resposta para o paradoxo está na forma comoo sistema constitucional funciona: os po<strong>de</strong>res se aproximam e se distanciam daopinião popular, alternadamente. Há ciclos <strong>de</strong> aproximação e <strong>de</strong> afastamento. Nospo<strong>de</strong>res eleitos, o ciclo <strong>de</strong> alinhamento é imposto a cada nova eleição. Tem, portanto,uma periodicida<strong>de</strong> fixa. É mais regular e controlável. A corte, por sua vez, tem umaciclotimia mais instável e alongada, passa por ondas <strong>de</strong> “li<strong>de</strong>rança” e <strong>de</strong>“majoritarismo”, sem periodicida<strong>de</strong> certa. Po<strong>de</strong> ser visionária e reacionária. Oscilaentre um papel ativo e passivo. 386 É fundamental que não seja somente um ou outro:381 “This question has enormous normative significance (…). If, for example, the Supreme Court isconstrained by political actors, then normative theories that support judicial review as protectingminority rights against a wilful majority at least require nuance if not rethinking” (“Taking LawSeriously”, p. 264).382 “Attention to positive scholarship does not <strong>de</strong>ny an important role for thinking in normative terms,and perhaps not even in i<strong>de</strong>al ones. In<strong>de</strong>ed, a central point here, discussed below, is that positivescholarship can be liberating for normative theory. But the normative en<strong>de</strong>avor must play by somerules as well. Especially when it specifies the operation of institutions, it must <strong>de</strong>al in the realm of thepossible” (“The Politics of Judicial Review”, p. 331).383 “Judicial review can be un<strong>de</strong>rstood as attractive precisely because it is embed<strong>de</strong>d in politics, but isnot quite of it. Politics and law are not separate, they are symbiotic. It would be remarkable to believejudicial review could operate entirely in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt of politics or would be tolerated as such. Nor is itclear that this would be <strong>de</strong>sirable given social and constitutional commitments to accountability andchecks and balances. The practice of judicial review is valuable in that it serves as one morecounterweight, like many others in our constitutional system. Moreover, because judicial <strong>de</strong>cisionsabout constitutional law are sticky – they cannot be overturned at the drop of a hat – judicial reviewserves to channel and foster societal <strong>de</strong>bate about constitutional meaning” (“The Politics of JudicialReview”, p. 333).384 Cf. “Dialogue and Judicial Review”, p. 617, e “Mediated Popular Constitutionalism”, p. 2599.385 Cf. “Lea<strong>de</strong>rship and Majoritarianism: A Response”, p. 8-10.386 “The judiciary can be at times visionary, and at times reactionary, but never too much of either. (…)The judiciary is both visionary and reactionary simply because it is always somewhat out of sync withthe waves or more political branches – always inching ahead of lagging behind. The divergencebetween popular sentiment and the judiciary is what makes the dialogue work. (…) Judicial actioncreates the dynamic tension that moves the system of constitutional interpretation along” (“Dialogueand Judicial Review, p. 678).146


se for só majoritária, per<strong>de</strong>rá sua credibilida<strong>de</strong> e função crítica e dialógica; se for sócontra-majoritária, transbordará o limite da li<strong>de</strong>rança e provavelmente não conseguiráexistir por muito tempo. A corte <strong>de</strong> Warren, para Friedman, teria ensinado os “limitesda li<strong>de</strong>rança judicial”. 387Essa ciclotimia ajuda a resolver o paradoxo. O <strong>de</strong>senho institucional cria aocasião para o afastamento e o diálogo é valioso porque estimula a divergência. Pormeio <strong>de</strong>ssa “tensão dinâmica”, novas interpretações constitucionais florescem. Elasrefletem, em alguma medida, a vonta<strong>de</strong> popular. Diferentemente do que propõem os<strong>de</strong>fensores do constitucionalismo popular puro, porém, a relação entre taisinterpretações e a vonta<strong>de</strong> popular não é direta, mas mediada por uma lenta interaçãoentre cortes e opinião pública. O seu laço é mais frouxo. A corte não é servil à opiniãopública todo o tempo. Contudo, tampouco é absolutamente resistente. Convergem,mas somente no longo prazo. 388 A corte conquista um estoque <strong>de</strong> apoio difuso que apreserva <strong>de</strong> eventuais <strong>de</strong>cisões individuais impopulares. 389 Esse “capital”, entretanto,não é infinito nem estático, e ela somente será tolerada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certos limites.Tal natureza mediada é importante, pois a adjudicação constitucional não po<strong>de</strong>aten<strong>de</strong>r a qualquer preferência ou <strong>de</strong>sejo popular imediato. Para que não se convertaem mera “política normal”, o ritmo da convergência entre revisão judicial e a vonta<strong>de</strong>popular precisa incentivar a busca por princípios mais profundos, por valores <strong>de</strong> baseque o povo aceita ao longo do tempo e após reflexão mais sóbria. A corte se resguardaao engajar-se no diálogo. Sem participar <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> modo razoável, nãosobreviveria à hostilida<strong>de</strong> pública. 390387 Cf. “Lea<strong>de</strong>rship and Majoritarianism: A Response”, p. 11.388 “But the public may well support a system that gives it what it wants much of the time, even if notall the time” (“Mediated Popular Constitutionalism”, p. 2606).389 “On balance then, what seems to be the case, is that over time the Court somehow builds up a storeof diffuse support, which is not easily eliminated by negative reactions to individual <strong>de</strong>cisions”(“Mediated Popular Constitutionalism”, p. 2627; cf. também “The Politics of Judicial Review”, p. 326)390 “Because courts, including the Supreme Court, do not get everything right the first time, or even thesecond or third time, it helps to have some interplay – to <strong>de</strong>bate things” (“When Rights EncounterReality”, p. 776-777).147


O sistema político confere à corte um mecanismo flexível para seguir aopinião pública ao longo do tempo. 391 Em vez <strong>de</strong> alienar, a <strong>de</strong>scrição dialógicaintegraria a corte no processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> significado da constituição. 392Descrições convencionais ignoram as sutilezas do sistema e pressupõem, sem maioresqualificações, a <strong>de</strong>ssintonia entre a corte e a maioria. De tempos em tempos, essasuposição po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>ira no que diz respeito a preferências imediatas. Apossibilida<strong>de</strong> da dissonância provisória, porém, é justamente o que protege osprincípios <strong>de</strong> fundo do sistema constitucional. 393 Apesar dos diferentes ciclos <strong>de</strong> cadapo<strong>de</strong>r, há tempos <strong>de</strong> nítida congruência. Nessas ocasiões, os po<strong>de</strong>res conseguempromover, juntos, mudanças <strong>de</strong> alto impacto. Esse é o motor da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res,um sistema que está sempre em movimento, e nunca se congela. 394Após essa longa reformulação do problema, Friedman localiza, enfim, qualseria a questão normativa a merecer esforço teórico útil. Se, por um lado, diálogo éinevitável, há que se forjá-lo do modo mais “aberto, vibrante e efetivo” possível. 395Para tanto, <strong>de</strong>ve-se promover o balanço ótimo entre os dois pólos constantes <strong>de</strong>ntrodos quais a corte se movimenta: majoritarismo e li<strong>de</strong>rança, alinhamento e dissonância,dinamismo e última palavra (finality). 396 Dito <strong>de</strong> outro modo, <strong>de</strong>ve-se buscarbalancear, <strong>de</strong> um lado, <strong>separação</strong> e in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e, <strong>de</strong> outro, freios econtrapesos. 397 O gerenciamento virtuoso <strong>de</strong>sses ciclos seria o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio das391 “The people will follow judicial <strong>de</strong>crees so long as the judges seem right. When the judges nolonger appear to be correct, the people will press for judicial change. Intuitively, at least, the judgesknow it” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 677).392 “Courts are a vital functioning part of political discourse, not some bastard child standing aloof fromlegitimate political dialogue” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 581).393 Cf. “Dialogue and Judicial Review”, p. 674.394 “Politics tends to move in cycles; people will favor one approach and then, after a time, favor achange” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 677).395 “Approaching the question in dialogic terms, rather than in terms of the countermajoritariandifficulty, should inspire a discussion of how to make the dialogue more open, more vibrant, and moreeffective” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 671).396 Essa é uma questão a ser tratada no capítulo 6. Proponho, na linha do Friedman, que essas duasdimensões não se opõem e não se alternam, mas co-existem. O <strong>de</strong>safio é encontrar o balanço entrediálogo e última palavra, ou seja, o cálculo do grau <strong>de</strong> resistência à mudança da última palavraprovisória, do grau <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong> e provisorieda<strong>de</strong>.397 Friedman aponta para a meta <strong>de</strong> encontrar esse “balanço” em vários textos: “Finality would curtailthe evolution of our constitution; dynamism encourages it. Constitutional meaning changes becausepeople disagree about what the text means. Dynamism is to be encouraged, for the dynamic processhelps formulate the interpretation of our fundamental charter. Of course, there is a balance to be struckbetween dynamism and finality” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 652); “The Constitution doesgrant Hercules a certain <strong>de</strong>gree of in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce, but it also embeds him in politics. This is no acci<strong>de</strong>nt:The Constitution represents a <strong>de</strong>liberate balance between, on the one hand, separation andin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce of the branches and, on the other, accountability and the i<strong>de</strong>a of checks and balances”148


investigações normativas futuras. A<strong>de</strong>mais, como o po<strong>de</strong>r judiciário está constrangidopela política e pela opinião pública, a audiência a<strong>de</strong>quada para essa renovada teorianormativa não <strong>de</strong>ve ser o próprio judiciário, mas a própria opinião pública. Direcionara teoria normativa aos juízes revela a ingênua <strong>separação</strong> entre política e direito. 398Em síntese, po<strong>de</strong>-se dizer que Friedman busca cumprir três missões:apresentar um manifesto metodológico pela integração e colaboração interdisciplinarno estudo das cortes; mostrar o papel singular <strong>de</strong> catalisador do diálogo que a corte<strong>de</strong>sempenha; verificar as implicações normativas <strong>de</strong>ssa perspectiva mais realista.Em relação à primeira missão, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> um caminho <strong>de</strong> duas mãos: teoriasnormativas da revisão judicial <strong>de</strong>vem apren<strong>de</strong>r com as lições produzidas pelaspesquisas empíricas sobre o comportamento judicial e enten<strong>de</strong>r que o juizconstitucional está, inexoravelmente, mergulhado num ambiente político; as teoriaspositivas, por sua vez, <strong>de</strong>vem levar o direito a sério, e não fazer suposições unicausaissimplistas para enten<strong>de</strong>r o po<strong>de</strong>r judiciário, como se este fosse mera extensãodas instituições eleitas e agisse conforme as mesmas variáveis. Em suma, sugere umateoria que integre direito e política. 399 Mais do que isso, que articule o projetonormativo e o positivo, após décadas <strong>de</strong> <strong>separação</strong> <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> extrema rigi<strong>de</strong>zdisciplinar e <strong>de</strong> compromissos i<strong>de</strong>ológicos. 400 Denuncia a patologia da tradição queapren<strong>de</strong>u a tomar como premissa obrigatória a “dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária”, eteria entorpecido a análise. Tal premissa, em termos empíricos, seria falaciosa, apesar<strong>de</strong> ter se tornado obsessão da reflexão constitucional. 401Em segundo lugar, como <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong> seu manifesto, o autor mostra quecortes raramente <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m contra a maioria (nas circunstâncias em que “vonta<strong>de</strong> damaioria” po<strong>de</strong> fazer algum sentido). Freqüentemente, operam em sintonia com aopinião pública. Essa sintonia, porém, não é perfeita e está sujeita a ciclos <strong>de</strong>(“The Politics of Judicial Review”, p. 260); “The trick is striking a balance between too little and toomuch judicial responsiveness” (“Mediated Popular Constitutionalism”, p. 2599); “Ultimately, however,the question of how much slack there should be is a normative one” (“The Counter-MajoritarianProblem and the Pathology of Constitutional Scholarship”, p. 949).398 “The Politics of Judicial Review”, p. 334-335.399 Cf. “The Politics of Judicial Review”, pp. 262 e 269.400 Cf. “Taking Law Seriously”, p. 262.401 “We have been haunted by the ‘countermajoritarian’ difficulty far too long” (“Dialogue and JudicialReview”, p. 578).149


convergência e divergência que seguem um passo diferente das instituições eleitas.Constata que a corte não é o agente todo po<strong>de</strong>roso que a tradição nos teria feitoacreditar, e percebe que ela cumpre papel distinto: é interlocutor e promotor <strong>de</strong> umdiálogo entre a socieda<strong>de</strong> e as instituições políticas. É uma instituição que não atualivre <strong>de</strong> quaisquer constrangimentos. Estes, porém, não são propriamente <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong>teorias normativas da interpretação, mas <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> mais complexa <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminantespolíticos do comportamento judicial. Essa é a tensão implícita no pensamento <strong>de</strong>Friedman: por um lado o diálogo é inevitável e apresenta limites inerentes esistêmicos à corte; por outro, a corte é um participante ativo, que influencia o diálogoe po<strong>de</strong> conduzi-lo para direções variadas. 402Finalmente, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa cruzada metodológica, Friedman sinaliza para umretorno à teoria normativa, ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a revisão judicial como uma opção valiosa quecontribui para a legitimida<strong>de</strong> do regime. Este passo é ainda embrionário, tentativo evacilante. Quer uma teoria normativa repaginada e plausível, sensível às lições dahistória, atenta às instituições como elas são; uma teoria que leve em conta acomplexida<strong>de</strong> das motivações por trás da <strong>de</strong>cisão judicial. Essa pretensão envolve umbalanço difícil entre, <strong>de</strong> um lado, conce<strong>de</strong>r e, <strong>de</strong> outro, duvidar e resistir aodiagnóstico sobre o “mundo real”.Tal diagnóstico, po<strong>de</strong>ríamos objetar, não goza <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong>. No limite, ateoria normativa per<strong>de</strong>ria seu papel crítico e transformador, e se curvaria ànaturalização <strong>de</strong> certa realida<strong>de</strong> assumida como um dado imutável. Apesar <strong>de</strong>ssasuspeita, parece-me plausível o reclamo pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prestar atenção àscondições institucionais e aos incentivos que elas geram para o comportamento dosagentes que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>las operam. Fazer vistas grossas a esse cenário, <strong>de</strong> fato, teriapouco a contribuir para o aperfeiçoamento da revisão judicial e para o mapeamento <strong>de</strong>caminhos teóricos que possam orientar a conduta do juiz.Sua mensagem, provavelmente, é que não <strong>de</strong>vemos superestimar um problemamenor e ocasional, com pouca resistência ao tempo. Seria preciso transcen<strong>de</strong>r essadiscussão e <strong>de</strong>scobrir se a revisão judicial, no agregado, representa um ganho ou uma402 “The dialogic view simply accepts what judges do” (“Dialogue and Judicial Review”, p. 671).150


perda. 403 O fato <strong>de</strong> a <strong>de</strong>cisão da corte não fugir do “aceitável” no atacado ou no longoprazo, não significa que ela não possa ser danosa à <strong>de</strong>mocracia no varejo ou no curtoprazo. Friedman <strong>de</strong>ixa isso em aberto.É curioso observar como algumas <strong>de</strong> suas idéias aproximam-se das <strong>de</strong> Bickel.Ironicamente, entretanto, seu ponto <strong>de</strong> partida consiste num ataque à tradição da“dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária”. Isso provavelmente mostra tensões na obra <strong>de</strong> Bickel(ou ao menos uma interpretação parcial feita pela tradição, que pegou emprestadoaquela expressão famosa sem consi<strong>de</strong>rar o resto do seu pensamento).Qual seria a diferença <strong>de</strong> Friedman para a maioria das outras teorias dodiálogo? A primeira <strong>de</strong>las é o rechaço da “dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária”. 404Compartilha, além disso, <strong>de</strong> elementos da “construção coor<strong>de</strong>nada”, mas soma a ela,mais enfaticamente, a opinião pública. Sua abordagem transcen<strong>de</strong>, portanto, asinstituições e fun<strong>de</strong> as esferas formal e informal da política na explicação do diálogo.Da leitura <strong>de</strong> Friedman, po<strong>de</strong>-se inferir que o fato institucional novo trazidopela revisão judicial não é tanto criar uma força anti-majoritária (com todos osmelindres que isso <strong>de</strong>sperta na sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>fensores da <strong>de</strong>mocracia).Seria, ao contrário, cobrar o exercício <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> pelos outros agentespolíticos. É um ator diferente do legislador porque suas condições institucionaisfavorecem um ritmo diferenciado, um <strong>de</strong>senvolvimento interpretativo mais pausado,um obstáculo contra impulsos imediatos. A corte tem um papel pró-ativo a cumprir,mas, ainda assim, mo<strong>de</strong>sto em comparação a versões messiânicas convencionais. Elapassa, sob esse novo pano <strong>de</strong> fundo, a ser mais palatável e plausível, pois não tem aresponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvar a <strong>de</strong>mocracia. 405 Investigações positivas nos teriam403 “We should not (necessarily) junk the entire venture, at least until we have <strong>de</strong>termined – as the firstproject is <strong>de</strong>signed to do – what it adds or <strong>de</strong>tracts” (“Birth of an Aca<strong>de</strong>mic Obsession”, p. 258-259).404 Preocupação que está presente no <strong>de</strong>bate cana<strong>de</strong>nse (Hogg e Hiebert, p. ex.), conforme veremosadiante.405 “The problem of the countermajoritarian difficulty is that it overstates the role of courts and thusun<strong>de</strong>rstates society’s responsibility. My point is that we should neither un<strong>de</strong>rstate nor overstate the roleof courts; we must account accurately for the critical role of the rest of society, the people” (“Dialogueand Judicial Review”, p. 682).151


mostrado que tanto o temor <strong>de</strong> subversão <strong>de</strong>mocrática quanto a esperançasalvacionista em relação à revisão judicial estariam <strong>de</strong>scalibrados. 406Não é a revisão judicial que conseguirá travar uma ampla e consistentemobilização majoritária, caso se esteja preocupado com isso. A revisão judicialcontribui, porém, para combater a inércia, a omissão e a indiferença legislativas, areduzir o afastamento e a dissonância entre representante e representado. Ela tem acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> subverter o status quo, mas não <strong>de</strong> maneira revolucionária. A ela nãobasta encontrar a <strong>de</strong>cisão certa <strong>de</strong> princípio. Vislumbrar alianças é fundamental parauma instituição que não tem nem a espada nem o cofre, na expressão <strong>de</strong> Hamilton aque Friedman recorre com freqüência. É um ator <strong>de</strong>ntro do jogo político, e precisaatrair aliados.3.2 O <strong>de</strong>bate cana<strong>de</strong>nse: a Carta <strong>de</strong> <strong>Direitos</strong> e a Seção 33A Carta <strong>de</strong> <strong>Direitos</strong> e Liberda<strong>de</strong>s (Charter of Rights and Freedoms), <strong>de</strong> 1982,é um divisor <strong>de</strong> águas na história constitucional cana<strong>de</strong>nse. Até então, o Canadá viviasob a égi<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma “<strong>de</strong>claração legislativa <strong>de</strong> direitos” (statutory bill of rights), <strong>de</strong>1960, instrumento sem status constitucional e tido como pouco efetivo. Essaestratégia anterior <strong>de</strong> institucionalização <strong>de</strong> direitos teria gerado uma postura tímidados juízes, ainda muito apegados a uma leitura dos direitos pelas lentes da soberaniado parlamento, pois este não po<strong>de</strong>ria sofrer invalidação <strong>de</strong> seus atos em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>inconstitucionalida<strong>de</strong>.A Carta coloca os direitos num novo plano hierárquico e reposiciona ojudiciário na estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Não foi uma mudança imune a críticas.Representou a vitória intelectual daqueles que consi<strong>de</strong>ram a revisão judicialnecessária para a concretização <strong>de</strong> direitos na <strong>de</strong>mocracia. Segundo seus <strong>de</strong>fensores, aCarta acrescenta uma nova linguagem, até então tímida, aos <strong>de</strong>bates coletivos. A406 “The fact of constraint calls this story into question” (“The Politics of Judicial Review”, p. 317; cf.também p. 309).152


transição do status legislativo para o constitucional geraria maior potência parainfundir uma cultura <strong>de</strong> direitos no Canadá. 407Não se tratou, contudo, <strong>de</strong> mera importação <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo canônico <strong>de</strong>controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. Em razão da preocupação com a “dificulda<strong>de</strong> contramajoritária”,criou-se um mo<strong>de</strong>lo com uma característica singular. A Seção 33 <strong>de</strong>u aoparlamento o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> recusar que uma lei aprovada seja objeto <strong>de</strong> revisão judicial.Esse ato tem duração <strong>de</strong> 5 anos, prazo que po<strong>de</strong> ser renovado pelas legislaturasseguintes. 408 Para aqueles que temiam a supremacia judicial, conce<strong>de</strong>u-se uma válvula<strong>de</strong> escape que institucionalizou a resposta legislativa: se o legislador não aceitar aposição da corte, ele tem condições <strong>de</strong> impor-se. Apesar <strong>de</strong> praticamente não utilizadanesses mais <strong>de</strong> 25 anos <strong>de</strong> existência da Carta, talvez pelo ônus político e simbólicoque ela traz ao legislador, a Seção 33 é elemento que integra a forma <strong>de</strong> a teoriaconstitucional cana<strong>de</strong>nse perceber o diálogo, pois ela o teria oficializado efacilitado. 409Diálogo como “seqüência legislativa” e seus críticosFoi somente em 1997, com um artigo seminal <strong>de</strong> Peter Hogg e Alison Bushell,que se inaugurou o <strong>de</strong>bate cana<strong>de</strong>nse nos termos <strong>de</strong> “diálogo”. 410 Os autores fizeramum levantamento empírico <strong>de</strong> todos os casos em que, nesses 15 anos, a corte <strong>de</strong>clarou407 A literatura sobre o papel da Carta <strong>de</strong> <strong>Direitos</strong> na cultura política cana<strong>de</strong>nse é prolífica. Uma boaporta <strong>de</strong> entrada é Janet Hiebert, Charter Conflicts: What is Parliament’s Role?.408 A Seção 33 é conhecida como a “notwithstanding clause” ou “overri<strong>de</strong>”. A Seção 1, conhecidacomo “limitation clause”, é também tida como central na idéia <strong>de</strong> diálogo no Canadá. Trata-se <strong>de</strong> umdispositivo que permite ao legislador restringir direitos <strong>de</strong> acordo com limites razoáveis e justificáveis.É curiosa a celebração da novida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse dispositivo, afinal a dogmática constitucional sempretrabalhou com base na premissa <strong>de</strong> que direitos não são absolutos e que, portanto, estão sujeitos alimites. A possibilida<strong>de</strong> da limitação seria uma cláusula necessariamente implícita numa <strong>de</strong>claração <strong>de</strong>direitos. De qualquer modo, no Canadá, essa cláusula parece ter sido importante para disciplinar umalinguagem <strong>de</strong> justificação dos limites aos direitos mais aberta ao balanceamento, relativizando a idéiarígida <strong>de</strong> direitos como “trunfos”. É a opinião <strong>de</strong> Janet Hiebert: “The inclusion of an explicit limitationclause is more conducive to a rigorous and open <strong>de</strong>bate about the merits and justification of policychoices than if the Charter was silent on the question of limitations” (Limiting Rights: The Dilemma ofJudicial Review, p. 153).409 Conforme Stephen Gardbaum, essa foi a pretensão da Seção 33: “In this way, beneficial dialoguebetween courts and legislatures would replace the American mo<strong>de</strong>l’s judicial monologue”. Mas eleargumenta que, pelo seu escasso uso, a Seção 33 não teria conseguido criar efetivamente um mo<strong>de</strong>lomais fraco <strong>de</strong> revisão judicial (“The New Commonwealth Mo<strong>de</strong>l of Constitutionalism”, p. 23).410 “The Charter Dialogue Between Courts and Legislatures (Or Perhaps the Charter of Rights Isn’tSuch a Bad Thing After All)”.153


a inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma lei. Buscaram, então, verificar se houve e qual teriasido a reação do legislador.Descobriram que na maioria absoluta dos casos o parlamento respon<strong>de</strong>u pormeio <strong>de</strong> uma “seqüência legislativa” (legislative sequel); que essa resposta foigeralmente imediata; que os legisladores se engajaram na linguagem da Carta (pormeio <strong>de</strong> preâmbulos e <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> princípios); e que, mesmo quando a lei não é<strong>de</strong>clarada inconstitucional, o <strong>de</strong>bate público <strong>de</strong>spertado po<strong>de</strong> levar o legislador aatentar-se para problemas na lei e eventualmente a alterá-la. 411 O silêncio legislativo,portanto, foi a exceção. A intensificação <strong>de</strong> uma interação argumentativa, a regra.Consi<strong>de</strong>ram que toda resposta legislativa, quando feita como reaçãoconsciente à <strong>de</strong>cisão judicial, mesmo que aquiesça à posição da corte, exemplifica umtipo <strong>de</strong> diálogo. Discordam <strong>de</strong> que a a<strong>de</strong>são à corte não o configure, pois acreditamque o acordo e o convencimento são sempre um resultado possível <strong>de</strong>sse processo.Não se po<strong>de</strong>, por isso, presumir uma <strong>de</strong>ferência passiva nessas circunstâncias. Quandoa <strong>de</strong>cisão judicial <strong>de</strong>ixa em aberto a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resposta legislativa, seriapertinente caracterizar o processo como um diálogo. Nesses casos, a revisão judicialnão é um veto, mas o começo <strong>de</strong> uma comunicação inter-institucional a respeito <strong>de</strong>como conciliar direitos individuais com os objetivos <strong>de</strong> políticas econômicas esociais. 412 Provoca-se um <strong>de</strong>bate público qualificado, que não ocorreria sem a <strong>de</strong>cisãojudicial. A corte força um tema que não apareceria na agenda legislativa. 413 Olegislador, por sua vez, não se vê amarrado, pois po<strong>de</strong> perseguir os mesmos fins poroutros meios. 414 Nos raros casos em que isso não ocorre, po<strong>de</strong> lançar mão da Seção 33ou, como o fez algumas vezes, insistir com a mesma lei, mas recorrendo a umaargumentação mais profunda no preâmbulo411 Ibid, p. 101-104.412 Ibid, p. 105. Ou então na seguinte passagem: “The Charter can act as a catalyst for a two-wayexchange between the judiciary and legislature on the topic of human rights and freedoms, but it rarelyraises an absolute barrier to the wishes of the <strong>de</strong>mocratic institutions” (Ibid., p. 81).413 Ibid, p. 79.414 Numa primeira resposta aos críticos, Hogg e Bushell assim afirmaram: “In the end, if the <strong>de</strong>mocraticwill is there, a legislative way will be found to achieve the objective, albeit with some new safeguardsto protect individual rights” (“The Charter Dialogue Between Courts and Legislatures”, p. 22).154


Advertem que essa constatação não apresenta propriamente uma justificativanormativa para a existência da revisão judicial. Limitam-se a <strong>de</strong>screver um fato que,possivelmente, torna a objeção contra a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática da revisão judicialmenos plausível, ou menos convincente. Mostram que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> revisão judicialcana<strong>de</strong>nse é menos ofensivo do que os críticos supõem.O artigo teve enorme repercussão na literatura constitucional cana<strong>de</strong>nse, comautores que o apoiaram e <strong>de</strong>senvolveram a idéia, e outros que a criticaram. Repercutiutambém na própria corte, com juízes que compraram a imagem e passaram a seenxergar como “interlocutores” no diálogo. O autor que veio a dar fundamentaçãoteórica <strong>de</strong> maior fôlego a essa idéia foi Kent Roach. Segundo ele, a <strong>de</strong>mocracia tornasemais auto-consciente, auto-crítica e real quando os extremos da supremacia judicialou legislativa são evitados. Cortes e parlamentos atuam em conjunto e dão respostasàs respectivas miopias. 415 Uma vez que se percebe que a corte não tem a últimapalavra, a principal preocupação não <strong>de</strong>ve ser com limitar o po<strong>de</strong>r judicial, e sim coma forma pela qual ele po<strong>de</strong> otimizar e reforçar a <strong>de</strong>mocracia. 416 Lembra que teorias dodiálogo não fornecem respostas certas para os casos difíceis <strong>de</strong> interpretação, mas<strong>de</strong>spertam um processo no qual todos participam na busca <strong>de</strong>ssa resposta. Recusa omonólogo da supremacia legislativa ou judicial. 417 A corte não impe<strong>de</strong> que oparlamento prevaleça, se este quiser, mas o induz a assumir a responsabilida<strong>de</strong>política e a apresentar justificativas aceitáveis para qualquer restrição a direito.Consegue-se, por meio <strong>de</strong>ssa estratégia, aumentar o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> ambas asinstituições. 418 O maior perigo para a <strong>de</strong>mocracia, segundo Roach, não seria oativismo judicial, mas a <strong>de</strong>ferência legislativa. Ativismo judicial se respon<strong>de</strong>, nessesentido, com ativismo legislativo. 419415 The Supreme Court on Trial: Judicial Activism or Democratic Dialogue, p. x.416 Ibid, p. 236.417 Ibid, p. 251.418 “A constructive and <strong>de</strong>mocratic dialogue between courts and legislatures un<strong>de</strong>r a mo<strong>de</strong>rn bill ofrights such as the Charter can improve the performance of both institutions. (…) The <strong>de</strong>mocraticdialogue (…) can avoid the monologues and unchecked power that may be produced by eitherunfettered legislative supremacy or unfettered judicial supremacy” (Ibid, p. 295).419 “The answer to unacceptable judicial activism un<strong>de</strong>r a mo<strong>de</strong>rn bill of rights is legislative activismand the assertion of <strong>de</strong>mocratic responsibility for limiting or overriding the Court’s <strong>de</strong>cisions. Citizenscan enjoy the benefits of judicial activism without the costs of judicial supremacy. (…) Mo<strong>de</strong>rn bills ofrights and their robust judicial enforcement allow governments to be put on trial… But the Court is alsoon trial… In the end, all of us are on trial for how we exercise the powers of self-government. That isthe bur<strong>de</strong>n and the privilege of <strong>de</strong>mocracy” (Ibid, p. 296).155


Essa tese não foi recebida sem resistência. Manfredi e Kelly foram osprimeiros a atacar frontalmente as conclusões <strong>de</strong> Hogg e Bushell. 420 Argumentaramque a pesquisa empírica possuía falhas metodológicas e que o fenômeno eraquantitativamente menos extenso e qualitativamente mais complexo do quepropugnado. Essencialmente, disseram que “diálogo genuíno” só ocorre quando oparlamento <strong>de</strong>safia a posição da corte (insistindo na mesma lei, por exemplo) e nãoquando simplesmente a obe<strong>de</strong>ce. Num diálogo genuíno, não há hierarquia na relação.Sempre que o legislador se subordina à <strong>de</strong>cisão judicial, haveria a distorção dapolítica pública e <strong>de</strong>bilitação da <strong>de</strong>mocracia. 421Rainer Knopff também não aceita a caracterização <strong>de</strong>sse fenômeno comodiálogo. 422 Segundo ele, cortes intensificam em vez <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rar o extremismo e apolarização <strong>de</strong> um conflito <strong>de</strong> direitos. A <strong>de</strong>cisão judicial, sob aparente neutralida<strong>de</strong>,faz um dos lados do extremo ganhar e o outro sentir-se <strong>de</strong>rrotado. A idéia da cortecomo anteparo à tirania da maioria seria um mito. Mais freqüentemente, o processolegislativo tem a aptidão para encontrar um meio-termo que acomo<strong>de</strong> os conflitos. Amo<strong>de</strong>ração e o compromisso, virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong>mocrática, passam ao largodas cortes, e a noção <strong>de</strong> diálogo não resolveria esse problema. 423Morton argumenta que, ao contrário da retórica que opõe maioria e minoria,na gran<strong>de</strong> parte das disputas sobre direitos na <strong>de</strong>mocracia há um conflito entre duasminorias ativas e uma gran<strong>de</strong> massa majoritária instável e <strong>de</strong>sorganizada. O que a<strong>de</strong>cisão judicial faz, nesse sentido, é inverter o status quo: em vez da prevalência daposição da minoria que se mobilizou e conseguiu, oportunamente, uma coalizãomajoritária no processo legislativo, passa a valer a preferência da minoria <strong>de</strong>rrotada.Se por um lado é verda<strong>de</strong> que a <strong>de</strong>cisão judicial não constitui barreira absoluta, emalguns assuntos <strong>de</strong>licados que ameaçam fraturar a unida<strong>de</strong> partidária, o custo político<strong>de</strong> enfrentar a minoria que per<strong>de</strong>u no parlamento e venceu na corte po<strong>de</strong> ser muito420 Cf. Manfredi e Kelly, “Six Degrees of Dialogue: A Response to Hogg and Bushell”.421 Esse é também um argumento conhecido <strong>de</strong> Mark Tushnet em “Policy Distortion and DemocraticDebilitation”. Como vimos no capítulo 3, nesse texto Tushnet recomenda a recuperação daspreocupações <strong>de</strong> Thayer e Bickel, para quem uma revisão judicial “mais do que mínima” causa<strong>de</strong>bilitação <strong>de</strong>mocrática e distorção da política pública.422 “Courts don’t make good compromises”.423 “As a system of checks and balances, a ‘dialogue’ of the unaccountable holds little attraction,especially if, as I think, it will not often achieve the central purpose of any good system of checks andbalances: political mo<strong>de</strong>ration and compromise” (Ibid, p. 34).156


alto. Isso impacta a política pública. 424 Por isso, o que Hogg e Bushell nomearamcomo diálogo, seria mais freqüentemente um monólogo, em que juízes falam elegisladores escutam. 425Para Andrew Petter, teorias do diálogo teriam três <strong>de</strong>feitos: exageram acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o legislador respon<strong>de</strong>r; subestimam a posição privilegiada das cortes,que se expressam na retórica dos direitos, em face do legislador, que maisfreqüentemente o faz na linguagem dos limites; ignoram a forma pobre pela qual osdireitos têm impregnado o <strong>de</strong>bate público, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qualquer diálogo. 426Um caminho mais a<strong>de</strong>quado para a teoria <strong>de</strong>mocrática seria perseguir oaperfeiçoamento institucional do parlamento, e não celebrar uma instituição não eleitaque supostamente ameniza os problemas da outra. 427Por fim, Janet Hiebert é, no <strong>de</strong>bate cana<strong>de</strong>nse, a que oferece uma versão mais<strong>de</strong>nsa e normativamente trabalhada da corrente da “construção coor<strong>de</strong>nada”. Temsérias reservas à noção <strong>de</strong> Hogg e Bushell porque, segundo ela, eles atribuem à corteum papel corretivo incompatível com o seu i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> “responsabilida<strong>de</strong>scompartilhadas” e <strong>de</strong> “governo por meio do <strong>de</strong>bate”. Para ela, a interação não po<strong>de</strong>ser regida pela corte. Ambas as instituições possuem expertises singulares queprecisam ser reconhecidas. Nessa comparação <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>s institucionais, mostra424 “The observation is right, but the conclusion they draw from it wrong. Nullification does not have toraise an absolute barrier. Depending on the circumstances, a small barrier may suffice to permanentlyalter the public policy” (“Dialogue or Monologue”).425 O incômodo com a palavra “diálogo”, que supostamente estaria encobrindo a subordinação dolegislador e a hierarquia <strong>de</strong>ssa relação, é manifestado também por alguns outros autores. GrantHuscroft é outro crítico <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, que consi<strong>de</strong>ra tal teoria uma conveniente racionalização doativismo judicial: “I am all in favor of a dialogue between the Supreme Court and the other branches ofgovernment in Canada about the meaning of the Charter, in which the Court would respect and beinfluenced by the legislature’s interpretation of the Charter. But this is not the sort of dialogue thatdialogue theorists have in mind. (…) The ‘dialogue’ they have in mind is one in which the Court is freeto interpret the Charter as it will, with the legislature required to adopt the Court’s interpretation andact within such parameters as the Court allows. This is not a dialogue. It is top-down constitutionalism,and it is a poor way in which to run a constitutional <strong>de</strong>mocracy” (“Rationalizing Judicial Power: TheMischief of Dialogue Theory”, em The Charter at 25).426 “Twenty Years of Charter Justification: From Liberal Legalism to Dubious Dialogue”, p. 196.427 “I am not suggesting that there is not cause for <strong>de</strong>spair about the current state of Canadian<strong>de</strong>mocracy. On the contrary, it seems to me that our parliamentary structures are horriblyunrepresentative of, and accountable to, the citizens they are supposed to serve. But subjecting one<strong>de</strong>mocratic institution to review by another does not make either less so. And celebrating theinteraction of the two as a ‘<strong>de</strong>mocratic dialogue’ trivializes <strong>de</strong>mocracy (…) Rather than directing ourenergies to what Laurence Tribe has called ‘the futile search for legitimacy’, or looking for <strong>de</strong>mocracywhere it does not resi<strong>de</strong>, we would do better to try resuscitating it where it does, by seeking ways toreform and revitalize the faltering institutions of the <strong>de</strong>mocratic state” (Ibid, p. 198).157


que cortes e parlamentos analisam problemas sob prismas diferenciados. Juízes nãoestariam bem posicionados para avaliar quais os melhores ou piores meios escolhidospelo legislador para perseguir seus objetivos. 428 Seriam capazes, todavia, <strong>de</strong> fiscalizarse a <strong>de</strong>liberação legislativa foi <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> e se houve um esforço sincero <strong>de</strong>balancear os direitos e seus limites.A ambiciosa missão política da Carta <strong>de</strong> <strong>Direitos</strong>, segundo Hiebert, foiimpregnar a prática justificadora dos três po<strong>de</strong>res, e não <strong>de</strong> simplesmente atribuir àcorte a tarefa <strong>de</strong> policiar os outros, supostos violadores em potencial. Essa atitu<strong>de</strong>reduziria a responsabilida<strong>de</strong> dos outros po<strong>de</strong>res, e traria o risco <strong>de</strong> que eles, receososdo controle externo, usem <strong>de</strong> meios acanhados para implementar seus objetivos. 429Rechaça, veementemente, a hegemonia judicial como condição da proteção <strong>de</strong>direitos, e propõe que as responsabilida<strong>de</strong>s sejam estabelecidas em termos relacionaise horizontais. Supõe que corte e parlamento <strong>de</strong>vam ter um grau <strong>de</strong> modéstia sobre asuperiorida<strong>de</strong> dos seus julgamentos e respeito em relação à opinião diversa dooutro. 430 Para Hiebert, não se po<strong>de</strong> cair na armadilha cínica (por recusar qualquer valormoral a interpretações do parlamento) e estreita (por restringir o significado daconstituição ao que a corte estabelece) quando se pensa no papel dos po<strong>de</strong>res sob aégi<strong>de</strong> da Carta. 431 Um regime não precisa fazer uma opção exclu<strong>de</strong>nte por umainstituição em lugar da outra. 432 O legislador não po<strong>de</strong> ter aversão ao risco <strong>de</strong> umarevisão judicial, pois <strong>de</strong>ve enxergar a si mesmo como parceiro dotado <strong>de</strong> iguallegitimida<strong>de</strong> para interpretar as normas constitucionais. Em gran<strong>de</strong> medida, oparlamento terá a corte que merece: se praticar uma <strong>de</strong>liberação sincera e cuidadosa, a428 Limiting Rights: The Dilemma of Judicial Review, p. 121-125.429 Charter Conflicts: What is Parliament’s Role?, p. 18-19.430 “A relational approach conveys separate yet interconnected approaches taken to ren<strong>de</strong>r judgment.Unlike many explanations of constitutional dialogue, it contemplates the Charter’s significance more interms of requiring careful scrutiny by each institution of governance than in terms of the judiciarypolicing or correcting the ‘wrong’ <strong>de</strong>cisions of the legislature” (Ibid, p. 51).431 Ibid, p. 54.432 “‘Are judges or elected representatives more likely to have better answers to rights conflicts?’ Myanswer is: Why must a polity choose one set of institutional actors and excuse or exclu<strong>de</strong> the others?Better answers are likely to emerge when they are the products of carefully reasoned judgments aboutwhether state actions are justified in light of a polity’s fundamental normative values” (Ibid, p. 72).158


probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sofrer invalidação será menor. 433 Caso isso ocorra, não <strong>de</strong>ve inibir-seem <strong>de</strong>monstrar que suas justificativas são consistentes e produto <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberaçãotransparente.Hogg e Bushell respon<strong>de</strong>ram a parte <strong>de</strong>ssas críticas. Primeiro, num artigocurto dirigido a Manfredi e Kelly. 434 Quanto à distorção da intenção legislativa,sustentaram que não é qualquer interferência judicial que abalará os objetivos dapolítica pública. Uma generalização <strong>de</strong>sse tipo não percebe que o legislador temmeios diversos para perseguir os mesmos fins, e eventualmente po<strong>de</strong> aceitar umalternativo em face da argumentação judicial, sem prejudicar substancialmente apolítica pública. 435 Quanto à falta <strong>de</strong> diálogo genuíno, simplesmente afirmaram quesua intenção com o uso <strong>de</strong>ssa metáfora teria sido mais mo<strong>de</strong>sta. Limitam-se averificar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o legislador, se quiser, respon<strong>de</strong>r à corte. Nesse sentido, sea <strong>de</strong>cisão judicial culminou num “extremismo”, nada impe<strong>de</strong> que o parlamento aenfrente, mesmo que, muitas vezes, prefira não fazê-lo. O fato <strong>de</strong> não o fazerem,a<strong>de</strong>mais, po<strong>de</strong> bem indicar que a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática não é assim tão sólida.Portanto, não haveria por que acusar a <strong>de</strong>cisão judicial <strong>de</strong> ir contra ela.A resposta mais extensa e elaborada veio somente em 2007, numa ediçãocomemorativa da mesma revista para marcar os <strong>de</strong>z anos do artigo original. Essaedição foi aberta por um novo artigo dos autores, alguns novos comentários doscríticos, e, por fim, uma síntese conclusiva <strong>de</strong> Hogg e Bushell. Ali, tiveram aoportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enfrentar a vasta fortuna crítica e <strong>de</strong> reafirmar, com pesquisaempírica atualizada, o argumento inicial e a sobrevivência das “seqüênciaslegislativas”. Dizem que as críticas fizeram barulho exagerado por causa da metáforasugerida. Salientam que estão mais preocupados com a <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> um fato esuas conseqüências para a legitimida<strong>de</strong> da corte. Não entrariam em disputa se um433 “The extent to which Parliament will be able to convince the judiciary about the merits of how itbelieves Charter conflicts should be resolved may be a direct reflection of the extent of its commitmentto careful and principled judgment. To a consi<strong>de</strong>rable <strong>de</strong>gree, Parliament is likely to get the kinds ofjudicial rulings it <strong>de</strong>serves” (Ibid, p. 227).434 “Reply to Six Degrees of Dialogue”.435 “Our point is that judicially-imposed constitutional norms rarely <strong>de</strong>feat a <strong>de</strong>sired legislative policy;they generally operate at the margins of legislative policy, affecting issues of process, enforcement, andstandards, all of which can accommodate most legislative objectives” (Ibid, p. 534).159


novo termo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que mais a<strong>de</strong>quado, fosse sugerido para referir-se a tal fato. 436Mostram que o fenômeno do diálogo, tal como o <strong>de</strong>finiram no artigo, ein<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qual seja a melhor palavra para <strong>de</strong>signá-lo, está vivo e sedisseminou na prática constitucional cana<strong>de</strong>nse.A noção foi incorporada à auto-percepção da corte, não sem divergênciasinternas sobre suas implicações. Nesses <strong>de</strong>z anos, a prática do diálogo se refinou,especialmente porque alguns casos <strong>de</strong> “réplica” do legislador (“second-look cases”),ou seja, casos em que o legislador insiste numa lei anteriormente <strong>de</strong>claradainconstitucional, começaram a chegar à mesa da corte. Esses casos são interessantespara testar o eventual papel normativo da noção <strong>de</strong> diálogo. O argumento originaldisse que a corte não tem a última palavra porque o parlamento po<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r. Oparlamento respon<strong>de</strong>u e o problema voltou para a corte. O fato <strong>de</strong> ser uma “réplica”, enão uma lei promulgada pela primeira vez, tem alguma importância para a avaliação<strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>?A corte se dividiu sobre eventual grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>ferência que esses casosmereceriam. Alguns juízes chegaram a usar a noção <strong>de</strong> diálogo para justificar a<strong>de</strong>ferência. Outros resistiram e disseram que diálogo não po<strong>de</strong>ria ser transformado emabdicação. A juíza McLachlin resumiu sua posição em frase irônica: “A saudável eimportante promoção do diálogo entre cortes e parlamentos não <strong>de</strong>veria ser rebaixadaa uma regra que diz: ‘se você não foi bem sucedido da primeira vez, tente, tente <strong>de</strong>novo”. 437Os próprios autores (Hogg e Bushell) rejeitam o uso da metáfora parajustificar a <strong>de</strong>ferência, e posicionam-se <strong>de</strong> modo contrário à teoria da “construçãocoor<strong>de</strong>nada”. 438 Acreditam que a constituição cana<strong>de</strong>nse, sob pena <strong>de</strong> anarquia436 “Charter Dialogue Revisited – or ‘Much Ado About Metaphors’”, p. 26: “We never ma<strong>de</strong> theridiculous suggestion that courts and legislatures were actually talking to each other. (…) We wouldcheerfully adopt another word if we were persua<strong>de</strong>d that another word is better, but no one has so farsuggested a better word”. Ou, na conclusão do artigo, p. 54: “although we do not carry a torch for theword ‘dialogue’ as the only possible <strong>de</strong>scription for the phenomenon of legislative responses to judicial<strong>de</strong>cisions un<strong>de</strong>r Charter, we say that our critics should <strong>de</strong>al with the significance of the phenomenon,rather than making ‘much ado about metaphors’”.437 Ibid, p. 22-23.438 A Hiebert respon<strong>de</strong>ram diretamente, mostrando uma discordância <strong>de</strong> grau: “We do not take the i<strong>de</strong>aas far as Hiebert, as we believe that the ultimate ‘reasonable limits’ <strong>de</strong>termination must be ma<strong>de</strong> by the160


interpretativa, não permite que o parlamento compartilhe <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> para fazerprevalecer a sua opinião a respeito da constituição. Defen<strong>de</strong>m uma posição que po<strong>de</strong>parecer curiosa: o judiciário tem sim o monopólio sobre a interpretação final daconstituição (que po<strong>de</strong> ser certa ou errada), mas suas <strong>de</strong>cisões dificilmente impedirãoa resposta legislativa. 439 A principal exceção à autorida<strong>de</strong> interpretativa final da corteseria o recurso à Seção 33. Além disso, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> fatos novos, o parlamentopo<strong>de</strong>ria apresentar à corte justificativas diferentes, o que teria o efeito saudável <strong>de</strong>provocar a corte revisitar <strong>de</strong>cisões passadas. 440Dito <strong>de</strong> outro modo, do ponto <strong>de</strong> vista jurídico-normativo, o significado daconstituição é <strong>de</strong>terminado, em último grau, pela corte. No entanto, empiricamente,verifica-se que o parlamento encontra espaço para respon<strong>de</strong>r e perseguir seusobjetivos. Isso traria um sério <strong>de</strong>safio à objeção majoritária contra a revisãojudicial. 441 Os autores são cautelosos, entretanto, para <strong>de</strong>rivar daí uma justificativanormativa para existência <strong>de</strong>sse arranjo. Não concordam com o uso que <strong>de</strong>sse fatofazem alguns juízes para justificar uma postura ativista ou <strong>de</strong>ferente da corte, mas<strong>de</strong>stacam que não se po<strong>de</strong> negligenciar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a corte seja persuadidapelo parlamento nesse processo, ou vice-versa. Claramente, os autores tangenciam,ainda que não <strong>de</strong> maneira confortável, a preferência normativa pela revisão judicial.Em diversas passagens, <strong>de</strong>monstram que esse arranjo não é apenas um dadocourts. Yet, we agree that some <strong>de</strong>gree of <strong>de</strong>ference should be accor<strong>de</strong>d to legislatures on section 1matters” (Ibid, p. 49).439 Ibid, p. 33.440 Um ponto <strong>de</strong> vista criativo e instigante, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma “hipótese mo<strong>de</strong>rada” <strong>de</strong> construçãocoor<strong>de</strong>nada, foi oferecido por Dennis Baker e Rainer Knopff em “Minority Retort: A ParliamentaryPower to Resolve Judicial Disagreement in Close Cases”. Eles tentam dar fundamentação teórica àatitu<strong>de</strong> do parlamento num caso em que, em vez <strong>de</strong> seguir a <strong>de</strong>cisão final da corte em controle <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong>, optou por obe<strong>de</strong>cer a posição dos votos vencidos. Num caso em que a <strong>de</strong>cisão dacorte se dá por maioria mínima <strong>de</strong> 5 a 4 (os chamados “close cases”), eles <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>o parlamento seguir a variante interpretativa da parte <strong>de</strong>rrotada, presumivelmente também razoável efundada em argumento <strong>de</strong> princípio. A “minority retort”, conforme <strong>de</strong>finem, é um <strong>de</strong>sdobramentoenriquecedor do diálogo e dá peso também aos votos vencidos: “Simply put, the Court chooses themenu and the legislature makes the or<strong>de</strong>r. By managing the available alternatives, the Court stillconstraints the ability of the legislature to influence constitutional interpretation” (p. 355). Os autorespercebem as sutis diferenças simbólicas (e as implicações políticas) do julgamento unânime e dojulgamento por maioria mínima (close cases) para fins do diálogo e do <strong>de</strong>safio legislativo. Po<strong>de</strong>ríamosir além e especular sobre a maior resistência que uma <strong>de</strong>cisão unânime eventualmente tem contra o<strong>de</strong>safio legislativo, ou sobre as diferenças entre uma opinião genuinamente <strong>de</strong>liberativa e institucionale a opinião agregativa (seriatim). Neste caso, o legislador interessado em <strong>de</strong>safiar a corte teria quepersuadir juízes individuais. Naquele, teria que convencer a instituição.441 “since the last word can nearly always be (and usually is) that of the legislature, the antimajoritarianobjection is not particularly strong” (cf. “Charter Dialogue Revisited – or ‘Much AdoAbout Metaphors’”, p. 44).161


inofensivo, mas uma instituição que acrescenta valor. Defen<strong>de</strong>m a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> ummecanismo que mitiga a inércia do parlamento e o força a posicionar-se sobrequestões políticas controversas ou, usando palavras <strong>de</strong> Roach, que fabrica <strong>de</strong>sacordose converte monólogos majoritários complacentes em diálogos intensos. 442Em síntese, para Hogg e Bushell, a chave para a existência do diálogo é apossibilida<strong>de</strong> da seqüência legislativa. Não estão preocupados com os efeitos dainteração no comportamento dos agentes e nem abordam as negociações informaisentre os po<strong>de</strong>res que eventualmente se antecipam à posição do outro. Sua pretensãoteórica foi verificar com mais vagar se a preocupação com o elemento anti-majoritáriodo regime merecia tanto alar<strong>de</strong>. Perceberam que, se o legislador é capaz <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r,e <strong>de</strong> fato o tem feito com freqüência, o problema, caso exista, é muito menor do quese supunha. O processo que <strong>de</strong>screvem é guiado pela corte. O legislador é reativo.São entusiastas do diálogo, mas sem abandonar a noção <strong>de</strong> “última palavra”, quecontinuaria, constitucionalmente, com a corte, e, na prática, com o legislador.Novos experimentos no constitucionalismo do commonwealthSuce<strong>de</strong>ndo a experiência cana<strong>de</strong>nse, outros países do chamadoconstitucionalismo do commonwealth também ingressaram no projeto <strong>de</strong> reformasinstitucionais com vistas ao duplo objetivo <strong>de</strong> proteger direitos e escapar da“dificulda<strong>de</strong> contra-majoritária”, conce<strong>de</strong>ndo a última palavra ao legislador.Juntamente com o Canadá, o Reino Unido e a Nova Zelândia compõem hoje uma dasexperimentações mais interessantes do direito constitucional comparado. A literaturaconstitucional <strong>de</strong>sses dois países tem sido influenciada pelo fértil <strong>de</strong>bate cana<strong>de</strong>nse arespeito do diálogo.Stephen Gardbaum compara minuciosamente as características <strong>de</strong>ssas trêsreformas. 443 A expansão do constitucionalismo nas ondas do pós-Segunda Guerra e dopós-Queda do Muro <strong>de</strong> Berlim teria reproduzido, basicamente, os três elementosessenciais do mo<strong>de</strong>lo americano: direitos com status jurídico superior em relação àlegislação; o entrincheiramento dos direitos contra reforma legislativa; a proteção pela442 Ibid, p. 45: “Surely <strong>de</strong>mocracy is served, not hampered, by forcing the discussion of controversialissues that otherwise might be neglected”.443 “The New Commonwealth Mo<strong>de</strong>l of Constitutionalism”.162


evisão judicial. A distinção entre controle difuso e controle concentrado seria já um<strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong>ssa espinha dorsal americana. Disseminou-se uma mentalida<strong>de</strong>rígida com dois pólos exclu<strong>de</strong>ntes, sem meio-termo: ou a supremacia legislativa, ou aproteção <strong>de</strong> direitos por meio da revisão judicial nos mol<strong>de</strong>s americanos.Nesses países do commonwealth, elementos essenciais do mo<strong>de</strong>lo americanoestão ausentes. Abriram uma alternativa intrigante que rejeita o axioma segundo oqual a supremacia legislativa é incompatível com proteção <strong>de</strong> direitos. Criaram, emoposição do mo<strong>de</strong>lo forte americano (strong judicial review), formas fracas <strong>de</strong> revisãojudicial (weak), uma terceira via comparável somente com o mo<strong>de</strong>lo francês.A Declaração <strong>de</strong> <strong>Direitos</strong> da Nova Zelândia (New Zealand Bill of Rights Act),<strong>de</strong> 1990, é uma espécie sui generis <strong>de</strong> lei. Tem força jurídica menor do que uma leiordinária, pois não revoga uma lei anterior que conflite com ela. Seu método <strong>de</strong>efetivação dos direitos é engenhoso. Impõe-se à corte o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> interpretar as leis <strong>de</strong>maneira consistente com os direitos e ao legislador <strong>de</strong> pagar os custos políticos <strong>de</strong>uma violação. 444 Uma lei inconsistente com a Declaração não po<strong>de</strong> ser invalidadajudicialmente, mas a corte controla o seu significado. É instrumento juridicamentesemelhante à <strong>de</strong>claração legislativa <strong>de</strong> direitos cana<strong>de</strong>nse, <strong>de</strong> 1960, mas foi recebidapor uma cultura judicial diversa: na Nova Zelândia, ao contrário <strong>de</strong> como ocorreu noCanadá, juízes têm sido entusiastas na proteção <strong>de</strong> direitos, um bom exemplo <strong>de</strong> quesoluções institucionais semelhantes surtem efeitos diferentes na respectiva cultura emque <strong>de</strong>cantam. O arranjo criado <strong>de</strong>ixa a última palavra com o parlamento, maspreten<strong>de</strong> induzi-lo a levar direitos a sério e a estar plenamente informado sobre asquestões <strong>de</strong> direitos por trás <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>cisão. 445A Declaração <strong>de</strong> <strong>Direitos</strong> do Reino Unido (UK Human Rights Act), <strong>de</strong> 1998,representa uma revolução no sistema constitucional britânico. Ela possibilitouquestionar, nas próprias cortes britânicas, a valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ato <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> à luz dos444 Ibid, p. 29.445 “Although the former do not <strong>de</strong>ny a legislature the power to act inconsistently with fundamentalrights, they seek to force the legislature into self-conscious, publicized, informed, and principled<strong>de</strong>bates regarding rights, requiring clear statements of legislative <strong>de</strong>cision to violate them. The generali<strong>de</strong>a is that it is appropriate for the legislature to have the final word on what is the law of the land butonly where there are mechanisms <strong>de</strong>signed to ensure that in its <strong>de</strong>cisionmaking procedures, rights aretaken seriously” (Ibid, p. 33).163


direitos previstos na Convenção Européia <strong>de</strong> <strong>Direitos</strong> Humanos. A simples existência<strong>de</strong> um catálogo <strong>de</strong> direitos já é uma mudança radical naquela tradição, mas o <strong>de</strong>senhotambém foi original: a corte tem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> interpretar as leis à luz dos direitos (o queimpacta a tradição hermenêutica britânica, mais formalista), e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> proferir uma“<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> incompatibilida<strong>de</strong>”. O parlamento, juridicamente, não tem <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>respon<strong>de</strong>r a essa <strong>de</strong>claração. Suas leis, contudo, não estão mais imunizadas contra ainvalida<strong>de</strong>, pois não têm po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> revogação da Convenção Européia. O único efeitoformal da “<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> incompatibilida<strong>de</strong>” é dar ao ministro o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> requerer umprocedimento acelerado na emenda da lei “incompatível”. Estabelece-se, sobretudo,uma expectativa política <strong>de</strong> que a norma “incompatível” será suprimida e que acultura jurídica esteja mais atenta aos direitos, até então ausentes do <strong>de</strong>batelegislativo. 446Essas três inovações ampliaram o cardápio institucional do direitoconstitucional comparado. Encontraram soluções intermediárias entre supremaciajudicial e supremacia legislativa, e confiaram em fórmulas institucionais originaisnuma área que não teve gran<strong>de</strong> inventivida<strong>de</strong> nos últimos 50 anos. Tentaramrespon<strong>de</strong>r ao problema da eventual <strong>de</strong>bilitação <strong>de</strong>mocrática por meio da retirada dapalavra final da corte e da atribuição <strong>de</strong> um ônus adicional <strong>de</strong> justificação à <strong>de</strong>cisãolegislativa. Buscaram transformar o discurso sobre direitos – em vez <strong>de</strong> monólogojudicial, estimulam um diálogo inter-institucional balanceado. Por fim, almejaramreforçar a legitimida<strong>de</strong> da corte por meio <strong>de</strong> uma divisão <strong>de</strong> trabalho que atenua apercepção <strong>de</strong> que a corte está engajada, sozinha, em pura ativida<strong>de</strong> discricionária oulegislativa.Estes são os exemplos recentes <strong>de</strong> reformas institucionais que apostam nãonuma revisão judicial salvacionista, que aplica um corretivo externo ao po<strong>de</strong>rlegislativo. São baseadas na esperança <strong>de</strong> que, por meio <strong>de</strong> alguns incentivosinstitucionais, o parlamento po<strong>de</strong> levar direitos a sério. A <strong>de</strong>cisão judicial não precisareceber, necessariamente, po<strong>de</strong>r formal para que seja capaz <strong>de</strong> influenciar ocomportamento do legislador, em nome da proteção <strong>de</strong> direitos. Conceberam-na <strong>de</strong>forma diferente: um mecanismo que conserva a linguagem dos direitos no interior do446 “Human Rights Act thus promises to force discourse about rights into the forefront of a legal culturefrom which they were previously largely absent” (Ibid, p. 35).164


<strong>de</strong>bate político, e que conta com sua força persuasiva para ser obe<strong>de</strong>cido. São opçõespor vias mais políticas do que jurídicas (no sentido <strong>de</strong> direito como comandovinculante ou sanção) para proteger direitos. Revela maior confiança na política e nas<strong>de</strong>mandas <strong>de</strong>liberativas que ela po<strong>de</strong> insuflar, em mecanismos mais sutis que fogemda armadilha <strong>de</strong> Marshall e Kelsen, 447 segundo a qual ou há força e “porrete”, ou nãohá proteção <strong>de</strong> direitos.Não há ainda tempo suficiente para avaliar se essas apostas foram bemsucedidas. Preten<strong>de</strong>r limitar o po<strong>de</strong>r do legislador por mecanismos <strong>de</strong> persuasão, <strong>de</strong>distribuição <strong>de</strong> custos políticos e ônus <strong>de</strong> justificação parece certamente um projetoingênuo e fadado ao fracasso (ou à manipulação retórica e <strong>de</strong>magógica).Previsivelmente, <strong>de</strong>sperta o ceticismo daqueles treinados pela ciência políticahegemônica. Nos EUA, o <strong>de</strong>senho constitucional está congelado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua fundação eas variações encontram-se nas práticas interpretativas. O fenômeno do diálogo, ali, foiuma <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong>ntro do mo<strong>de</strong>lo existente. Nesses três países do commonwealth, aocontrário, buscou-se instalar o diálogo por meio <strong>de</strong> reformas institucionais queamenizaram a matriz forte da revisão judicial.4. Quem e como e quando e por que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre direitos na <strong>de</strong>mocracia?A imagem do diálogo, como se pô<strong>de</strong> perceber <strong>de</strong>ssa longa <strong>de</strong>scrição, foifrutífera para atacar a idéia <strong>de</strong> “última palavra” (especialmente a judicial). Uma<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, portanto, não impe<strong>de</strong> que umacomunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática continue a se mover e reforme <strong>de</strong>cisões que não a agra<strong>de</strong>m.Certamente não é a única imagem disponível para inspirar a imaginação política arespeito. As alternativas mais presentes – última palavra, guardião etc. – trazem,porém, o risco <strong>de</strong> atrofiar a extensão da análise. Diálogo nos torna sensíveis ao fato <strong>de</strong>que na política, <strong>de</strong>cisões são provisórias, por mais custoso e <strong>de</strong>morado que sejarevertê-las. Traz para a discussão a dimensão temporal da política e <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>histórica da comunida<strong>de</strong>. No entanto, ela não po<strong>de</strong> justificar qualquer coisa, ouqualquer tipo <strong>de</strong> revisão judicial. É necessário pensar em condições para o seu447 Refiro-me ao argumento clássico que justifica o controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> como <strong>de</strong>corrênciada supremacia da constituição. As matrizes <strong>de</strong> Marshall e <strong>de</strong> Kelsen estão bem analisadas em CarlosSantiago Nino (The Constitution of Deliberative Democracy, p. 189).165


exercício, em mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> diálogo que são melhores e mais <strong>de</strong>mocráticos do queoutros. Nos próximos capítulos, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rei alguns parâmetros normativos, e mostrareialguns dos limites da perspectiva da “última palavra”, apesar <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rmosabandoná-la completamente.Para fins <strong>de</strong> uma síntese simplificadora dos três capítulos <strong>de</strong>scritivos da tese, atabela abaixo se utiliza da pergunta estrutural <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho institucional, explicada nocapítulo 1, para comparar as três posições abrangentes. A tabela não dá conta <strong>de</strong> todosos argumentos que apresentei nos últimos capítulos. Especialmente na dimensão do“por que”, haveria muito mais a ser dito. Há, como vimos, outras vias <strong>de</strong> justificaçãodo diálogo (entre as teorias que procuram “justificá-lo”, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>screvê-lo). Aaposta no seu valor epistêmico é o que inspira essa tese, e se <strong>de</strong>staca nessa tabela.PosicionamentosDimensões1. Inclinação porjuízes e cortes2. Inclinação porlegisladores e parlamentos3. Inclinação porambos: diálogo interinstitucionalQuem? Corte Parlamento AmbosComo?Inputs e outputs formais da<strong>de</strong>cisão judicialInputs e outputs formais da<strong>de</strong>cisão legislativaCombinação <strong>de</strong> ambosQuando? Por último Por último Alternadamente no tempoPor quê? Juízes estão melhorsituados para <strong>de</strong>cidir sobredireitosLegisladores estão melhorsituados para <strong>de</strong>cidir sobredireitosA interação <strong>de</strong>liberativaeleva a capacida<strong>de</strong>epistêmica da <strong>de</strong>mocracia5. O empírico e o normativo nas teorias do diálogoA interação é um fato, não uma escolha ou uma possibilida<strong>de</strong>. Não <strong>de</strong>corre damanifestação <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r ou <strong>de</strong> algum dispositivo institucionalespecífico, mas é conseqüência necessária da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Mais, há um166


“diálogo silencioso” entre as instituições, conduzido <strong>de</strong> forma consciente ou não, quecabe ao teórico perceber e reconstruir.Na classificação apresentada nesse capítulo, e em cada uma das correntes<strong>de</strong>scritas, po<strong>de</strong>-se perceber uma tensão entre o empírico e o normativo. Tenteiexplicitar como cada autor vê as implicações normativas <strong>de</strong> suas proposiçõespositivas. Na primeira parte do capítulo, o aspecto prescritivo é mais evi<strong>de</strong>nte.Dirigem recomendações aos juízes sobre como <strong>de</strong>cidir, consi<strong>de</strong>rando o potencialdialógico da corte. Na segunda parte, enxerga-se o diálogo no simples aspectotemporal da interação institucional. Alguns vão além disso, e mostram que essainteração é qualificada pela cultura da <strong>de</strong>liberação que ela estimularia. Têm emcomum a pretensão <strong>de</strong> promover um “choque <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>” nas teorias normativastradicionais, um ataque empírico às especulações que abstraem as instituições reais. Acorte está imersa na política, e sua atuação está condicionada por diversos fatores quenão permitem a livre leitura da constituição. Democracias contemporâneas seriammais complicadas do que as categorias clássicas do <strong>de</strong>bate conseguem captar.São her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> um velho <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> Dahl: a corte não consegue ser contramajoritáriapor muito tempo, a não ser que as maiorias sejam meramente <strong>de</strong>ocasião. 448 O máximo que a corte po<strong>de</strong> conseguir é atrasar o processo. Essaconstatação dá aos críticos da revisão judicial um ônus mais difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrarquer a falsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa proposição empírica, quer o porquê a revisão judicial seriailegítima e in<strong>de</strong>sejável mesmo durante esse curto espaço <strong>de</strong> tempo em que a corteconsegue segurar uma maioria. De outro lado, dá aos <strong>de</strong>fensores da revisão judicial oônus <strong>de</strong> comprovar por que essa proteção anti-majoritária <strong>de</strong> duração limitada aindaassim, no final das contas, se justifica na <strong>de</strong>mocracia. Nenhuma das teorias da últimapalavra consegue dar uma resposta convincente ao <strong>de</strong>safio. Teorias do diálogo sãocertamente mais promissoras.Há certa complementarida<strong>de</strong> entre as duas partes do capítulo. Uma teoria dodiálogo precisa combinar a abordagem da <strong>separação</strong> dos po<strong>de</strong>res com alguma teoria448 “It is to be expected, then, that the Court is least likely to be successful in blocking a <strong>de</strong>termined andpersistent lawmaking majority on a major policy and most likely to succeed against a weak majority”(“Decision-making in a Democracy: The Supreme Court as a National Policy-Maker”, p. 284).167


sobre a <strong>de</strong>cisão, tanto para cortes quanto para parlamentos. Diálogo nasce daconjugação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senho institucional e <strong>de</strong> uma cultura política. O <strong>de</strong>senhoinstitucional cria incentivos para tipos diferentes <strong>de</strong> interação. Tais incentivos não<strong>de</strong>terminam, contudo, o comportamento institucional isoladamente.Nos capítulos 6 e 7, pretendo caminhar na direção <strong>de</strong> uma teoria normativa dodiálogo inter-institucional que aprofun<strong>de</strong> o problema posto até aqui e afirme maisclaramente o seu potencial epistêmico. Empresto muitas peças das teorias resenhadasnesse capítulo. Idéias <strong>de</strong> prudência e faro político, em Bickel, <strong>de</strong> análise contextual dominimalismo ou maximalismo, em Sunstein, das novas rodadas, em Fisher, <strong>de</strong>variações no quanto cada po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ferir em cada momento, em Whittington, dascapacida<strong>de</strong>s primárias e secundárias, em Pickerill, da tensão dinâmica e da subversãodo status quo provocadas pela corte, em Friedman, possuem certa unida<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>batecana<strong>de</strong>nse é ainda mais apegado a uma noção formal <strong>de</strong> última palavra e àpreservação da última palavra legislativa. No entanto, a idéia <strong>de</strong> que ativismo judicialse respon<strong>de</strong> com ativismo legislativo, em Roach, e <strong>de</strong> que a corte po<strong>de</strong> combater ainércia e forçar o parlamento a assumir responsabilida<strong>de</strong> e a justificar mais claramentesuas <strong>de</strong>cisões, em Hogg e Bushell, parecem-me conciliáveis também. Não se trata <strong>de</strong>ecletismo contemporizador, mas da tentativa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar alguns acordos <strong>de</strong> fundo.Essas teorias carecem, porém, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento mais abrangente sobre o papelda <strong>de</strong>liberação na política, <strong>de</strong>sdobramento que tentarei fazer aqui.168


Capítulo 5Auto-governo e direito ao erroA <strong>de</strong>mocracia pressupõe que indivíduos são igualmente competentes paragovernarem a si próprios. Não só cada indivíduo é senhor <strong>de</strong> si mesmo, mas acomunida<strong>de</strong> integrada por eles é também autônoma. Transpor o i<strong>de</strong>al do auto-governoindividual para o coletivo exige uma mediação institucional, principal <strong>de</strong>safio <strong>de</strong>sseregime. 449 O que se <strong>de</strong>ve evitar é o paternalismo político – a supressão da autonomia ea presunção <strong>de</strong> que há indivíduos menos competentes que outros para participaremdas <strong>de</strong>cisões coletivas. Alguns autores acreditam que a revisão judicial traz esse risco.Três costumam ser as referências imediatas a respeito.James Bradley Thayer afirmou que o custo da exclusivida<strong>de</strong> judicial é que “opovo, <strong>de</strong>ssa maneira, per<strong>de</strong> a experiência política, a educação moral e o estímulo que<strong>de</strong>corre da luta política pela via ordinária, e da oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> corrigir os próprioserros”. 450 O recurso fácil à revisão judicial acabaria por diminuir a capacida<strong>de</strong> eresponsabilida<strong>de</strong> políticas do povo. A correção dos erros legislativos por meio darevisão judicial seria um mecanismo exógeno pernicioso, que não incentiva oaprendizado <strong>de</strong>corrente da oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auto-corrigir-se. Thayer, seguindo essasconvicções, fornece a famosa fórmula minimalista do “erro claro” (clear mistake).Para ele, uma revisão judicial mais do que mínima causaria <strong>de</strong>bilitação <strong>de</strong>mocrática.Learned Hand segue a mesma inquietação. O ato <strong>de</strong> escolher representantes,para ele, estimula um senso <strong>de</strong> “empreendimento comum” (common venture) que arevisão judicial faz <strong>de</strong>saparecer. Este controle não traria nenhum efeito benéfico a umregime político. Seu raciocínio é direto: se há, na comunida<strong>de</strong>, uma cultura daliberda<strong>de</strong>, nenhuma corte precisa salvá-la; se não há, nenhuma corte po<strong>de</strong> salvar. A449 Para Frank Michelman, olhar as <strong>de</strong>cisões políticas sob o ponto <strong>de</strong> vista do auto-governo individual éo que se po<strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> “dificulda<strong>de</strong> institucional” (Brennan and Democracy, p. 15).450 John Marshall, p. 106-107, citado por Paul Brest em “Who Deci<strong>de</strong>s?”, p. 671. Paul Brest, nessemesmo artigo, também esclarece o problema da “exclusivida<strong>de</strong> judicial” (Ibid, p. 670): “The belief injudicial exclusivity is so wi<strong>de</strong>spread that it is usually assumed rather than argued for. (…) In<strong>de</strong>ed, it isnot uncommon for legislators to believe that constitutional questions are none of their business at all”.Em outra passagem, Thayer afirma: “Un<strong>de</strong>r no system can the power of courts go far to save peoplefrom ruin; our chief protection lies elsewhere. If this be true, it is of the greatest public importance toput the matter in its true light” (“The Origin and Scope of the American Doctrine of ConstitutionalLaw”, p. 156).169


garantia da liberda<strong>de</strong> não estaria nas instituições, mas “no coração <strong>de</strong> homens emulheres”. 451Robert Dahl, por fim, consi<strong>de</strong>ra que o ativismo judicial seria uma espécie <strong>de</strong>“regime <strong>de</strong> guardiões” (guardianship), por meio do qual indivíduos, incapazes <strong>de</strong> seauto-governarem, <strong>de</strong>legam essa responsabilida<strong>de</strong> para pessoas melhor dotadas paratanto. 452 Dahl aceita a revisão judicial somente <strong>de</strong>ntro dos limites em que ela favoreçaa competição <strong>de</strong>mocrática. Chama essa alternativa <strong>de</strong> quasi guardianship. 453Auto-governo, segundo esse autores, envolve a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> errar, <strong>de</strong>apren<strong>de</strong>r com o erro e <strong>de</strong> corrigi-lo sem a interferência <strong>de</strong> um agente externo. Nãopo<strong>de</strong> ser, contudo, o único valor que orienta a construção <strong>de</strong> procedimentos<strong>de</strong>cisórios. O <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> instituições precisa carregar alguma pretensão epistêmica,ou seja, a aposta <strong>de</strong> que um modo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir (input) fabricará, ou pelo menos terámaior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gerar, os melhores resultados (output). Dito <strong>de</strong> outro modo, oprocedimento não po<strong>de</strong> se limitar a promover o auto-governo, mas <strong>de</strong>ve também sercapaz <strong>de</strong> gerar boas <strong>de</strong>cisões. Em suas <strong>de</strong>fesas, respectivamente, da supremaciajudicial e da supremacia legislativa, Dworkin e Waldron também se utilizam, entreoutros argumentos, <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>ssa natureza (a resposta certa judicial, para oprimeiro, e a sabedoria da multidão, para o segundo).Um fato da política traz maior complexida<strong>de</strong> a essa empreitada. Segundo asabedoria convencional, instituições, por mais bem pensadas que sejam, são falíveis.Não há como escapar, nas palavras <strong>de</strong> Rawls, da “justiça procedimental imperfeita”,uma fatalida<strong>de</strong> da política. 454 Com base nessas premissas, o último tópico <strong>de</strong> minhadissertação <strong>de</strong> mestrado lançou mão <strong>de</strong> uma pergunta para manifestar preocupação451 “It would be irksome to be ruled by a bevy of Platonic Guardians (…). Of course I know howillusory would be the belief that my vote <strong>de</strong>termined anything; but nevertheless when I go to the polls Ihave a satisfaction in the sense that we are all engaged in a common venture” (The Bill of Rights, p. 73-74); “Liberty lies in the hearts of men and women; when it dies there, no constitution, no law, no courtcan save it; no constitution, no law, no court can even do much to help it. While it lies there it needs noconstitution, no law, no court to save it” (The Spirit of Liberty, p. 189).452 Democracy and Its Critics, p. 52.453 Posiciona-se em termos bastante semelhantes a Ely, conforme vimos no capítulo 2.454 “The characteristic mark of imperfect procedural justice is that while there is an in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntcriterion for the correct outcome, there is no feasible procedure which is sure to lead to it. By contrast,pure procedural justice obtains when there is no in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt criterion for the right result (…)” (ATheory of Justice, p. 86).170


semelhante: se auto-governo envolve o direito ao erro, e todas as instituições sãofalíveis, quem tem o direito <strong>de</strong> errar por último? 455Essa seria uma pergunta fundamental da teoria <strong>de</strong>mocrática, uma <strong>de</strong>mandapela localização da instituição sobre a qual recai esse ônus mais pesado. Argumenteique, dadas essas circunstâncias, e afastada a implausível “presunção da infalibilida<strong>de</strong>judicial”, não haveria uma boa razão para conce<strong>de</strong>r o “direito <strong>de</strong> errar por último” àcorte constitucional. Não haveria boas respostas para os cenários 3 e 4 da tabelaabaixo. Freqüentemente, eles são ignorados em <strong>de</strong>fesas da revisão judicial.Passo 2Corte acertaCorte erraPasso 1Legislador acerta 1 3Legislador erra 2 4Po<strong>de</strong>-se notar que esse argumento faz, ao menos, cinco suposições fortes: <strong>de</strong>que há última palavra; <strong>de</strong> que esta é judicial; <strong>de</strong> que o auto-governo coletivo seexpressa mais fielmente em outra instituição (o parlamento); <strong>de</strong> que, sem maioresqualificações, parlamento e corte constitucional são igualmente falíveis; e <strong>de</strong> que háum critério para julgar erro e acerto in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do procedimento.Este capítulo preten<strong>de</strong> relativizar algumas <strong>de</strong>ssas suposições e, à luz da tensãoentre as teorias da última palavra e do diálogo, reformular a questão inicial dadissertação. Trata-se <strong>de</strong> um capítulo <strong>de</strong> passagem entre a parte <strong>de</strong>scritiva da tese e oseu momento mais construtivo e ensaístico. Contenta-se em fornecer a idéia <strong>de</strong>“última palavra provisória”, cujas implicações os capítulos 6 e 7 procurarão<strong>de</strong>senvolver.Comecemos pela suposição <strong>de</strong> que o parlamento é o lugar institucionalprioritário do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> auto-governo. Essa inferência comum foi atacada pela posição<strong>de</strong>scrita no capítulo 2 (última palavra judicial). Os argumentos lá presentes, mesmoque possam também ser relativizados, não <strong>de</strong>vem ser subestimados. O que eles455 Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 187.171


mostram, basicamente, é que o apego incondicional ao parlamento representativocomo realização do auto-governo é tão perigoso quanto simplista. A representaçãonão se esgota na eleição. Supor que a corte, simplesmente por não ter membroseleitos, é um agente externo à comunida<strong>de</strong> e longe <strong>de</strong> seu controle, como se as<strong>de</strong>cisões “<strong>de</strong>les” jamais pu<strong>de</strong>ssem ser percebidas como “nossas”, é ignorar umconceito mais abrangente e <strong>de</strong>sejável <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>. A oposição entre “povo”,espelhado no parlamento, e “juízes”, ofuscaria uma dinâmica política mais complexa.Cada instituição po<strong>de</strong> possuir nada mais do que “rastros <strong>de</strong> auto-governo”, naexpressão <strong>de</strong> Michelman, que mostrou como a ofensiva contra o fetichismo judicialtraz consigo a armadilha do fetichismo legislativo. 456 Como toda atitu<strong>de</strong> cognitivabinária, ela faz uma <strong>de</strong>fesa fundamentalista <strong>de</strong> um dos pólos.Levado às últimas conseqüências, a a<strong>de</strong>são cega ao parlamento nega quepossamos ter um critério in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte para julgar a correção das <strong>de</strong>cisões políticas.Nesse caso, obe<strong>de</strong>cido o procedimento, presume-se que a <strong>de</strong>cisão foi certa.Reconhecer a legitimida<strong>de</strong> da corte não implica numa simples inversão <strong>de</strong>ssapresunção, ou seja, em supor que a <strong>de</strong>cisão judicial necessariamente “corrigirá” a doparlamento. Defen<strong>de</strong>-se, simplesmente, a importância <strong>de</strong> medidas valorativas quetranscendam o procedimento em si, e que não se conceda a nenhuma instituição otrunfo da presunção. A perspectiva do diálogo ajuda a tornar essa idéia menos exótica.Ajuda também a perceber, conforme veremos no capítulo seguinte, que aqueles“rastros <strong>de</strong> auto-governo” não são uma qualida<strong>de</strong> estática <strong>de</strong> cada instituição,permitindo que se as hierarquize a priori, mas variam conforme o seu <strong>de</strong>sempenho.A suposição segundo a qual, diante do fato da “justiça procedimentalimperfeita”, todas as instituições são igualmente falíveis, é também problemática. Elanega qualquer pretensão epistêmica, ainda que em termos probabilísticos, a <strong>de</strong>senhosinstitucionais. 457 Em vez <strong>de</strong> admitir que há estratégias mais ou menos falíveis, percebeapenas os pólos do falível e do infalível. Essa posição, obviamente implausível se456 “Foreword – Traces of Self-Government”, p. 75.457 Frank Michelman mostra-se sensível aos graus <strong>de</strong> probabilida<strong>de</strong> do erro, mas ainda parece oporparlamento e corte <strong>de</strong> forma exclu<strong>de</strong>nte: “So the question is, before I beat it any further into theground: How likely is even the most capable and favorably situated judge to make mistakes about what<strong>de</strong>mocracy requires of a set of basic laws and their major interpretations? If and when our estimate ofthat likelihood passes beyond a certain point, the institutional advantages of the judiciary start to looklike a meager excuse for not letting the people bat for themselves” (Brennan and Democracy, p. 58).172


generalizada para qualquer tema <strong>de</strong>cisório, é também difícil <strong>de</strong> ser aceita quando secuida <strong>de</strong> direitos <strong>fundamentais</strong>. Nesses casos, é mais evi<strong>de</strong>nte a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a<strong>de</strong>mocracia conjugue os objetivos <strong>de</strong> auto-governo e da resposta certa, <strong>de</strong> input eoutput, do procedimento legítimo e da maior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que ele produza<strong>de</strong>cisões acertadas. 458 Mesmo que não cheguemos tão longe quanto Dworkin, paraquem, em relação a direitos, o que importa é exclusivamente o resultado substantivo,a opção oposta também não é atraente.Algum balanceamento que mostre a inter<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> forma e substância, eque valorize a interação entre corte e parlamento, parece mais convincente. Noargumento da dissertação, fechei o espaço para que, por meio do <strong>de</strong>senhoinstitucional, se pu<strong>de</strong>sse minimizar a chance do erro em relação a direitos. Asrespostas da supremacia legislativa ou judicial não oferecem, contudo, soluçãosatisfatória. Culminam em dilemas que não po<strong>de</strong>m ser resolvidos em abstrato. Porexemplo: sem revisão judicial, o parlamento se sente mais pressionado a emitir umainterpretação constitucional a<strong>de</strong>quada? A existência da revisão judicial faz oparlamento abdicar <strong>de</strong> seu papel <strong>de</strong> intérprete constitucional e <strong>de</strong>ferir, ou exatamenteo contrário? A corte, para autores como Thayer, seria o álibi usado pelo parlamentopara <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer a constituição. Pickerill, mais informado empiricamente, pensaexatamente o contrário, mas também reconhece que outras variáveis <strong>de</strong>vem entrar naanálise para uma explicação mais completa do comportamento institucional.Na perspectiva do diálogo <strong>de</strong>fendida adiante, po<strong>de</strong>-se enxergar a corte e oparlamento <strong>de</strong> maneira não exclu<strong>de</strong>nte. Não se propõe uma receita pronta e abstratasobre o modo correto <strong>de</strong> interação das instituições, pois esta não existe. É um esforçoteórico infrutífero. Mais importante é encontrar critérios que permitam avaliar alegitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada instituição, caso a caso. O <strong>de</strong>safio é <strong>de</strong>monstrar que, apesar <strong>de</strong> aexpertise ser variável importante no <strong>de</strong>senho institucional, no que diz respeito adireitos, o argumento epistêmico pela supremacia <strong>de</strong> qualquer instituição é458 Álvaro <strong>de</strong> Vita também levanta a questão em termos <strong>de</strong> probabilida<strong>de</strong>: “Mas já é um pouco menosbanal dizer que nenhuma constituição <strong>de</strong>mocrática, como quer que seja concebida e implementada,po<strong>de</strong> ser mais do aquilo que Rawls <strong>de</strong>nomina ‘justiça procedimental imperfeita’. Ainda que a escolhaconstitucional <strong>de</strong>va ser guiada por um julgamento sobre que instituições mais provavelmenteproduzirão resultados justos, não há nenhum arranjo institucional factível que possa assegurar que oprocesso <strong>de</strong>mocrático sempre produzirá resultados políticos que estejam em conformida<strong>de</strong> com umcritério in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> justiça” (“Socieda<strong>de</strong> Democrática e Democracia Política”, p. 8).173


in<strong>de</strong>sejável. A minimização do erro não <strong>de</strong>corre tanto <strong>de</strong> uma instituição ou <strong>de</strong> outra,mas <strong>de</strong> sua interação <strong>de</strong>liberativa e da busca pelas melhores razões públicas, tanto porparlamentos quanto por cortes. Assim, po<strong>de</strong>-se potencializar a capacida<strong>de</strong> epistêmicada <strong>de</strong>mocracia sem negar a falibilida<strong>de</strong> das instituições. Essa idéia está melhor<strong>de</strong>senvolvida no capítulo 7.Finalmente, a suposição <strong>de</strong> que há uma última palavra, e <strong>de</strong> que esta pertenceà corte. 459 As teorias expostas no capítulo anterior, por ângulos diferentes, mostramque a idéia <strong>de</strong> última palavra, e ainda mais a judicial, tem claros limites. Num casojudicial individualizado, a <strong>de</strong>cisão da corte, transitada em julgado, é o ponto final, doponto <strong>de</strong> vista jurídico, naquele caso. O tema, porém, continua a ser digerido e<strong>de</strong>batido pela comunida<strong>de</strong> política, a qual, com o passar do tempo, se manifestaránovamente sobre ele em variados foros institucionais, inclusive o judicial.Apesar disso, a perspectiva do diálogo não dilui totalmente o problema. Esse,mais uma vez, é o risco metodológico <strong>de</strong> se eliminar a tensão entre dois pólos pelaa<strong>de</strong>são incondicional a um <strong>de</strong>les. O fato <strong>de</strong> que as instituições continuam a “dialogar”e <strong>de</strong> que a última palavra não é tão forte quanto parecia, não significa que apreocupação, por exemplo, <strong>de</strong> Thayer (<strong>de</strong> que a <strong>de</strong>mocracia possa <strong>de</strong>saquecer comativismo judicial), seja irrelevante, que não se <strong>de</strong>va encontrar um ponto <strong>de</strong> equilíbrio.Teorias do diálogo expostas até aqui mostram a insuficiência das teorias da últimapalavra, mas não dão uma resposta totalmente autônoma.Para que se possam conjugar as matrizes da última palavra e do diálogo,introduzo as noções <strong>de</strong> “rodada procedimental” e <strong>de</strong> “última palavra provisória”. Seusignificado é simples e auto-explicativo: toda constituição prevê os caminhos paravocalização institucional <strong>de</strong> projetos coletivos e para a solução <strong>de</strong> conflitos. Essescaminhos têm um ponto <strong>de</strong> partida e, após estágios intermediários, alcançam umponto final. Esse ponto será final, no entanto, somente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma rodada, quepo<strong>de</strong> sempre ser recomeçada, in<strong>de</strong>finidamente.459 O juiz Robert Jackson, no caso Brown v. Allen, <strong>de</strong> 1953, proferiu frase <strong>de</strong> efeito pela qual reconheceque, apesar <strong>de</strong> serem falíveis, a última palavra construiria a ficção jurídica <strong>de</strong> que <strong>de</strong>cidiramcorretamente: “We are not final because we are infallible, but we are infallible only because we arefinal”.174


A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recomeçar não é irrelevante para a reflexão sobreautorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática. O recomeço, entretanto, implica em nova mobilização <strong>de</strong>diversos recursos necessários para movimentar a máquina institucional: entre outros,recursos <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> esforço argumentativo, importantes para os fins <strong>de</strong>ssa tese.Nesse sentido, a instituição que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por último <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma rodadaprocedimental, ainda que possa ser <strong>de</strong>safiada em novas rodadas, nem por isso éinofensiva. Tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> exigir uma nova mobilização e, portanto, <strong>de</strong> atrasar arealização <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado projeto. Mesmo que enfraquecido, o problema <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>tentor da última palavra não <strong>de</strong>saparece.Consi<strong>de</strong>rando que diferentes mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> diálogo <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> diferentescombinações entre <strong>de</strong>senhos constitucionais e culturas políticas, a distribuição <strong>de</strong>“últimas palavras provisórias” e a auto-percepção <strong>de</strong> cada instituição sobre o quantointervir e o quanto <strong>de</strong>ferir em cada momento não são escolhas <strong>de</strong> menor importância.Tangenciamos, aqui, ponto levantado por Friedman no capítulo anterior. Para ele, aquestão normativa que vale a pena perseguir é a do balanço entre dinamismo e últimapalavra na <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, o quanto e por quanto tempo se <strong>de</strong>ve permitir adissonância entre opinião pública e a <strong>de</strong>cisão judicial.Teorias do diálogo, portanto, trazem algo <strong>de</strong> novo, mas precisam sercombinadas com a dimensão da última palavra. A pergunta original que inspira ocapítulo não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> fazer sentido. Deve, no entanto, lidar também com aprovisorieda<strong>de</strong> da última palavra. Ligeiramente reformulada, a pergunta passa a ser:quem tem o direito <strong>de</strong> errar por último, ainda que provisoriamente? Ou, em termosmais diretos: quem tem direito à última palavra provisória?175


Capítulo 6Separação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e os tempos da política: diálogo ou última palavra?1. IntroduçãoOs excessos da teoria normativa, como vimos, produziram apoteoses da últimapalavra, batalhas imaginárias entre o juiz heróico e o legislador moralmente <strong>de</strong>caído,ou entre o juiz i<strong>de</strong>ologicamente dissimulado e o legislador virtuoso e exemplar. Emoutro nível, enxergou-se também um conflito entre os direitos <strong>fundamentais</strong> e a<strong>de</strong>mocracia, entre maiorias e minorias etc. Algumas teorias do diálogo, por sua vez,abaixam o tom e rejeitam uma disputa que aparenta ser ingênua. Fomentam apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> co-existência entre parlamentos e cortes constitucionais, sem anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher entre um e outro <strong>de</strong> modo exclu<strong>de</strong>nte. Não se posicionam,necessariamente, sobre o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> melhor e <strong>de</strong> pior.Os capítulos 2 a 4 abriram um amplo leque <strong>de</strong> argumentos favoráveis econtrários à revisão judicial. Os capítulos 6 e 7 preten<strong>de</strong>m levar em conta parte doconteúdo lá presente e inserir novas observações para esboçar uma teoria normativado diálogo. Quero testar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conciliar ambas as perspectivas, <strong>de</strong>combinar a provisorieda<strong>de</strong> das <strong>de</strong>cisões com a continuida<strong>de</strong> da política. Levar o i<strong>de</strong>al<strong>de</strong> “diálogo permanente” às últimas conseqüências produz um certo nonsense,certamente. O mesmo se dá, porém, com a “última palavra”. A intenção do capítulo émostrar que ambas as questões subsistem e po<strong>de</strong>m complementar-se. Quantacomplementarida<strong>de</strong> há, afinal, entre diálogo e última palavra? Quanto o diálogorespon<strong>de</strong> à objeção <strong>de</strong>mocrática? Quanto arrisca obscurecer?A invocação da idéia <strong>de</strong> “última palavra provisória” não po<strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r o custotemporal, material e intelectual <strong>de</strong> novas “rodadas procedimentais”. Há graus <strong>de</strong>provisorieda<strong>de</strong>. Decisões, mesmo que possam ser revistas, são mais ou menosduradouras e resistentes. Alguns <strong>de</strong> seus efeitos se consumam e, em certo sentido,tornam-se irreversíveis. O fato <strong>de</strong> ser interlocutora, por essa razão, não significa que acorte esteja isenta da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> boas <strong>de</strong>cisões e <strong>de</strong> um teste rigoroso <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong>. De qualquer modo, relativizar a importância da última palavra tem umvalor. Se o ponto <strong>de</strong> chegada é sempre provisório, <strong>de</strong>ver-se-ia atentar também para o176


caminho, o processo <strong>de</strong> interação que prece<strong>de</strong> e suce<strong>de</strong> a <strong>de</strong>cisão. Diálogo, no longoprazo, é inevitável. Decisões são tomadas e problemas concretos resolvidos, mas osmesmos temas são reprocessados pela comunida<strong>de</strong> política. Essa constatação trivialtraz um elemento surpreen<strong>de</strong>ntemente novo para a reflexão sobre o papel elegitimida<strong>de</strong> do controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>.Esse capítulo segue por outros quatro tópicos. No segundo, lido com umatradicional saída <strong>de</strong> alguns autores para evitarem uma justificativa essencialista darevisão judicial. Segundo eles, esta não é produto necessário da <strong>de</strong>mocracia, mas comela também não é incompatível. Satisfazem-se em mostrar que, se a história a criou, eela vem cumprindo função relevante, não precisamos extingui-la em função <strong>de</strong> umexercício abstrato <strong>de</strong> engenharia institucional, caminho este perseguido por outrosautores. Este tópico serve para localizar os limites institucionais da teoria do diálogoaqui <strong>de</strong>senvolvida.No tópico seguinte, procuro examinar a relação entre diálogo e última palavra,e ensaio algumas conclusões a partir <strong>de</strong> duas formas úteis que a teoria jurídica epolítica oferecem para lidar com o tema: a tradição da constituição mista em oposiçãoà da soberania, e o <strong>de</strong>bate entre Fuller e Hart. No quarto tópico, tento interpretaralguns postulados por meio dos quais a ciência política empírica estuda a <strong>separação</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e o comportamento judicial para, por último, sintetizar os pontos docapítulo e levantar outras questões normativas que serão tratadas pelo capítuloseguinte.2. História, instituições e teoria política normativaWaldron, mais <strong>de</strong> uma vez, afirmou que seus argumentos contrários à revisãojudicial se dirigiam a países em que a adoção <strong>de</strong>sse arranjo ainda era uma escolha emaberto. Não se <strong>de</strong>stinava a participar do <strong>de</strong>bate americano, on<strong>de</strong> a instituição estariaconsolidada pela história e qualquer argumento que questionasse a sua existênciamesma estaria fadado à irrelevância. Diversos autores já fizeram <strong>de</strong>claraçõesparecidas para disciplinar o escopo da discussão. Dworkin, por exemplo, afirmou que177


“essa autorida<strong>de</strong> interpretativa já foi distribuída pela história”. 460 Whittington não<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> observar que a revisão judicial é “uma realida<strong>de</strong> institucional e histórica,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qualquer crítica acadêmica contra ela”. 461 Friedman qualificouligeiramente essa constatação, e enfatizou que mesmo que fosse factível <strong>de</strong>senhar asinstituições <strong>de</strong> maneira diferente para que espelhassem mais fielmente um i<strong>de</strong>alpolítico puro, “é improvável que o judiciário fe<strong>de</strong>ral sofra uma transformação <strong>de</strong>ssamagnitu<strong>de</strong> num futuro próximo”. 462 Vermeule e Garrett, por fim, propõem que aforma mais produtiva <strong>de</strong> contribuir para essa discussão não é insistir na crítica das“macro-escolhas institucionais”. Aperfeiçoamentos e inovações, no presente, viriampelas margens, na micro-escala dos procedimentos internos <strong>de</strong> cada instituição. 463Outros também se utilizam <strong>de</strong>sse recurso como ponto <strong>de</strong> partida: as instituições estãoaí e temos que fazer <strong>de</strong>las o melhor que pu<strong>de</strong>rmos. Todas essas afirmações situam-seno contexto americano, é verda<strong>de</strong>, mas me interessa aqui <strong>de</strong>stacar o tipo <strong>de</strong>argumento, <strong>de</strong> resto presente em outros países também.Zurn chama essa atitu<strong>de</strong>, conforme mencionado no capítulo 1, <strong>de</strong>“panglossianismo institucional”: assume-se que <strong>de</strong>terminado arranjo é um dadoimutável. 464 É um dos poucos autores que participam do <strong>de</strong>bate sobre revisão judicialsem se intimidarem diante da matriz congelada da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Zurn fazficção institucional sem acanhamento e propõe arranjos que mudamsignificativamente a operação da revisão, <strong>de</strong> modo a torná-la mais <strong>de</strong>mocrática.Ambas as posturas são possíveis para tratar do tema da legitimida<strong>de</strong> política esua conexão com instituições específicas. A primeira se adapta melhor, talvez, atempos <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, lentidão e monotonia <strong>de</strong>mocrática. Diante da improbabilida<strong>de</strong>da mudança no horizonte próximo, trabalha com o que tem. A segunda po<strong>de</strong>460 “this interpretive authority is already distributed by history” (Freedom’s Law, p. 34).461 “Judicial review is an institutional and historical reality, regardless of any aca<strong>de</strong>mic critiquesdirected against it” (“Extrajudicial Constitutional Interpretation”, p. 848).462 “It might be feasible to <strong>de</strong>sign things differently, but the fe<strong>de</strong>ral judiciary is not likely to receive anoverhaul of this magnitu<strong>de</strong> anytime soon” (“The Politics of Judicial Review”, p. 332).463 “Institutional Design of a Thayerian Congress”.464 “The i<strong>de</strong>a here is that the established institutions and practices of the United States political systemare to be accepted as, in the main, unchangeable social facts, and that any comprehensive constitutionaljurispru<strong>de</strong>nce should be able to justify their main structures and features as being close to ‘the best, inthis the best of all possible worlds’”. Mais adiante, Zurn cita a síntese <strong>de</strong> Stephen Perry sobre oassunto: “For us, the live questions about judicial review are about how the power of judicial reviewshould be exercised” (Deliberative Democracy and the Institutions of Judicial Review, p. 9-10).178


conseguir alguma influência em tempos <strong>de</strong> ruptura revolucionária, ou <strong>de</strong> transições <strong>de</strong>regime em maior escala. Não são poucos os exemplos <strong>de</strong>sse impacto do pensamentona história política mo<strong>de</strong>rna, repleta <strong>de</strong> revoluções que tentaram, <strong>de</strong>liberadamente,romper com práticas do passado.Essas posturas não correspon<strong>de</strong>m, necessariamente, ao que Mill diagnosticoucomo duas concepções conflitantes sobre as instituições políticas: um produto <strong>de</strong> puraarte prática e invenção humana premeditada; ou uma <strong>de</strong>corrência espontânea e naturalda história, imune ao controle racional. 465 Ou, para usar <strong>de</strong> um senso comumhistórico, <strong>de</strong> um lado, o estilo do jacobinismo institucional francês, que olha para afrente e se dispõe a recomeçar do zero, somente com o auxílio da razão; <strong>de</strong> outro, oincrementalismo britânico, que olha para trás e valoriza a tradição.Os autores citados acima simplesmente adotam duas estratégias diferentes naconstrução da teoria política normativa. Os primeiros (com Dworkin etc.) não caemno fatalismo conservador, nem negam que instituições são produto <strong>de</strong> escolha, emalguma medida, mas preferem contribuir para o aperfeiçoamento daquele arranjo quejá existe. A segunda postura tampouco <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma reconstrução ex nihilo, masapenas tenta vislumbrar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reformas mais amplas. E provavelmente émais otimista quanto ao impacto que o pensamento normativo po<strong>de</strong> produzir em taisreformas.Essa é uma primeira forma <strong>de</strong> conceber a relação entre instituições, história eteoria política normativa. Avalia-se o quanto a mudança institucional, caso <strong>de</strong>sejávelem princípio, é factível, e formula-se proposições normativas mais ou menospretensiosas a partir <strong>de</strong>ssa avaliação. 466 Quanto a essa dimensão, esta tese opta porpensar na relação entre instituições existentes, ou, mais especificamente, entre corteconstitucional e parlamento representativo. Não é meu objetivo, nesse sentido, avaliaralternativas <strong>de</strong> macro-reformas institucionais que aperfeiçoem a prática do diálogo465 Consi<strong>de</strong>rations in Representative Government, p. 205-207.466 Ou então, <strong>de</strong>spretensiosamente, elabora-se uma teoria sem a expectativa <strong>de</strong> que surta efeitos nocurto prazo (ou mesmo em qualquer outro momento, enfim). Como afirmou Cícero <strong>de</strong> Araújo: “Todareflexão política brota <strong>de</strong> seu próprio contexto, mas não está fadada a morrer ali, só porque não logrou<strong>de</strong>itar raízes na realida<strong>de</strong> histórica imediata” (Fundações da República e do Estado, p. 184).179


(como a adoção, por exemplo, <strong>de</strong> um mecanismo formal <strong>de</strong> “resposta legislativa”,semelhante ao do Canadá).O fato do diálogo, por si só, não fornece uma justificativa positiva para aexistência da revisão judicial (in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> todas as outras formasimagináveis). Claro que po<strong>de</strong>ríamos especular uma instituição i<strong>de</strong>al que<strong>de</strong>sempenhasse, eventualmente, a função da revisão <strong>de</strong> maneira mais legítima ecompetente que a corte. Talvez a corte não tenha os melhores incentivos ou acapacida<strong>de</strong> para cumprir o papel que a teoria da legitimida<strong>de</strong> esboçada nessa tese lheatribui. Mas abrir a janela para imaginar outras instituições exigiria seguir caminhodiferente do escolhido aqui.Portanto, fazemos uma concessão à história para tentar ver o mo<strong>de</strong>lo vigentesob a melhor luz possível, sem prejuízo <strong>de</strong> que outras análises mostrem que ele po<strong>de</strong>ser aperfeiçoado, re<strong>de</strong>senhado etc. Não se trata <strong>de</strong> “panglossianismo institucional”,mas apenas do estabelecimento <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> partida. Pensar em condições quemaximizem a legitimida<strong>de</strong> das cortes é estratégia mais fecunda do que rejeitar, porprincípio, a possibilida<strong>de</strong> da existência <strong>de</strong> uma instituição que nas últimas décadasocupou um espaço antes inimaginável na estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Mais fecunda, também,do que aceitá-la sem maiores qualificações, como ocorre, ao meu ver, com a posiçãoque ataquei na dissertação. Como tentarei <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r no capítulo 7, o diálogo po<strong>de</strong> ser<strong>de</strong>sempenhado <strong>de</strong> diferentes maneiras, e algumas <strong>de</strong>las trazem, inclusive, boasjustificativas positivas para esse arranjo.A oposição entre “última palavra” e “diálogo” suscita, ainda, outro prisma darelação entre história e instituições. Permite olhar para duas escalas temporais <strong>de</strong> umregime: a <strong>de</strong>manda imediata por uma <strong>de</strong>cisão, e a sucessão <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões ao longo dotempo (curto e longo prazos, para voltar às duas categorias genéricas). Por meio da<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, a<strong>de</strong>mais, po<strong>de</strong>-se notar essas duas escalas temporais nãoatravés <strong>de</strong> uma instituição tomando, sozinha, <strong>de</strong>cisões ao longo da história, mas <strong>de</strong>diferentes instituições interagindo (no caso <strong>de</strong>sta tese, parlamentos e cortes). Oterceiro tópico abaixo lida com esse foco.180


Para terminar, há um terceiro prisma para conceber a relação entre história einstituições. Refiro-me à construção, por meio <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> e gradativoenraizamento, da legitimida<strong>de</strong> e da reputação das instituições. A longevida<strong>de</strong>institucional traz um valor adicional a ser consi<strong>de</strong>rado, do ponto <strong>de</strong> vista empírico enormativo. O quarto tópico tangencia essa perspectiva trazendo algumas constataçõesda ciência política empírica. Percebe-se, ali, que a legitimida<strong>de</strong> não é somente produto<strong>de</strong> uma receita abstrata e ex ante da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, mas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do<strong>de</strong>sempenho que instituições consigam atingir (perspectiva ex post).3. Pesos e medidas da última palavraO diálogo inter-institucional é forjado por dois componentes básicos: (i) o<strong>de</strong>senho institucional que o disciplina formalmente e (ii) a cultura política que oanima. Como dito acima, a tese não se preocupa com <strong>de</strong>senhos institucionaisespecíficos. Não <strong>de</strong>fendo um mo<strong>de</strong>lo mais <strong>de</strong>sejável <strong>de</strong> <strong>separação</strong> <strong>de</strong> funções e darevisão judicial (se o “forte” norte americano, o “fraco” cana<strong>de</strong>nse, ou o “mínimo”britânico ou neo-zelandês), pois <strong>de</strong>sconfio que soluções abstratas e <strong>de</strong> pretensãouniversal não aten<strong>de</strong>m <strong>de</strong>mandas institucionais particulares. Não nego que este<strong>de</strong>senho seja relevante, também, para incentivar padrões melhores <strong>de</strong> interação e<strong>de</strong>liberação. No entanto, priorizo um passo anterior. Quero <strong>de</strong>monstrar que, seja qualfor a arquitetura institucional: (i) a interação no tempo (em variados intervalos, <strong>de</strong>acordo com o mo<strong>de</strong>lo) é incontornável, o que não é irrelevante para enten<strong>de</strong>r oproblema da legitimida<strong>de</strong>; e (ii) as concepções variadas <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> que informama respectiva cultura política interferem na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa interação. Reservo estesegundo ponto para o próximo capítulo. Tratemos do primeiro.O ponto <strong>de</strong> partida da tese é uma conhecida objeção <strong>de</strong>mocrática à revisãojudicial. Se reagimos a ela dizendo que não há última palavra, mas diálogopermanente entre diferentes instituições políticas que são capazes <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r às<strong>de</strong>cisões umas das outras, aquela objeção <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser tão trágica. Vista a partir <strong>de</strong>sseângulo, a revisão judicial é apenas um estágio <strong>de</strong>cisório a mais. Essa resposta,todavia, é insatisfatória. Permite-nos, provavelmente, voltar ao problema original comuma percepção mais nuançada do(s) tempo(s) da política e um senso <strong>de</strong> suacontinuida<strong>de</strong>. No entanto, não nos diz muito sobre a legitimida<strong>de</strong> da interferência <strong>de</strong>181


diferentes instituições, em momentos diversos, nesse processo. Não justifica, por sisó, os custos que tais <strong>de</strong>cisões po<strong>de</strong>m impor sobre a “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática” (caso seconsi<strong>de</strong>re correta a premissa daquela objeção – que o parlamento é o locus central da<strong>de</strong>mocracia).Para lidar com essa dificulda<strong>de</strong>, lancei mão, no último capítulo, <strong>de</strong> doisrecursos. Cada constituição estabelece um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> interação e escolhe a instituição<strong>de</strong>tentora da “última palavra provisória” (com graus diferenciados <strong>de</strong> resistência).Novas “rodadas procedimentais” po<strong>de</strong>rão sempre ser iniciadas. Assim, tento escapar<strong>de</strong> duas armadilhas binárias que se insinuam na literatura aqui sistematizada (ouparlamentos ou cortes, ou última palavra ou diálogo) e investigar acomplementarieda<strong>de</strong> entre eles. I<strong>de</strong>ntifico nos sub-tópicos abaixo doisenquadramentos interessantes <strong>de</strong> tal relação.3.1 Entre constituição mista e soberania?A oposição entre “diálogo” e “última palavra” ecoa a tensão clássica entreconstituição mista, reconcebida e renomeada por “<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res” pela teoriapolítica mo<strong>de</strong>rna, e soberania. Essa afinida<strong>de</strong> me parece correta, mas merece algumasqualificações. Não pretendo, aqui, <strong>de</strong>sviar o argumento simplesmente para trazer umacuriosida<strong>de</strong> histórica, mas indicar que, nas raízes da própria idéia <strong>de</strong> <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res, a última palavra, ou o lócus da “autorida<strong>de</strong> soberana”, não era uma questãoque se colocava.Na sua origem, a constituição mista correspon<strong>de</strong> à mescla das formas simples<strong>de</strong> governo (governo <strong>de</strong> um, <strong>de</strong> poucos e <strong>de</strong> muitos). Buscou promover um equilíbriodas forças que emergiam dos “impulsos da realeza, da aristocracia e do povo”. 467 Dito<strong>de</strong> outro modo, surgiu como um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> equilíbrio <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res entre diferentes grupos<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> hierarquizada e estamental. Não estava associada, ainda, aum esquema <strong>de</strong> divisão <strong>de</strong> funções institucionais, ao modo dos “freios e contrapesos”.Pressupunha uma sociolgia. Cada agência <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, por isso, se <strong>de</strong>finia pela or<strong>de</strong>m467 Cícero <strong>de</strong> Araújo, Fundações da República e do Estado, p. 12 e 23.182


social que a dominava. 468 Institucionalizou-se o <strong>de</strong>sacordo como um meio <strong>de</strong> manter acapacida<strong>de</strong> criativa e transformadora da política. 469Essa tradição tem dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se compatibilizar com o advento do estadosoberano mo<strong>de</strong>rno. Hobbes, por exemplo, rejeita-a e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umúltimo soberano que combata os perigos do vácuo político, da ausência ou damultiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s e da anarquia. Nessa visão estatista, a “única soberaniainteligível é aquela em que o soberano é supremo e indivisível”. 470 Há, <strong>de</strong> cada lado,recomendações opostas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho institucional: uma, verticalizada, com o cume daautorida<strong>de</strong> claramente <strong>de</strong>finido; outra, horizontalizada por meio <strong>de</strong> mecanismos quepossibilitam a co-existência sem uma autorida<strong>de</strong> suprema.O episódio <strong>de</strong> fundação da constituição americana é referência obrigatória<strong>de</strong>ssa tradição na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Representa o momento em que o mecanismo <strong>de</strong> freiose contrapesos, entendido como divisão funcional <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, nasce mais claramente,algo que ainda não estava em Montesquieu. 471 Não adianta a constituição estabelecerlimites no papel – essa era a principal mensagem dos Fe<strong>de</strong>ralistas sobre a <strong>separação</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>res como mecanismo <strong>de</strong> preservação da liberda<strong>de</strong>. A solução teria que serendógena, com o po<strong>de</strong>r controlando o próprio po<strong>de</strong>r. 472 A máquina <strong>de</strong>cisória ali<strong>de</strong>senhada cria uma dinâmica política inovadora e flexível. No entanto, sua gramáticanão aceita muito bem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o locus do po<strong>de</strong>r soberano (ao468 Cícero <strong>de</strong> Araújo, ao <strong>de</strong>screver essa acepção <strong>de</strong> conteúdo social da constituição mista no governoromano: “De qualquer modo, ali se aplica, para um governo concreto, uma idéia que se tornará preciosano futuro: que a constituição mista, a fim <strong>de</strong> melhor promover a estabilida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> conter um sistema<strong>de</strong> agências que, ao mesmo tempo, contrapõem-se e cooperam entre si – um sistema <strong>de</strong> freios econtrapesos, para usar a imagem mecânica popular <strong>de</strong> nossos dias, que Políbio mesmo não emprega.Mas a indicação está lá” (Fundações da República e do Estado, p. 22).469 Cf David Wooton, “Liberty, Metaphor, and Mechanism: ‘checks and balances’ and the origins ofmo<strong>de</strong>rn constitutionalism”.470 Fundações da República e do Estado, p. 130.471 Em Montesquieu a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res ainda está associada à hierarquia estamental. NosFe<strong>de</strong>ralistas, monta-se uma maquinaria governamental que não se conecta diretamente com a suposição<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> dividida rigidamente. Cícero <strong>de</strong> Araújo mostra, porém, que isso não significa que alitenha sido formulada uma teoria “esvaziada <strong>de</strong> conteúdo social”, o que se verifica mais claramente nasolução que Madison dá para o problema das facções – um produto <strong>de</strong> interesses econômicosantagônicos (Ibid, p. 162-163).472 Para Friedman, o maior legado dos Fe<strong>de</strong>ralistas não teria sido a constituição, mas a teoria que a fazfuncionar e adaptar-se a circunstâncias diversas (“Dialogue and Judicial Review”, p. 625).183


menos do ponto <strong>de</strong> vista interno). 473 Como diz Cícero <strong>de</strong> Araújo, esse locus é uma“questão em aberto”. 474Dando um salto adiante, as <strong>de</strong>mocracias contemporâneas <strong>de</strong>spertam certaperplexida<strong>de</strong> por essa razão. Incorporam a noção <strong>de</strong> soberania e a transferem,conceitualmente, ao povo. Na prática, porém, organizam-se numa complexa estrutura<strong>de</strong> freios e contrapesos (ou seja, sem uma noção unívoca <strong>de</strong> soberania interna 475 ).Como conciliar “soberania do povo” com “<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res”?Uma saída possível seria localizar o “povo” <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r constituinteoriginário, uno e fundador, que se apaga na política cotidiana. Essa linha, porém,como vimos nos capítulos anteriores, não agrada a todos. Mais do que isso, aplica umi<strong>de</strong>al <strong>de</strong> “soberania do povo” talvez fraudulento. Outra alternativa seria localizar opovo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma das instituições, a qual passaria a ser o ápice <strong>de</strong>ssa estrutura.Qualquer <strong>de</strong>cisão que contrarie escolhas da instituição soberana por excelência seria,assim, anti-<strong>de</strong>mocrática. Mas essa solução escon<strong>de</strong> ruídos que a lógica da <strong>separação</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>res não tem como evitar. Descrever a co-existência <strong>de</strong> uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>fontes <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> por meio do conceito <strong>de</strong> soberania é tarefa extremamentecontroversa, cuja saída normativa costuma estar associada ao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> que os po<strong>de</strong>resencontrem formas <strong>de</strong> “cooperar”. 476473 Cícero <strong>de</strong> Araújo, Fundações da República e do Estado, p. 55.474 “Para ser exato, uma doutrina da divisão/<strong>separação</strong> dos po<strong>de</strong>res constitucionais do tipo checks andbalances, também po<strong>de</strong> se apresentar sob o invólucro da forma Estado. Contudo, o caráter intrínseco <strong>de</strong>sua soberania traz consigo a noção <strong>de</strong> um cume do processo <strong>de</strong>cisório constitucional, e isso não seencaixa bem no espírito da doutrina. A figura do soberano estatal é também a figura da última instância<strong>de</strong>cisória, contra a qual não há recurso nem controle. Mas a idéia <strong>de</strong> um soberano normativamentelimitado ou contrarrestado por outros po<strong>de</strong>res, como bem sublinha Hobbes, é contraditória com esseconceito. Assim, sob os auspícios da soberania intrínseca, a doutrina da divisão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res acaba tendo<strong>de</strong> apontar a instância <strong>de</strong> último recurso que cumpra o papel do soberano, caso os po<strong>de</strong>res nãoconvirjam para um mesmo ponto. Porém, o espírito da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é <strong>de</strong>ixar essa questão emaberto” (cf. “Representação, Retrato e Drama”, p. 252). Em outra passagem, afirma: “A ConstituiçãoMista não tem nada a objetar, ao contrário, só a estimular que haja diferentes centros <strong>de</strong>cisórios, cadaqual po<strong>de</strong>ndo reivindicar divergentemente a representação do Povo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que este não seja pensadocomo um ente homogêneo apto a provi<strong>de</strong>nciar um self inequívoco à representação” (p. 257).475 Cícero <strong>de</strong> Araújo, Fundações da República e do Estado, p. 61.476 “Pois se há uma questão continuamente pen<strong>de</strong>nte na teoria constitucional, é a <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o locusinequívoco do soberano reclamado por aquele conceito: ainda que se possa salvá-lo assinalando, emprincípio, o momento e a responsabilida<strong>de</strong> específica na qual essa ou aquela agência governamental seapresentaria como ‘o soberano’, a teoria acaba ce<strong>de</strong>ndo à noção normativa <strong>de</strong> que ou os po<strong>de</strong>resconstitucionais encontram maneiras <strong>de</strong> ‘cooperar’ uns com os outros, ou a or<strong>de</strong>m política sucumbe àparalisia” (Ibid, p. 239).184


Parece-me que a questão, assim formulada, é bastante semelhante àquela <strong>de</strong>que trato neste trabalho. Essa tradição é um horizonte teórico <strong>de</strong> fundo que ilumina omeu problema. Nesse tópico, contudo, quero testar a complementarieda<strong>de</strong> entrediálogo e última palavra, e a referência dos freios e contrapesos não capta exatamentea dimensão temporal que procuro <strong>de</strong>stacar. Fuller e Hart acrescentam algo a essarelação.3.2 Entre Fuller e Hart?O <strong>de</strong>bate entre Fuller e Hart é um episódio inspirado da teoria do direito doséculo XX. 477 Acredito que a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conciliação entre eles diz algo sobrecomo enten<strong>de</strong>r a co-existência <strong>de</strong> “diálogo permanente” e “últimas palavrasprovisórias”. Esse <strong>de</strong>bate, naturalmente, envolve um conjunto gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> argumentos econceitos. Quero apenas pinçar duas <strong>de</strong>finições gerais para levar adiante a tarefa quepropus aqui: o direito concebido como um “empreendimento teleológico” e o direitovisto como “fato social”. Entendamos um pouco melhor os termos <strong>de</strong>sse aparenteconflito.Hart intenta <strong>de</strong>screver o direito na posição <strong>de</strong> um observador externo que olhapara um <strong>de</strong>terminado fenômeno social. A partir <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista, ele nota que oelemento distinto do direito, em relação a outros fenômenos normativos, não são asregras <strong>de</strong> conduta, que impõem <strong>de</strong>veres (as quais ele chama <strong>de</strong> primárias), mas asregras que conferem po<strong>de</strong>res e faculda<strong>de</strong>s (as secundárias, já brevementemencionadas no capítulo 1). Num estado <strong>de</strong> direito, basicamente, agentes públicosobe<strong>de</strong>cem regras secundárias, em boa medida. Sem regras secundárias (on<strong>de</strong> não háautorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finidas e as regras <strong>de</strong> conduta correspon<strong>de</strong>m a práticas sociaisdispersas), um estado <strong>de</strong> direito ou não atingiu a maturida<strong>de</strong> ou encontra-se em crise.Segundo ele, esse é um fato que se constata, não que se avalia. Descrever o direito talcomo ele é não impe<strong>de</strong> que se lance mão da “moralida<strong>de</strong> crítica” para julgá-lo, ou quese <strong>de</strong>fendam visões sobre como ele <strong>de</strong>ve ser, e a partir daí estimular a sua reforma.477 Esse diálogo começa com o artigo <strong>de</strong> Hart, “Positivism and the Separation of Law and Morals”(1958), ao qual Fuller respon<strong>de</strong> com “Positivism and Fi<strong>de</strong>lity to Law” (1958); no livro Concept of Law(1961), Hart retoma diversos dos temas, aos quais Fuller respon<strong>de</strong> em The Morality of Law (1964),resenhado criticamente por Hart, cujas críticas, finalmente, foram respondidas por Fuller num apêndiceà segunda edição <strong>de</strong> seu livro (1969).185


Misturar “ser” e “<strong>de</strong>ver ser”, todavia, tem o efeito perverso <strong>de</strong> dificultar a tarefa <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntificar o direito com clareza, <strong>de</strong> criticá-lo e, caso se <strong>de</strong>seje, aperfeiçoá-lo. 478Fuller apresenta uma versão diferente. Para ele, o estado <strong>de</strong> direito não “é”,simplesmente. Ele “tem que ser”. Correspon<strong>de</strong> a uma conquista, uma perseguiçãocontínua <strong>de</strong> um propósito: submeter o comportamento humano a regras. Não se trata<strong>de</strong> um fato, mas <strong>de</strong> um objeto do esforço humano, gerenciado ininterruptamente pormeio das habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma arte prática. Sua existência é uma questão <strong>de</strong> grau 479 –<strong>de</strong> maior ou menor sucesso no atingimento daquele propósito.Para buscar o objetivo <strong>de</strong> sujeitar o comportamento humano a regras, o direitotem que respeitar a uma moralida<strong>de</strong> interna (que ele chamou <strong>de</strong> “jusnaturalismoprocedimental”, em oposição à moralida<strong>de</strong> externa, o “jusnaturalismosubstantivo” 480 ). Compõe tal moralida<strong>de</strong> o seu festejado conjunto <strong>de</strong> oito parâmetrosnecessários para a produção <strong>de</strong> regras capazes <strong>de</strong> serem obe<strong>de</strong>cidas (generalida<strong>de</strong>,não-retroativida<strong>de</strong>, clareza etc. 481 ). Tal moralida<strong>de</strong> interna do direito, sem a qual elenão consegue existir em grau mínimo, é um exemplo <strong>de</strong> “moralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aspiração”,aquela que estabelece padrões <strong>de</strong> excelência que nunca são totalmente atingidos, masque apontam as metas que orientam nossas escolhas. 482 O direito precisa ser vistocomo um empreendimento teleológico que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, para o seu sucesso, da energia eda inteligência daqueles que o conduzem. Se visto como um simples fato <strong>de</strong>autorida<strong>de</strong>, per<strong>de</strong>-se a dimensão do que ele está “tentando fazer”. 483 O i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao direito, portanto, necessita <strong>de</strong> planejamento. 484 Não é mera coincidência478 Cf. “Positivism and the Separation of Law and Morals”.479 “[Hart is wrong] to treat law as a datum projecting itself into human experience and not as an objectof human striving. When we realize that or<strong>de</strong>r itself is something that must be worked for, it becomesapparent that the existence of a legal system, even bad or evil legal system, is always a matter of<strong>de</strong>gree” (“Positivism and Fi<strong>de</strong>lity to Law”, p. 646). “If law is simply a manifested fact of authority orsocial power, then, though we can still talk about the substantive justice or injustice of particularenactments, we can no longer talk about the <strong>de</strong>gree to which a legal system as a whole achieves thei<strong>de</strong>al of legality” (The Morality of Law, p. 147).480 The Morality of Law, p. 102.481 The Morality of Law, p. 46 e ss.482 Moralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aspiração se opõe à moralida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>ver, esta preocupada com as exigênciasmínimas sem as quais torna-se impossível a convivência social.483 The Morality of Law, p. 145.484 “For I believe that a realization of this i<strong>de</strong>al is something for which we must plan, and that isprecisely what positivism refuses to do. (…) planning the conditions that will make it possible torealize the i<strong>de</strong>al of fi<strong>de</strong>lity to law” (“Positivism and Fi<strong>de</strong>lity to Law”, p. 642-643).186


a enorme preocupação que Fuller tem com as técnicas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho institucional. Aconcepção <strong>de</strong> Hart ignoraria esse fenômeno social mais complexo. 485Suspeito que, por baixo do <strong>de</strong>sacordo que eles mesmos insistem em verbalizar,tais autores estejam falando <strong>de</strong> coisas diferentes, orientados por objetivos teóricosdiversos. Hart não necessariamente nega que o conjunto <strong>de</strong> técnicas para manter ofenômeno jurídico em funcionamento precisa <strong>de</strong> empenho contínuo daqueles quefabricam tais regras. Ele simplesmente aponta que o direito não po<strong>de</strong> existir, antes <strong>de</strong>tudo, sem referência precisa a quais são as fontes <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> e a uma prática social<strong>de</strong> obediência a elas. Fuller, <strong>de</strong> outro lado, alerta para o perigo <strong>de</strong> ver isso como umdado pronto e acabado, e lembra da importância <strong>de</strong> perceber o engenho humanosubjacente a esse fenômeno (a “conquista” por trás do “fato”).Ver o direito como um fato presente ou como um empreendimento contínuo,como mera localização <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> ou como um projeto que precisa seradministrado, <strong>de</strong>staca, ao meu ver, os dois componentes da relação que estamosestudando aqui. Chama a atenção, em especial, para duas perspectivas temporais pormeio das quais po<strong>de</strong>mos observar a política e o direito: a sincrônica e a diacrônica. Naprimeira, importa saber quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>manda, aqui e agora; na segunda, qual onorte que propicia a continuida<strong>de</strong>, a manutenção e o auto-aperfeiçoamento daquelaautorida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> quando é chamada.Associar, mecanicamente, Fuller à perspectiva do diálogo e Hart à da últimapalavra po<strong>de</strong> cometer alguma imprecisão e cometer injustiça às suas respectivasteorias. Mas o esforço <strong>de</strong> lê-los por essa lente, apesar do risco da interpretaçãoforçada, ajuda-nos a perceber duas metas paralelas <strong>de</strong> um estado e, no nosso caso, da<strong>de</strong>mocracia constitucional. Por mais que a última palavra cumpra funçãoimprescindível, talvez não seja somente por aí que a pergunta sobre a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>um regime <strong>de</strong>va ser formulada.3.3 Graus <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong> por autorida<strong>de</strong>: a última palavra importa?485 “(…) Hart leaving completely untouched the nature of the fundamental rules that make law itselfpossible” (“Positivism and Fi<strong>de</strong>lity to Law”, p. 639).187


“Ninguém tem a última palavra porque não há última palavra”. 486 A frase <strong>de</strong>Hanna Pitkin serviu como epígrafe da tese. Ao proferi-la, a autora não estavadiscutindo o problema da revisão judicial. Fora do seu contexto, <strong>de</strong> qualquer modo, talpassagem me fornece uma síntese provocativa para tentar coletar os pedaçosespalhados pelo texto e fechar algumas conclusões iniciais.Até aqui, o capítulo <strong>de</strong>u algumas voltas. Tateou algumas formas <strong>de</strong> livrar adiscussão do peso da última palavra. Sua importância está inflada e <strong>de</strong>sbalanceada naliteratura hegemônica da teoria constitucional. Não me parece ser o elemento que<strong>de</strong>fine se um regime é mais ou menos <strong>de</strong>mocrático, conforme tentarei aprofundar norestante <strong>de</strong>sse capítulo e no próximo.Essa obsessão produziu um efeito teórico diversionista, que reduziu a análise<strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> a uma busca por quem seria <strong>de</strong>tentor da autorida<strong>de</strong> mais alta. Seriauma imposição da lógica elementar da autorida<strong>de</strong>: se não há acordo sobre<strong>de</strong>terminado tema coletivo, algum procedimento <strong>de</strong>cisório precisaria resolvê-lo. Foicom base nessa “regra <strong>de</strong> ouro” da política que Waldron formulou o ataque à revisãojudicial que já nos é familiar. Num certo sentido, entretanto, tal regra <strong>de</strong> ouro não seaplica. 487 A política é uma seqüência ininterrupta <strong>de</strong> contestações e revisões das<strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>. Isso não é regressão ao infinito, mas continuida<strong>de</strong> histórica.Não se trata, a rigor, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> “em aberto”, o quecausaria um <strong>de</strong>sconforto existencial insuportável nos autores mais ansiosos porautorida<strong>de</strong>. Não tolerariam a incerteza <strong>de</strong> um regime no qual <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> quem quer, ou noqual, alternativamente, ninguém <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, situações com as quais é difícil lidar comserenida<strong>de</strong>. 488 A separaração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res admite, porém, que a cada momento <strong>de</strong>cidauma agência diferente (ou que, como veremos no próximo tópico, a <strong>de</strong>cisão final sejauma espécie <strong>de</strong> combinação da posição <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma agência). Talvez isso sejamenos grave do que as duas hipóteses anteriores.486 “No one has the last word because there is no last word” (“Obligation and Consent—II”, p. 52).487 “Unless we envisage a literally endless chain of appeals, there will always be some person orinstitution whose <strong>de</strong>cision is final. (...) People disagree, and there is need for a final <strong>de</strong>cision and a final<strong>de</strong>cision-procedure” (“The core of the case”, p. 1400, 1401).488 Para alguns autores relatados no capítulo 4, como vimos, o diálogo serve apenas para garantir aresposta legislativa, ou seja, a última palavra do parlamento. Outros, porém, estão mais preparados paraaceitar a inexistência, num certo sentido, da última palavra.188


De uma certa maneira, apontar para a provisorieda<strong>de</strong> das <strong>de</strong>cisões chega a serbanal. No limite, é óbvio que a existência <strong>de</strong> leis, instituições, regimes políticos, vidashumanas, socieda<strong>de</strong>s etc. é provisória, e que, nesse meio-tempo, precisamos <strong>de</strong><strong>de</strong>cisões que regulem condutas, elaborem políticas e estabeleçam padrões <strong>de</strong>convivência. É fundamental, por isso, que instituições possam aten<strong>de</strong>r a essa<strong>de</strong>manda. A construção <strong>de</strong>las terá <strong>de</strong> recorrer, como sempre, a um balanceamentoentre os diversos valores em jogo, que permita a mudança sem, ao mesmo tempo,facilitá-la a ponto <strong>de</strong> comprometer um grau mínimo <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>.Minha busca, portanto, não é por dispensar a última palavra, mas por <strong>de</strong>scobriro seu papel teórico remanescente. Situá-la, ao menos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma rodadaprocedimental, é uma escolha institucional necessária e não trivial. Depen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong> qualbalanceamento enten<strong>de</strong>rmos ser mais <strong>de</strong>sejável, do grau <strong>de</strong> resistência à mudança quequeremos dar à última palavra provisória (em especial, aquela que trata <strong>de</strong> direitos, omote da tese), da estimativa do preço que vale a pena pagar pelos seus custos, docálculo do que ganhamos e do que per<strong>de</strong>mos.Numa seqüência <strong>de</strong> perguntas e respostas, talvez consiga sintetizar sem maisro<strong>de</strong>ios: A última palavra sobre direitos importa? Sim, mas menos do que se supunha.Importa para quê? Para firmar <strong>de</strong>cisões com pretensão <strong>de</strong> maior durabilida<strong>de</strong>; pararesolver, ainda que temporariamente, uma <strong>de</strong>manda por <strong>de</strong>cisão coletiva que valhapara todos. Qual, então, o critério para a escolha da autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong>ssaprerrogativa? A confiança da comunida<strong>de</strong> na instituição que tenha maiorprobabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir a melhor <strong>de</strong>cisão. E se essa instituição for,comparativamente, menos <strong>de</strong>mocrática do que as alternativas? Mesmo que se aceite ahipótese da qualida<strong>de</strong> mais ou menos <strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong> instituições isoladas, <strong>de</strong>ntro dalógica da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, aquela que for “mais <strong>de</strong>mocrática”, caso discor<strong>de</strong>,sempre po<strong>de</strong>rá respon<strong>de</strong>r. Se outra, <strong>de</strong> fato, for “mais <strong>de</strong>mocrática”, dificilmente será<strong>de</strong>rrotada por muito tempo.A última palavra, portanto, é apenas parte da história, não toda ela. Mas,então, o que mais importa? Quais as conseqüências <strong>de</strong> se dizer o óbvio – a suaprovisorieda<strong>de</strong>, em alguma medida, incontornável? Entendo que há ganhos cognitivos189


elevantes. Relacionam-se, provavelmente, às preocupações <strong>de</strong> Fuller. O principal<strong>de</strong>les é habilitar-nos a perceber diferentes escalas temporais da <strong>de</strong>mocracia, o quechamei, em parágrafo anterior, <strong>de</strong> senso <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>. Outro, certamente, é umarecomendação básica <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho institucional: na <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, não há ummonopólio <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões sobre direitos localizado numa das partes. Esse foco é contraproducente.A forma como essas partes interagem e, juntas, vão gradualmenteconstruindo soluções jurídicas estáveis tem potencial promissor <strong>de</strong> investigação.Antes que tentemos, finalmente, extrair conclusões normativas <strong>de</strong> todas essasconsi<strong>de</strong>rações, o próximo tópico acrescenta mais elementos ao problema.4. Reativida<strong>de</strong> política, acomodações pru<strong>de</strong>nciais e flutuações <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>Se, por um lado, o mito da neutralida<strong>de</strong> judicial já foi quebrado há bastantetempo por diferentes escolas, o da in<strong>de</strong>pendência judicial sobrevive e continuaignorado pela teoria normativa (seja pelos que a celebram, seja pelos que lamentam ecriticam sua ilegitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática). Muitos admitem que o juiz <strong>de</strong>cida conformeconvicções políticas e i<strong>de</strong>ológicas. Dworkin, por exemplo, constrói sua teoria daleitura moral da constituição e do direito como integrida<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong>ssa premissa (oque não significa, para ele, que não existam outros limites da razão). Não aceitam ounão notam que o comportamento judicial seja <strong>de</strong>terminado, contudo, porconstrangimentos políticos externos. Ou seja, se a corte é cercada por todo um aparatoprocedimental para garantir in<strong>de</strong>pendência em relação à política eleitoral, o juiz estálimitado, para os mais otimistas, unicamente pelo direito, e, para outros, nem isso.Três teses <strong>de</strong>fendidas pela ciência política empírica sobre o comportamentojudicial rompem esse segundo mito. Não pretendo entrar nas variações e nasofisticação dos variados mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> análise existentes. Registro apenas o mínimoque eles compartilham: (i) a corte é politicamente sensível e testa, <strong>de</strong> modoininterrupto, o espaço que po<strong>de</strong> ocupar na <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res a partir do cálculo daresposta potencial dos outros po<strong>de</strong>res às suas <strong>de</strong>cisões, e <strong>de</strong> sua força e capacida<strong>de</strong>para resistir; (ii) a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é um fenômeno dinâmico, e uma normajurídica abstrata não tem como <strong>de</strong>screver ou capturar essa constante redistribuição <strong>de</strong>fronteiras; (iii) em paralelo a essa interação, a própria legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada190


participante do jogo também oscila, e tal oscilação é responsável, inclusive, peloespaço maior ou menor que o po<strong>de</strong>r irá ocupar no arranjo <strong>de</strong> forças.Reativida<strong>de</strong> política, acomodações pru<strong>de</strong>nciais e flutuações <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>são um fenômeno que os Fe<strong>de</strong>ralistas 489 arquitetaram e pesquisas empíricascomprovaram. 490 Po<strong>de</strong>res usam <strong>de</strong> prudência para testar até on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ir. Trata-se<strong>de</strong> um juízo <strong>de</strong> ocasião e <strong>de</strong> medida. O retrato da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é, a cadamomento, diferente. Não se participa <strong>de</strong> modo bem sucedido <strong>de</strong>sse jogo sem asqualida<strong>de</strong>s, nas palavras <strong>de</strong> Bickel, <strong>de</strong> um “animal político”.A corte constitucional, nesse sentido, não está numa torre <strong>de</strong> marfim, mas nocalor da política. Mesmo que métodos <strong>de</strong> interpretação não constranjam juízes tantoquanto esperávamos, a política (formal e informal) o faz. Juízes farejam o grau <strong>de</strong>aceitabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões e estão sujeitos a pressões difusas e específicas.Recorro a alguns exemplos históricos que ilustram essa idéia. Extraio tais exemplos,intencionalmente, não da literatura <strong>de</strong> ciência política, mas <strong>de</strong> uma coletânea <strong>de</strong>artigos que tentou comparar tradições <strong>de</strong> interpretação constitucional. 491 Ainsuficiência das categorias jurídicas para explicar fenômenos <strong>de</strong> maior ou menorativismo das cortes torna-se bastante evi<strong>de</strong>nte na leitura <strong>de</strong>ste livro. Seus artigoslimitam-se, praticamente, a classificar o método da corte como “formalista” e“positivista” quando ela toma <strong>de</strong>cisões contidas, ou como “teleológico”,“sociológico”, “estruturalista” etc. quando avança para <strong>de</strong>cisões mais ousadas. Nãoarticulam razões políticas para explicar por que cortes mudaram entre um e outropólo, apesar <strong>de</strong>, curiosamente, narrarem os fatos por trás <strong>de</strong>ssas mudanças. 492 Nãoverbalizam esses plausíveis nexos causais, mas permitem que o leitor as especule.Aos exemplos. As constituições e as respectivas cortes constitucionais daAlemanha (pós-guerra) e da África do Sul (pós-apartheid) nasceram com uma489 Cf. O Fe<strong>de</strong>ralista n. 47-51 (teoria da “inter-branch interaction” <strong>de</strong> Madison).490 Em diferentes vertentes como as relatadas no capítulo 4, especialmente por Barry Friedman e pelacorrente da construção coor<strong>de</strong>nada.491 Jeffrey Goldsworhty (ed.), Interpreting Constitutions. Escrevi uma resenha <strong>de</strong>sse livro, <strong>de</strong> on<strong>de</strong>extraio alguns <strong>de</strong>sses exemplos.492 Apenas Mark Tushnet, no relato sobre a Suprema Corte americana, suscita a hipótese cética: “noneof the methods imposes a sufficiently powerful constraint in the mere policy preferences ofinterpreters” (Ibid, p. 51).191


característica comum: num ambiente <strong>de</strong> profunda <strong>de</strong>sconfiança dos órgãos políticoseleitorais, marcaram a ruptura com o passado autoritário e sinalizaram para umprograma futuro <strong>de</strong> extensa transformação social. As respectivas cortes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então,ocuparam papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na promoção <strong>de</strong> direitos. 493 A corte constitucionalindiana traz um exemplo mais claro da conexão entre a opção interpretativa e aatmosfera política. Des<strong>de</strong> a in<strong>de</strong>pendência do país, e ainda embebidos na culturaconstitucional britânica <strong>de</strong> soberania do parlamento, a corte constitucional teve papeltímido durante algumas décadas. Na década <strong>de</strong> 70, contudo, a situação se inverteu àmedida que o governo autoritário <strong>de</strong> Indira Ghandi fez a reputação dos órgãosrepresentativos <strong>de</strong>cair. Criou-se um vácuo político oportuno para que a cortetransformasse sua imagem <strong>de</strong> órgão conservador e elitista na <strong>de</strong> um agente relevantena proteção <strong>de</strong> direitos. É <strong>de</strong>ssa época a <strong>de</strong>cisão extremamente interventiva <strong>de</strong>controlar a constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> emendas constitucionais por meio da construção da“doutrina dos atributos básicos da constituição”. As três cortes mencionadas, no auge<strong>de</strong> seu ativismo, não enfrentaram objeções quanto à sua legitimida<strong>de</strong>.Exemplo contrário nos dá o caso australiano. A postura estritamente“legalista” e contida é vista, segundo o livro, como a única maneira <strong>de</strong> a corte manterum mínimo <strong>de</strong> “in<strong>de</strong>pendência”. 494 No único momento em que a corte ameaçou maior“criativida<strong>de</strong>” – a construção <strong>de</strong> uma carta <strong>de</strong> direitos implícita, uma vez que aAustrália não dispõe <strong>de</strong> algo semelhante em sua constituição – a resistência e osataques <strong>de</strong> todos os lados a fizeram <strong>de</strong>sistir e voltar ao seu limitado lugar. A históriada Suprema Corte americana, por fim, é a que fornece exemplos mais prolíficos parailustrar os fatores políticos que conduzem a essas sístoles e diástoles judiciais. Essasoscilações pendulares foram explicadas como uma tradição <strong>de</strong> “ecletismointerpretativo”.A hipótese explicativa que o livro não formula é que cada corte testou sualegitimida<strong>de</strong> e calibrou o seu grau <strong>de</strong> intervenção conforme o ambiente e aexpectativa social sobre seu papel. Tal hipótese não propõe, necessariamente, que alegitimida<strong>de</strong> da corte para ser ativista é inversamente proporcional à do parlamento,como se houvesse alguma causalida<strong>de</strong> linear, ou que o parlamento é o pólo dominante493 Ibid, pp. 320 e 339.494 Ibid, p. 145.192


para permitir maior ou menor espaço à corte. Mas mostra, certamente, que há muitomais variáveis em operação do que costuma <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a teoria normativa. Métodosinterpretativos parecem ter sido, em todos esses casos, subprodutos para racionalizar<strong>de</strong>cisões, não os seus próprios <strong>de</strong>terminantes.Essas modulações conforme as circunstâncias são compatíveis com a origemda idéia <strong>de</strong> freios e contrapesos, mas não se adaptam a uma teoria da adjudicação quese pren<strong>de</strong> a uma função estática e prefixada. A operação das instituições <strong>de</strong>ntro da<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é dinâmica. Elas negociam passo a passo seus raios <strong>de</strong> atuação.Mesclam atos <strong>de</strong> ativismo e contenção, ocupação e <strong>de</strong>socupação <strong>de</strong> espaço. Trata-se,sobretudo, <strong>de</strong> um processo informal (e não formalizável) <strong>de</strong> acomodaçõescontingentes ditadas pela política, não por uma cartilha <strong>de</strong> hermenêutica (o que nãosignifica que “política”, na acepção que aplico, não seja sensível a “boas razões”,ponto do próximo capítulo).A constituição, enquanto norma escrita, é um plano <strong>de</strong> vôo que regula pouco a<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Esta não tem como escapar <strong>de</strong> fluxos e refluxos, <strong>de</strong> exercícios<strong>de</strong> tentativa e erro em que, por aproximações sucessivas, cada instituição <strong>de</strong>marca oseu terreno. Alcançam equilíbrios instáveis, sempre sujeitos a recalibragens. Isso nãoé tangível nem quantificável numa norma jurídica ou numa proposição da teorianormativa. Não é possível prever constitucionalmente o momento em que uma, e nãooutra, gozará <strong>de</strong> maior legitimida<strong>de</strong> para tomar as gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>cisões.Essa tese compartilha <strong>de</strong> uma teoria da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res que, no campodos direitos <strong>fundamentais</strong>, não propõe funções estáticas, mas cambiantes. Isso está emsintonia com o que a literatura da ciência política empírica afirma sobre a <strong>de</strong>cisãojudicial. 495 Papéis variam por baixo dos termos fixos da constituição. Esse jogo <strong>de</strong>495 Matthew Taylor, por exemplo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma idéia <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência judicial em consonância comessa linha: “The mo<strong>de</strong>l illustrates why judicial in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce is not binary, is strongly influenced bypolitical conditions, cannot be completely <strong>de</strong>fined by rigidly formal ‘parchment’ protections alone, andmay vary consi<strong>de</strong>rably across both time and policy arenas, even within the same political system”(“Judicial In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce”, p. 3). Sobre os constrangimentos formais e informais que a corte enfrenta,afirmou: “any conception of in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce must take them into account, alongsi<strong>de</strong> political preferencesand less formal factors, such as legitimacy and long-term processes of institutional <strong>de</strong>velopment.Because judicial in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce is the result of the interplay between court preferences and thepreferences of other branches of government, it is a dynamic space whose range may varyconsi<strong>de</strong>rably, even within the same political system. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce is thus an unstable and highly193


forças, contudo, não é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da socieda<strong>de</strong> e da repercussão <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões.A opinião pública interage e é responsável por flutuações <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>. Instituiçõesconstroem capital político difuso e passam a gerenciá-lo em <strong>de</strong>cisões mais e menospopulares. Sua margem <strong>de</strong> ação, a<strong>de</strong>mais, não se <strong>de</strong>fine em bloco. Varia também <strong>de</strong>tema para tema, <strong>de</strong> acordo com a respectiva voltagem política do conflito. 496Apesar <strong>de</strong> a corte po<strong>de</strong>r errar, e errar grosseiramente (seja qual for o critériopor meio do qual se meça o erro), não é realista nem historicamente plausível dizerque ela possa <strong>de</strong>cidir continuamente <strong>de</strong> modo <strong>de</strong>sconectado da realida<strong>de</strong>, que ela nãose preocupe com a manutenção <strong>de</strong> seu prestígio e respeitabilida<strong>de</strong>, dos quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>não só sua legitimida<strong>de</strong>, mas inclusive a eficácia <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões. Ela não conseguesustentar sua autorida<strong>de</strong> por muito tempo se insistir numa postura que não sejaaceitável numa <strong>de</strong>terminada cultura política.O grau <strong>de</strong> resistência da última palavra provisória, o qual, conforme <strong>de</strong>fendino último tópico, é componente relevante das opções <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho institucional,também está, portanto, sujeito a essas variações. Se tudo isso é verda<strong>de</strong>, como a teorianormativa po<strong>de</strong> reagir? O <strong>de</strong>safio da teoria normativa, ao meu ver, não é aprisionar asinstituições num esquema rígido da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res (ou <strong>de</strong> métodoshermenêuticos), mas fazer com que o princípio regulador <strong>de</strong>ssas oscilações sejapermeável a “bons argumentos”. O próximo capítulo tentará <strong>de</strong>senvolver maisclaramente uma teoria da legitimida<strong>de</strong> do diálogo sob esse prisma. Antes, o tópicoabaixo sintetiza os passos dados até aqui.5. Algumas conclusões e preâmbulo do próximo capítuloSe a tese terminasse aqui, algumas realizações mínimas, espero, já teriam sidoatingidas. Tentei enten<strong>de</strong>r o que a forma da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res significa para a<strong>de</strong>mocracia constitucional. Para além <strong>de</strong> sua virtu<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>radora, que é a suajustificativa tradicional, a sua gramática relativiza a última palavra, on<strong>de</strong> quer que elavariant concept, resulting from recurring interactions that play out across both time and across differentpolicy arenas” (Ibid, p. 5). E concluiu: “First, judicial in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce cannot be consi<strong>de</strong>red in isolationfrom the interaction between courts and the conventionally political (and sometimes elected) branches”(Ibid, p. 28).496 Ou casos <strong>de</strong> “alta saliência” e “baixa saliência”, conforme Friedman.194


esteja localizada. Talvez esta segunda virtu<strong>de</strong> seja apenas a tradução da primeira, masé importante explicitá-la para que o <strong>de</strong>bate não mais se <strong>de</strong>ixe seduzir por aquelaobsessão. É necessário pon<strong>de</strong>rar esse suposto ápice do processo <strong>de</strong>cisório com o fato<strong>de</strong> que a luta política está fadada a continuar, e novos atos <strong>de</strong>safiarão a supremacia <strong>de</strong>uma ou <strong>de</strong> outra instituição. Significa que, em alguma medida, a extensa lista <strong>de</strong>argumentos favoráveis e contrários a cortes e parlamentos po<strong>de</strong>m coexistir. Oscapítulos 2 e 3 não precisam se eliminar reciprocamente. Não há que se buscar ovencedor daquela disputa. Nessa oposição exclu<strong>de</strong>nte, algo se per<strong>de</strong>. Em vez disso,po<strong>de</strong>-se balancear tais informações numa análise <strong>de</strong> custo-benefício para o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong>uma rodada procedimental, que é tudo que está ao alcance <strong>de</strong> um arquitetoconstitucional. Definir o lugar da última palavra provisória será uma escolhapragmática, entre outras tão ou mais importantes.A forma da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res consiste, nesse sentido, numa técnica <strong>de</strong>multiplicação dos tempos da política. Nadia Urbinati <strong>de</strong>stacou um ângulo parecido emsua teoria da representação, e o empréstimo <strong>de</strong> seu argumento po<strong>de</strong> ser elucidativo,inclusive, para a conexão com o próximo capítulo. Essa autora justifica arepresentação como um mecanismo que faz a política superar a dimensão da vonta<strong>de</strong>imediata e abrir-se para a prática do julgamento e da <strong>de</strong>liberação. Contra umaconcepção voluntarista e unidimensional da soberania, a representação dá um salto emque a opinião, e não somente o voto, cumprem papel relevante. A presença política<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter um aspecto meramente físico, e passa a se realizar também por meio davoz.Segundo ela, a diferença entre a <strong>de</strong>mocracia direta e a representativa estariarelacionada, antes <strong>de</strong> tudo, ao caráter “unitemporal” da primeira em oposição à“multitemporalida<strong>de</strong>” da segunda. 497 A representação teria uma especial capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> costurar as diferentes “camadas temporais da política”, e <strong>de</strong> estabilizar opermanente processo <strong>de</strong> revogação que caracteriza a <strong>de</strong>mocracia. 498 Seria uma497 “Whereas immediacy and physical presence are the requirements of nonrepresentative <strong>de</strong>mocraticgovernment, multitemporality and presence through voice and i<strong>de</strong>as are requirements of representative<strong>de</strong>mocratic government. In the former, the will <strong>de</strong>vours politics in a series of discrete and absolute actsof <strong>de</strong>cision. In the latter, politics is an uninterrupted narrative of proposals and projects that unifies thecitizens and requires them to communicate in a given normative space and over time” (RepresentativeDemocracy, p. 225).498 Representative Democracy, p. 225.195


solução para a “imediatida<strong>de</strong>” ou a “força <strong>de</strong>sestabilizadora do presentismo”. Criariauma “soberania mediada”, um continuum que une a política <strong>de</strong> curto prazo daseleições (a política do sim ou não, refém do short-termism) ao longo prazo dos cicloseleitorais. 499 Além disso, estimularia uma circulação produtiva <strong>de</strong> idéias entre asesferas formal e informal da política.Esse capítulo tentou mostrar, na <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, o que Urbinati iluminana representação. Do mesmo jeito que esta é um mecanismo <strong>de</strong> circulação entreinstituições estatais e as práticas sociais, 500 a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é uma ferramentaque traz essa circulação para <strong>de</strong>ntro do próprio estado. Dinamizar as escalas temporaisda política, contudo, não é um fim em si mesmo para Urbinati. O seu benefício épermitir a <strong>de</strong>liberação, <strong>de</strong>cisões políticas que, além <strong>de</strong> sempre estarem sujeitas àrevisão, também se beneficiam da troca <strong>de</strong> argumentos. A representação, nessesentido, nos ajudaria em dois aspectos: “<strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista teórico, ilumina o lugare o papel do julgamento na política; <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista fenomenológico, muda aperspectiva <strong>de</strong> tempo e espaço na política, um aspecto essencial da <strong>de</strong>mocracia masainda não suficientemente estudado”. 501 É essa dupla-face da representação (tempo /<strong>de</strong>liberação), adaptada à <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, que orienta a divisão entre o presentecapítulo e o próximo.Apresentei aqui a inevitabilida<strong>de</strong> do diálogo, a sua manifestação em estadobruto, sem gran<strong>de</strong> exigência normativa. Sempre haverá respostas, mais ou menos<strong>de</strong>moradas, mais ou menos frontais, mais ou menos custosas. “Diálogo”, nessesentido fraco da mera interação, talvez nem seja a palavra a<strong>de</strong>quada, mas isso é o quemenos importa. O fato <strong>de</strong> que os po<strong>de</strong>res interagem ininterruptamente, mesmo apósúltimas palavras provisórias, é suficiente para o ponto do capítulo. Escolhasinstitucionais não po<strong>de</strong>m ignorar esses dois eixos (a finitu<strong>de</strong> da rodada procedimental,e a sempre possível continuida<strong>de</strong> da mobilização política).A dinâmica temporal da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é o mo<strong>de</strong>lo dos Fe<strong>de</strong>ralistas noseu estado puro, e traz alguns dados para enten<strong>de</strong>r o fenômeno da legitimida<strong>de</strong>. O499 Ibid, p. 197.500 Ibid, p. 223.501 Ibid, p. 225.196


capítulo 7 concebe um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> diálogo mais genuíno, conduzido conscientementepelas partes. Investiga as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> explorar a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res nãoapenas pela sua forma, mas também pela qualida<strong>de</strong> potencial <strong>de</strong> seus resultados. Lá, a<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res passa a ser <strong>de</strong>scrita não mais por adjetivos indicadores <strong>de</strong> tempocomo “permanente”, “contínuo”, “gradual”, “ininterrupto” ou “provisório”, mas poradjetivos indicadores <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s morais, tais como “correto”, “razoável”,“<strong>de</strong>sejável”, “justificável”.197


Capítulo 7Separação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e legitimida<strong>de</strong>: <strong>de</strong>liberação inter-institucional1. IntroduçãoHá diálogo ou última palavra? Por meio dos conceitos <strong>de</strong> “rodadaprocedimental” e “última palavra provisória”, tentei encontrar uma saídaintermediária e conciliatória. Se o diálogo é uma constatação importante, qual diálogoé mais <strong>de</strong>sejável na <strong>de</strong>mocracia? Para respon<strong>de</strong>r a esta pergunta, este capítuloconceberá “mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> diálogo” que variam conforme o “<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo”<strong>de</strong> cada instituição, conceitos que aparecerão adiante. Sustento que a interação<strong>de</strong>liberativa entre os po<strong>de</strong>res tem um potencial epistêmico, ou seja, maiorprobabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alcançar boas respostas nos dilemas constitucionais ao longo dotempo. Essa seria uma razão adicional para embarcar no projeto da revisão judicial e,ao mesmo tempo, uma condição <strong>de</strong> sua legitimida<strong>de</strong>.Teorias sobre o papel da <strong>de</strong>liberação na <strong>de</strong>mocracia não costumam <strong>de</strong>dicargran<strong>de</strong> atenção para a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, e vice-versa. 502 Seria uma relação contraintuitiva:po<strong>de</strong>res não <strong>de</strong>liberam entre si, mas se controlam. 503 Curiosamente, porém,instituições apresentam razões para suas <strong>de</strong>cisões, <strong>de</strong> distintas maneiras. Saber se issopo<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser levado em conta nas reações <strong>de</strong> outras instituições me parece umaquestão teórica instigante, ainda sub-explorada.Jeffrey Tullis se atentou para essa peculiarida<strong>de</strong>. Ele traz a idéia <strong>de</strong><strong>de</strong>liberação para o centro da teoria da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, uma teoria que se fundana “premissa <strong>de</strong> que nenhuma instituição <strong>de</strong>mocrática específica é suficiente para502 Jeffrey Tulis diagnostica essa <strong>de</strong>sconexão entre a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e a <strong>de</strong>liberação na teoriapolítica: “Just as stu<strong>de</strong>nts of <strong>de</strong>liberation have overlooked separation of powers, stu<strong>de</strong>nts of theAmerican separation of powers tend not to talk about <strong>de</strong>liberation” (“Deliberation BetweenInstitutions”, p. 208).503 Imaginar <strong>de</strong>liberação entre instituições po<strong>de</strong> acen<strong>de</strong>r uma <strong>de</strong>sconfiança relacionada à possívelsuposição <strong>de</strong> existência <strong>de</strong> uma “voz institucional”: Como falar sobre diálogo entre diferentesinstituições se instituições são grupos <strong>de</strong> pessoas com opiniões conflitantes, se não há algo como “umaúnica voz”, uma “intenção original”, uma “mens legislatoris”? Em que sentido po<strong>de</strong>mos conceber umagente supra-individual que fala, que tem opinião, que argumenta? Como instituições po<strong>de</strong>m conversarconsigo mesmas? A teoria jurídica oferece saídas para administrar esse problema, possivelmenteconectadas à idéia <strong>de</strong> “reconstrução racional”. Como, exatamente, essas duas instituições <strong>de</strong>liberam epo<strong>de</strong>m falar “com uma só voz institucional” ficará para um passo seguinte <strong>de</strong>sse projeto.198


assegurar a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> todas as preocupações relevantes na sustentação da<strong>de</strong>mocracia”. 504 Segundo esse autor, a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res faz com que diferentesvalores (como a vonta<strong>de</strong> popular, a linguagem dos direitos, a pressão por eficiênciaetc.) entrem em tensão. Dá voz institucional a diferentes perspectivas. Essa tensão<strong>de</strong>liberativa entre instituições que competem po<strong>de</strong> ser funcional para a produção <strong>de</strong>boas <strong>de</strong>cisões. 505O capítulo concebe um critério <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> que insere a <strong>de</strong>liberação comovariável dominante. Dela se extrai uma métrica da interação institucional – o<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo. Defendo que parlamentos e cortes têm legitimida<strong>de</strong> paraserem ativistas à medida que se engajem no diálogo. Po<strong>de</strong>m optar por <strong>de</strong>ferir, poresperar, ou, em face <strong>de</strong> um bom novo argumento, por <strong>de</strong>safiar o outro po<strong>de</strong>r. Nadissertação, a revisão judicial foi caracterizada, acima <strong>de</strong> tudo, como veto temporário,como um custo temporal, e, marginalmente, como uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualificar ainterlocução. Nesse capítulo, quero investigar o valor subjacente a essa interlocução, apassagem <strong>de</strong> uma teoria da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res somente <strong>de</strong>fensiva para uma queinclua um ônus <strong>de</strong>liberativo.Não entrarei em <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho institucional ou <strong>de</strong> quais seriam osmelhores incentivos formais para <strong>de</strong>spertar a postura que elaboro aqui, conformealertei no capítulo anterior. Assumo apenas que a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, entendidagenericamente, carrega um princípio virtuoso para tornar a política sensível a boasrazões. Mesmo que o arranjo procedimental seja parte indispensável na criação dasmelhores condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberação, a tese se limita a <strong>de</strong>stacar um parâmetro <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong> que valoriza esse i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> interação.504 Ibid, p. 203.505 Este autor aponta outras duas características importantes <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberação. Primeiramente, a<strong>de</strong>liberação entre instituições não ocorre necessariamente ao modo face a face, mas sim, e com maisfreqüência, pela troca <strong>de</strong> textos: “I think this i<strong>de</strong>a, and this phenomenon, may have been overlookedbecause <strong>de</strong>liberation between institutions need not (though it sometimes does) involve a face to faceencounter of persons. In the place of a face to face encounter (or sometimes accompanying one) aretexts exchanged by institutions. In the construction and exchange of texts institutions address themerits of public policy and the best of these exchanges manifest the most important attribute of<strong>de</strong>liberation: reciprocal respect for, and responsiveness to, opposing arguments regarding the issueaddressed” (Ibid, p. 202). Em segundo lugar, o <strong>de</strong>senho institucional, por si só, e sem exigir a presença<strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo virtuoso <strong>de</strong> cidadão, po<strong>de</strong> estimular que boas razões venham à tona. Boas razões po<strong>de</strong>maflorar no furacão da competição política: “Consi<strong>de</strong>rable effort has been expen<strong>de</strong>d to <strong>de</strong>fine and<strong>de</strong>scribe the range of consi<strong>de</strong>rations and the kinds of arguments appropriate for <strong>de</strong>mocratic<strong>de</strong>liberation, but there is little discussion of institutional mechanisms to maximize the likelihood thatrelevant arguments, or relevant perspectives, will actually be advanced” (Ibid, p. 210).199


O capítulo segue por quatro tópicos. No próximo, <strong>de</strong>senvolvo com mais<strong>de</strong>talhe uma posição sobre as variáveis <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> – forma e substância. Emseguida, trato do conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo e <strong>de</strong> como ele fornece umamedida interessante para pensar a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada instituição contextualmente(ex post). No quarto tópico, resgato as idéias <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s ativas e passivas para mostrarcomo, tendo em vista as inevitáveis flutuações <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>correm da<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, a corte precisa modular ativismo e <strong>de</strong>ferência <strong>de</strong> formapru<strong>de</strong>nte. Por fim, concebo tipos-i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> diálogo e o seu respectivo potencialepistêmico.2. A tensão virtuosa e irredutível entre forma substânciaO capítulo anterior <strong>de</strong>ixou intocadas as constatações da ciência política sobreo comportamento judicial e não problematizou suas eventuais implicaçõesnormativas. Neste capítulo, entretanto, consi<strong>de</strong>ro importante tratá-las com maisatenção. Enten<strong>de</strong>r o fenômeno tal como ele ocorre é necessário para que se possapensar nas suas condições <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>. Se este fenômeno é, pelo menos emalguma medida, um dado da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, não tanto uma escolha dos seusparticipantes, como lidar com ele? Se aquelas informações empíricas são verda<strong>de</strong>iras,quais são suas conseqüências para a reflexão normativa?A admissão <strong>de</strong> que juízes não estão presos à norma choca-se com um antigotabu. Esse mal-estar foi atenuado por uma nova tentativa da teoria jurídica <strong>de</strong>constranger o juiz por <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> consistência, por exigências, ao menos, <strong>de</strong>argumentação racional. A ciência política volta e <strong>de</strong>nuncia a nu<strong>de</strong>z do rei: o juizconstitucional é um ator político que reage conforme variáveis outras que nãosomente a norma, a razão, ou as recomendações que a teoria normativa lhe en<strong>de</strong>reça.Friedman parece ter respondido a esse problema <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo um redirecionamento <strong>de</strong>foco para a teoria normativa: não são os juízes que ela <strong>de</strong>ve preten<strong>de</strong>r influenciar, masa “opinião pública”. O juiz somente seria limitado por razões à medida que sentir aexpectativa <strong>de</strong>liberativa que há sobre ele. A corte será legítima, nessas condições, seconseguir aten<strong>de</strong>r a tal expectativa.200


Para além <strong>de</strong>ssa reativida<strong>de</strong>, a ciência política também mostra que as própriasfunções das instituições são, em alguma medida, cambiantes, em especial na <strong>de</strong>fesados direitos <strong>fundamentais</strong>. Da interação resultam acomodações contingentes einstáveis. Essas oscilações crônicas criam dificulda<strong>de</strong>s para a teoria normativaacostumada a pensar em termos mais rígidos. Se a <strong>de</strong>mocracia constitucional é umarranjo procedimental <strong>de</strong>terminado ex ante, como explicar tais oscilações?Uma saída intuitiva, já aventada por Friedman, seria dizer que as instituiçõesse movimentam conforme as ondas da opinião pública. À medida que se distanciamdo socialmente aceitável, elas corroem sua legitimida<strong>de</strong> e per<strong>de</strong>m espaço no jogo da<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Elas <strong>de</strong>cairiam no seu índice <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> e se encolheriam.Essa hipótese, eventualmente, explica, mas não justifica. Se o objetivo é pensar nalegitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas oscilações, o que nos interessa não é uma <strong>de</strong>scrição dascausalida<strong>de</strong>s, mas as razões que fundamentam a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> obediência às <strong>de</strong>cisõesoriundas <strong>de</strong>sse processo. Ou seja, trata-se <strong>de</strong> uma pergunta normativa, não empírica.Nesse sentido, reformulada em termos normativos, pergunta-se: é possíveljustificar essas flutuações? Desconfio que sim. Se concordarmos que as variáveis <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>mocracia não se esgotam no procedimento, mas abrangem tambémos resultados, passa a ser aceitável que a substância subordine, em algumascircunstâncias, o procedimento, ou seja, que a instituição que tenha alcançado aresposta mais compatível com um critério substantivo <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> tenha boasrazões para prevalecer in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> seu pedigree (subvertendo a estruturaformal).Na verda<strong>de</strong>, é preciso supor mais do que isso. Waldron, por exemplo, aceita atese <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>mocracia tenha requisitos substantivos para além dos procedimentais.O ponto <strong>de</strong>le é outro: como todos discordarão sobre tal substância, não se po<strong>de</strong>atribuir a nenhuma instituição o ônus da resposta correta. Tudo que está ao alcance <strong>de</strong>uma <strong>de</strong>mocracia genuína é adotar um procedimento justo, que dê igual importância acada cidadão. A essa autorida<strong>de</strong>, que é fixa in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do que <strong>de</strong>cida, caberesolver o <strong>de</strong>sacordo. Em síntese, Waldron clama pela pureza <strong>de</strong> duas dimensõesdiferentes que não se comunicam: a teoria da autorida<strong>de</strong> (quem <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir) e ateoria da justiça (o que <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir). Ou seja, o fato <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>mocracia necessita201


aten<strong>de</strong>r requisitos substantivos não produz repercussões institucionais, não diz nadasobre quem <strong>de</strong>ve ter mais ou menos po<strong>de</strong>r.Dworkin rompe essa pureza. Para ele, <strong>de</strong>mocracia é um “esquemaprocedimental incompleto”, pois não po<strong>de</strong> especificar, infinitamente, novosprocedimentos para avaliar se as pré-condições <strong>de</strong>mocráticas foram respeitadas. 506Deve estar sempre sujeita a um exame conseqüencialista, caso a caso. O conteúdomais ou menos aceitável <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões substantivas po<strong>de</strong> repercutir, por isso, no arranjo<strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Ao contrário, Waldron diria que, do ponto <strong>de</strong> vista da autorida<strong>de</strong>, a<strong>de</strong>mocracia é um “esquema procedimental completo”.A ocorrência <strong>de</strong> flutuações não vai <strong>de</strong> encontro ao pensamento <strong>de</strong> Dworkin.Po<strong>de</strong>m ser legítimas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que atendam às condições que ele consi<strong>de</strong>ra corretas (nocaso, o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> “igual consi<strong>de</strong>ração e respeito”). Rawls adota posição similar.Flutuações seriam compatíveis com o seu “princípio liberal <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>”, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que reguladas pelo idioma da “razão pública”. Essa leitura que proponho dos doisautores po<strong>de</strong> parecer ligeiramente excêntrica e diluir uma distinção analítica relevanteentre autorida<strong>de</strong> legítima e <strong>de</strong>cisão legítima (“quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>” e “o que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>”),<strong>de</strong>terminados, respectivamente, ex ante e ex post. De fato, não é bem a “flutuações”que Dworkin e Rawls se referem. Eles simplesmente aceitam um mecanismo nãomajoritárioe não-representativo por concordarem que a <strong>de</strong>mocracia não po<strong>de</strong>prescindir <strong>de</strong> uma pretensão epistêmica sobre princípios, e <strong>de</strong>ve dispor <strong>de</strong> processosque maximizem a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> boas <strong>de</strong>cisões. Fornecem, a<strong>de</strong>mais, um critériomoral in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte para julgá-las. Se isso é verda<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>cisão judicial não é legítimaper se, mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que atenda a esse critério.Portanto, é plausível inferir que, a não ser que eles adotassem uma presunçãoda infalibilida<strong>de</strong> judicial, o que não fazem, pois se limitam a um cálculoprobabilístico, <strong>de</strong>cisões legislativas serão mais legítimas que as judiciais se aquelas, enão estas, aten<strong>de</strong>rem àquele critério moral (e vice-versa). Negam legitimida<strong>de</strong> apriori, pelo mero pedigree majoritário, ao parlamento, mas não aceitam passivamentequalquer ativismo judicial. É exatamente isso que entendo como justificativa da506 Freedom’s Law, p. 32.202


flutuação. Não se trata <strong>de</strong> pura subordinação do procedimento à substância, ou <strong>de</strong>negar <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> obediência a uma <strong>de</strong>cisão judicial ou legislativa porque enten<strong>de</strong>mosque elas violam um parâmetro moral. Os problemas <strong>de</strong> uma posição assim são bemconhecidos. 507 Sustento, apenas, que é <strong>de</strong>sejável que po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>safiem uns aos outros(já que, como vimos no último capítulo, essa é sempre uma possibilida<strong>de</strong> em abertoao longo do tempo) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que articulem razões <strong>de</strong> melhor qualida<strong>de</strong>. Não dissolvo aautorida<strong>de</strong>: <strong>de</strong>cisões continuam a ser obrigatórias, mesmo que <strong>de</strong>las discor<strong>de</strong>mos. A<strong>de</strong>mocracia, contudo, tem a ganhar se um padrão como a razão pública estimular o<strong>de</strong>safio <strong>de</strong>liberativo entre po<strong>de</strong>res. Saber qual o melhor momento <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>safio éoutra questão, que certamente vai exigir um cálculo pru<strong>de</strong>ncial e balanceado. Mas issofica para outra parte <strong>de</strong>ste capítulo.Carreguei os últimos dois parágrafos com argumentos fortes sem as mediaçõessuficientes. Deixe-me caminhar com mais calma. A interpretação <strong>de</strong> Rawls queesbocei acima constituirá o guia para o restante do capítulo. Descrevo-a melhorabaixo para, em seguida, voltar à reação <strong>de</strong> Waldron e analisar as suas limitações.Rawls propõe-se a construir uma teoria da legitimida<strong>de</strong> para socieda<strong>de</strong>spluralistas. A pergunta <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> uma empreitada como essa costuma ser postaassim: que condições <strong>de</strong>vo exigir para obe<strong>de</strong>cer a uma <strong>de</strong>cisão da qual discordo? Sediscordamos, e continuaremos a discordar sempre, como viver em conjunto e tomar<strong>de</strong>cisões coletivas que vinculem a todos? Dizer que <strong>de</strong>vemos estruturar umprocedimento <strong>de</strong>mocrático, por si só, não resolve com precisão: o que <strong>de</strong>ve estarembutido nesse procedimento?O Liberalismo Político é uma tentativa <strong>de</strong> encontrar essa resposta. Nesse livro,Rawls parte <strong>de</strong> uma distinção fundamental entre “doutrina filosófica abrangente” e“concepção política <strong>de</strong> justiça”. A primeira apresenta um projeto completo sobre a“boa vida”, uma concepção ética integral. A segunda busca construir um ponto <strong>de</strong>apoio capaz <strong>de</strong> acomodar uma característica inerente às socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mocráticas: aco-existência <strong>de</strong> doutrinas abrangentes incompatíveis, porém razoáveis, ou, numa507 Refiro-me aos valores do estado <strong>de</strong> direito (cf. Schauer e Alexan<strong>de</strong>r).203


expressão, o “fato do pluralismo razoável”. 508 A cultura <strong>de</strong>mocrática está con<strong>de</strong>nada aprovocar e a conviver com tal diversida<strong>de</strong>. Como almejar uma socieda<strong>de</strong> justa eestável, <strong>de</strong> indivíduos livres e iguais, se seus cidadãos adotam doutrinas abrangentesinconciliáveis? Como justificar o uso da coerção?O único caminho é encontrar uma base pública <strong>de</strong> justificação das açõespolíticas que seja aceitável em meio ao pluralismo. Essa socieda<strong>de</strong>, para Rawls,precisa ser estável pelas razões corretas, e não somente promotora <strong>de</strong> um modusvivendi <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> um acordo instrumental <strong>de</strong> conveniência. Cidadãos precisamcompartilhar <strong>de</strong> sua estrutura básica. 509A dificulda<strong>de</strong> que se impõe a esse projeto, nesse sentido, é a elaboração <strong>de</strong>uma concepção autônoma <strong>de</strong> justiça, que se ampare nas próprias pernas, e não sejamera <strong>de</strong>rivação <strong>de</strong> uma doutrina abrangente. Que seja, portanto, política somente.Rawls aten<strong>de</strong> tal meta por meio do princípio liberal <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>. Esse princípioestabelece a reciprocida<strong>de</strong> como critério para o uso válido <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r: a coerção éapropriada somente quando acreditamos que as razões que oferecemos po<strong>de</strong>mrazoavelmente ser aceitas por outro cidadão qualquer, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> suasconvicções abrangentes. É o que o autor chama <strong>de</strong> “razão pública”. Se, quandodiscutimos escolhas políticas <strong>fundamentais</strong>, não argumentamos a partir <strong>de</strong>ssacategoria especial <strong>de</strong> razão, mas com base numa doutrina abrangente, violamos onosso “<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> civilida<strong>de</strong>” (por meio do qual construímos laços <strong>de</strong> “amiza<strong>de</strong>cívica”). 510A razão pública, portanto, impõe um limite: po<strong>de</strong>mos conceber vários tipos <strong>de</strong>razões para justificar <strong>de</strong>cisões coletivas, mas somente será legítima aquela que não<strong>de</strong>penda <strong>de</strong> uma doutrina abrangente. O argumento é ainda mais específico: o limiteda razão pública não se aplica, necessariamente, apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejável, a toda e qualquerquestão, mas, no mínimo, aos elementos constitucionais essenciais e às questões <strong>de</strong>justiça básica. 511 Quando esses assuntos estão em jogo, e o <strong>de</strong>bate se passa num fórum508 Cf. Political Liberalism, p. xvi.509 Ibid, p. xxxviii ou 218.510 Ibid, p. xxxviii ou 253.511 Sobre as distinções entre “constitutional essentials” e “questions of basic justice”, cf. PoliticalLiberalism, p. 228-229. Frank Michelman explica em maior <strong>de</strong>talhe por que, para Rawls, a revisão204


público, a razão pública fornece uma moldura necessária para disciplinar acomunicação. 512 Não se <strong>de</strong>ve ir além <strong>de</strong>la e tentar impor a “verda<strong>de</strong> completa” (umavez que, sobre essa, não há acordo possível). 513Se uma constituição contemplar os elementos essenciais do liberalismopolítico e, adicionalmente, conseguir <strong>de</strong>spertar uma cultura da razão pública, asrelações políticas atingem o padrão <strong>de</strong>mocrático, e não se fundam mais na puraforça. 514 Ações políticas serão legítimas somente na medida em que possam sertraduzidas por tal linguagem, e por isso o estímulo à <strong>de</strong>liberação pública é uma tarefacentral das instituições. Grosso modo, é assim que Rawls respon<strong>de</strong> àquela perguntainicial. A razão pública é um padrão <strong>de</strong> argumentação moral que <strong>de</strong>ve disciplinar a<strong>de</strong>liberação política, mas que não se confun<strong>de</strong> com ela, e, portanto, subsiste enquantocritério autônomo para julgar a legitimida<strong>de</strong> das <strong>de</strong>cisões. 515É importante registrar como ele insere o papel da Suprema Corte nessearranjo. Para o autor, trata-se <strong>de</strong> uma instituição exemplar da razão pública, quecumpre papéis institucionais relevantes para a concretização <strong>de</strong> princípios doconstitucionalismo. 516 À corte, mais precisamente, incumbe três tarefas. Em primeirolugar, utilizar-se da razão pública para evitar que maiorias transitórias rompam aestrutura da constituição. 517 Po<strong>de</strong>, contudo, <strong>de</strong>sempenhar funções para além <strong>de</strong>ssejudicial <strong>de</strong>ve se limitar, todavia, aos “constitutional essentials” (“Justice as Fairness, Legitimacy andthe Question of Judicial Review”).512 Ibid, p. 214.513 Rawls refina um pouco mais essa idéia por meio das concepções inclusiva e exclu<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> razãopública (Ibid, p. 247).514 Há dois tipos <strong>de</strong> “elementos constitucionais essenciais”: os princípios gerais que estruturam oprocesso político; e os direitos e liberda<strong>de</strong>s a serem respeitados por maiorias (Ibid, p. 227).515 É essa distinção entre a <strong>de</strong>liberação política e o critério moral para julgá-la que algumas teorias da<strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>liberativa <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> fazer, como se o exercício <strong>de</strong>liberativo constituísse um valor por simesmo, ou como se garantisse a boa <strong>de</strong>cisão pelo simples fato <strong>de</strong> realizar um processo <strong>de</strong>liberativo.Agra<strong>de</strong>ço a Álvaro <strong>de</strong> Vita por esse esclarecimento.516 Ibid, p. 231.517 “By applying public reason the court is to prevent that law from being ero<strong>de</strong>d by the legislation oftransient majorities (…)” (Ibid, p. 233). É interessante observar uma passagem em que Rawls se mostraciente das limitações da corte no longo prazo: “Now admittedly, in the long run a strong majority of theelectorate can eventually make the constitution conform to its political will. This is simply a fact aboutpolitical power as such. There is no way around this fact, not even by entrenchment clauses that try tofix permanently the basic <strong>de</strong>mocratic guarantees. No institutional procedure exists that cannot beabused or distorted (…)” (Ibid, p. 233). Em outra, ainda, mostra como a corte está constrangida pelo“povo agindo constitucionalmente”: “The constitution is not what the Court says it is. Rather, it is whatthe people acting constitutionally through the other branches eventually allow the Court to say it is. Aparticular un<strong>de</strong>rstanding of the constitution may be mandated to the Court by amendments, or by awi<strong>de</strong> and continuing political majority (…)” (Ibid, p. 237).205


papel <strong>de</strong>fensivo convencional. Por ser a única instituição que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> exclusiva eobrigatoriamente com base nesse tipo <strong>de</strong> razão, ela lhe confere efeito contínuo, e, porconseguinte, cumpre um papel educativo. Se a razão pública é uma linguagemnecessária da <strong>de</strong>mocracia, ao menos para seus elementos essenciais, a corte contribuienormemente ao não <strong>de</strong>ixar que esse código moral saia da agenda. Confere-lhe“vivacida<strong>de</strong> e vitalida<strong>de</strong>”. 518 Cidadãos se beneficiam da prática da corte aoapren<strong>de</strong>rem um modo particular <strong>de</strong> discutir os elementos essenciais da constituição. 519Waldron, naturalmente, vê problemas sérios nesse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa darevisão judicial. Não enten<strong>de</strong> como Rawls, ao admitir a existência <strong>de</strong> diversasdoutrinas abrangentes incompatíveis, porém razoáveis, não leva a sério apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que, no nível da justiça política, o mesmo grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo possatambém emergir. A razão pública, segundo Rawls, seria potente o suficiente paradissolver <strong>de</strong>sacordos sobre questões essenciais <strong>de</strong> justiça, exceto em pequenos<strong>de</strong>talhes. 520 Para Waldron, porém, como já analisei na dissertação, nas “circunstânciasda política”, há <strong>de</strong>sacordo <strong>de</strong> cima abaixo, e a razão pública não ameniza esseproblema. O pluralismo em relação a doutrinas abrangentes não seria o único tipo <strong>de</strong>pluralismo existente nas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mocráticas. Nelas, há também pluralismo sobrejustiça. 521 Rawls seria, assim, incoerente. 522A solução <strong>de</strong> Rawls para o <strong>de</strong>senho institucional é também objeto <strong>de</strong> ataque <strong>de</strong>Waldron por razões similares. Rawls, como se sabe, mesmo que reconheça a “justiçaprocedimental imperfeita”, não abre mão <strong>de</strong> um juízo probabilístico para a construção<strong>de</strong> instituições: elas serão mais legítimas quanto maior a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que suas<strong>de</strong>cisões sejam corretas. Cabe às constituições, por isso, maximizar as chances do518 Ibid, p. 236-237.519 É importante mencionar que Rawls não faz propriamente uma “<strong>de</strong>fesa positiva” <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>revisão judicial, como se outros arranjos fossem inferiores a este. Afirma apenas que a Suprema Corteé um exemplo <strong>de</strong> como a razão pública po<strong>de</strong> funcionar <strong>de</strong>ntro das instituições. É curioso, apesar <strong>de</strong>ssaressalva, como ele propõe que, quando estivermos em dúvida se estamos <strong>de</strong> fato usando “razãopública”, que imaginemos uma corte <strong>de</strong>cidindo (Ibid, p. 254).520 Ibid, p. 226.521 Law and Disagreement, p. 158.522 “This leaves us with the rather uncongenial conclusion that there is no such thing as reasonabledisagreement in politics. (…) In the world we know, people <strong>de</strong>finitely disagree – and disagree radically– about justice. Moreover, their disagreement is not just about <strong>de</strong>tails but about fundamentals” (cf. Lawand Disagreement, p. 152-153).206


acerto. 523 A justiça constrange o procedimento, e instituições <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>senhadascom um olho nos resultados substantivos que elas ten<strong>de</strong>m a gerar. Nesse sentido,como observa Waldron, Rawls requer que o <strong>de</strong>sacordo sobre justiça estejaminimamente resolvido antes que se construam instituições (afinal, é preciso saberqual “resposta certa” tal instituição terá maior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar). E Waldronreage: “Como, porém, po<strong>de</strong>m os cidadãos concordar em questões <strong>de</strong> escolhaconstitucional se eles discordam sobre o telos <strong>de</strong> tal escolha?” 524 Segundo ele, para amanutenção <strong>de</strong> uma política pacífica a <strong>de</strong>speito do <strong>de</strong>sacordo razoável sobre asubstância, somente resta esperar que pessoas concor<strong>de</strong>m com algum procedimento<strong>de</strong>cisório. E não po<strong>de</strong>mos alcançar esse acordo se pensamos sobre procedimento “àsombra <strong>de</strong> nossas convicções substantivas”, como faria Rawls. 525 Essa soluçãoconhecida <strong>de</strong> Waldron é o que chamei acima <strong>de</strong> “esquema procedimental completo”.Acusá-la <strong>de</strong> subordinar justiça ao procedimento seria, para ele, uma petição <strong>de</strong>princípio, já que não há um “porto seguro substantivo”, imune ao <strong>de</strong>sacordo, a partirdo qual se possa julgar o resultado <strong>de</strong> ritos <strong>de</strong>cisórios. Seria necessário haver limitesao “espaço lógico” que nossas visões substantivas ocupam, pois elas não po<strong>de</strong>riaminterferir nas escolhas institucionais. 526Waldron, porém, ao levar o <strong>de</strong>sacordo às últimas conseqüências, cai na suaprópria armadilha. 527 Se discordamos tanto assim, por que então compartilharíamosdo procedimento sugerido por ele? Se há <strong>de</strong>sacordo tão profundo, por que <strong>de</strong>vemospreferir a solução <strong>de</strong>le, e não a <strong>de</strong> outros? Ele talvez dissesse que a vantagem <strong>de</strong> sua523 “The second problem, then, is to select from among the procedural arrangements that are both justand feasible those which are most likely to lead to a just and effective legal or<strong>de</strong>r” (Theory of Justice,p. 198). “The fundamental criterion for judging any procedure is the justice of its likely results. (…)Everything <strong>de</strong>pends on the probable justice of the outcome. (…) I mention these familiar points aboutmajority rule only to emphasize that the test of constitutional arrangements is always the overallbalance of justice” (Ibid, p. 230-231).524 Law and Disagreement, p. 157.525 “To imagine that <strong>de</strong>liberative politics (or any form of peaceful politics) is possible is to imagine thatpeople can agree on some of these procedural points even though they disagree on the merits of theissues that the procedures are, so to speak, <strong>de</strong>signed to house. It is to imagine, in other words, that theprocedural issues and the substantive issues are in some sense separable” (Ibid, p. 160).526 Ibid, p. 160.527 Como disse Wil Waluchow: “In Jeremy’s case, everything in politics is subject to reasonabledisagreement, and nothing, as a result, can be established which meets the no-reasonable-disagreementcriterion, the standard which Waldron has set for himself and others, and which cannot possibly be met.In short, Jeremy’s theory falls victim to his own standard of acceptable argument and institutional<strong>de</strong>sign” (“Constitutions as Living Trees”, p. 49). “As a result, Waldron has given us no convincingreason to prefer his solution to the circumstances of politics over those offered by Advocates likeRawls, Dworkin and Freeman” (Ibid, p. 45).207


solução é recorrer a um procedimento sem expectativas <strong>de</strong> resultado, mas que apenasrespeita a igual voz <strong>de</strong> cada um. Mas o que fazer se não houver acordo quando a isso?Não são poucos os que suspeitam que a regra <strong>de</strong> maioria representativa nãonecessariamente confere a cada um “igual voz”.Muitos autores já apontaram para essa inconsistência na estruturaargumentativa <strong>de</strong> Waldron. Estlund, numa das críticas mais elaboradas, <strong>de</strong>monstraque, se Waldron adota uma concepção liberal <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> política (ou seja, que aautorida<strong>de</strong> seja justificável a cada indivíduo que lhe <strong>de</strong>ve obediência), não há comopartir <strong>de</strong> uma premissa <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sacordo profundo” (<strong>de</strong>ep disagreement), sob pena <strong>de</strong>cair na armadilha do anarquismo filosófico, segundo o qual não existe autorida<strong>de</strong>política legítima. Em outras palavras, se existe a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> justificar aautorida<strong>de</strong> com base num princípio liberal, não se po<strong>de</strong> sustentar que todo e qualquer<strong>de</strong>sacordo sobre a base <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> é razoável. 528 Não há como escapar do ônus<strong>de</strong> traçar a linha entre razoável e irrazoável em algum ponto do raciocínio (e o próprioWaldron o faz por meio <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> argumentação moral semelhante à razãopública <strong>de</strong> Rawls). Um regime legítimo, se precisa ser justificável para todos, tem quecontar com algum acordo mínimo compartilhado.O que disse até agora não é suficiente para esgotar os <strong>de</strong>sdobramentos do<strong>de</strong>bate, o que exigiria tempo e espaço <strong>de</strong>sproporcionais ao propósito da tese nesseponto. Basta-me, aqui, sinalizar o caminho para resgatar os argumentos <strong>de</strong> Rawls (etambém <strong>de</strong> Dworkin) em face do ataque <strong>de</strong> Waldron, e firmarmos a a<strong>de</strong>são à razãopública como critério substantivo a<strong>de</strong>quado para a justificação das oscilaçõesinerentes à <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res.Voltando ao ponto <strong>de</strong> partida: se a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res estimula um jogopolítico que produz funções cambiantes, o que po<strong>de</strong>mos almejar? É plausível esperarque tais acomodações sejam influenciadas por uma cultura da <strong>de</strong>liberação, e não porpura distribuição <strong>de</strong> forças? Pela persuasão, e não pela capitulação?528 (…) “that if reasonable disagreement is as <strong>de</strong>ep as he says it is, then there is no politicalarrangement that is either obligatory for all citizens, or even permissibly implemented and enforced”(cf. Estlund, “Jeremy Waldron on Law and Disagreement”, p. 118). “If, as it appears, Waldron acceptsthe No Reasonable Objection view of legitimacy, then consistency requires that he reject either DeepDisagreement or any positive account of legitimacy such as Fair Proceduralism” (Ibid, p. 114).208


A corte cumpre um papel importante no esforço institucional para fazer comque o bom argumento seja variável <strong>de</strong> peso na competição <strong>de</strong>mocrática. Um retorno àtensão entre forma e substância ajuda a clarear este ponto. Waldron tenta suprimiressa tensão na montagem <strong>de</strong> instituições. Para ele, quando discutimos a autorida<strong>de</strong><strong>de</strong>mocrática, é sobre procedimentos, e nada mais, que <strong>de</strong>vemos falar. Como resultado<strong>de</strong>ssa orientação normativa, temos um regime <strong>de</strong> supremacia parlamentar (por ser oprocedimento mais justificável). Mesmo que possamos discutir a justiça das <strong>de</strong>cisõeslegislativas, essa autorida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser questionada com base em argumentossubstantivos (que, no máximo, servem para tentar convencer tal instituição a mudar <strong>de</strong>idéia). Afinal, discordamos e precisamos <strong>de</strong> um foro comum para resolver nossasdiferenças.Outra saída seria suprimir a tensão, mas para o outro lado. Assim, se a<strong>de</strong>mocracia precisa <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões acertadas sobre questões <strong>de</strong> princípio, condição <strong>de</strong> suaprópria sobrevivência, atribuímos ao controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> essa missão. Oproblema, contudo, é que essa resposta comete um outro pecado: presume que a corteé infalível.A terceira saída, mesmo consciente da falibilida<strong>de</strong> das instituições, insistenuma alternativa probabilística. Precisaríamos <strong>de</strong> instituições que ao menos tenhammaior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alcançar a resposta correta em questões <strong>de</strong> justiça (ou nos“elementos constitucionais essenciais”). É a proposta <strong>de</strong> Rawls, como vimos. Minharesposta se aproxima a essa, com algumas qualificações.Se forma e substância são, ambos, componentes necessários da legitimida<strong>de</strong>, oarranjo institucional se revigora quando incorpora essa tensão. Num contexto <strong>de</strong>supremacia parlamentar pura, nos mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Westminster, as <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> substâncianão <strong>de</strong>saparecem, obviamente. No entanto, ao domesticar a tensão no planoinstitucional, e optar pela justificativa da autorida<strong>de</strong> somente com base no pedigree doparlamento, obscurece-se uma dimensão que continua presente na política, masenfraquecida. O potencial crítico e <strong>de</strong>liberativo da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res é anestesiadopor meio <strong>de</strong> uma mensagem <strong>de</strong> que o parlamento é o topo da escala hierárquica e <strong>de</strong>que não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>safiado. Dificulta que críticas substantivas às <strong>de</strong>cisões legislativas209


tenham expressão institucional, exceto na própria via parlamentar. O teste <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong> torna-se difuso e extra-institucional. A resistência contra <strong>de</strong>cisões quemais claramente violam a razão pública tem menores alternativas para canalizar suavoz. O controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, por outro lado, gera a sensação <strong>de</strong> limiteexterno, e <strong>de</strong> fato opera um contrapeso inserido no próprio coração do arranjo <strong>de</strong>forças. É o que arriscamos per<strong>de</strong>r sem a revisão judicial (consi<strong>de</strong>rando que a corte<strong>de</strong>sempenhe essa tarefa satisfatoriamente).E o que se ganha com ela? A sugestão <strong>de</strong> Rawls dá conta <strong>de</strong>ssa dúvida: a cortepo<strong>de</strong> dar maior vitalida<strong>de</strong> à razão pública, formentar um tipo <strong>de</strong> argumentação moralda qual a <strong>de</strong>mocracia não po<strong>de</strong> abrir mão. Sem ela, direitos correriam o risco <strong>de</strong> seremdiluídos como uma razão entre outras, sem nenhuma dignida<strong>de</strong> especial. Claro queuma cultura política vigorosa po<strong>de</strong>, eventualmente, levar direitos a sério no calor do<strong>de</strong>bate parlamentar. Quando planejamos instituições, entretanto, estamos no terrenodas probabilida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> exercícios <strong>de</strong> tentativa e erro. Não parece ser insensata aadoção <strong>de</strong> uma corte que recebe como principal missão a proteção <strong>de</strong> direitos, e estáautorizada a ser, predominantemente, monoglota: será ignorada se não fundamentarsuas <strong>de</strong>cisões com base na linguagem dos princípios. Essa opção não se impõe porforça da lógica, mas, na expressão <strong>de</strong> Michelman, como um ato <strong>de</strong> “prudêncialiberal”, uma estratégia para institucionalizar <strong>de</strong>terminada moralida<strong>de</strong> política <strong>de</strong>modo mais eficaz. 529No mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Westminster, não se discute quem <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir. Num mo<strong>de</strong>locom revisão judicial, por sua vez, o <strong>de</strong>bate sobre as restrições ao parlamento émantido na agenda política cotidiana. O parlamento ganha um ônus adicional para<strong>de</strong>monstrar que respeitou as pré-condições da <strong>de</strong>mocracia. A existência <strong>de</strong> revisãojudicial estimula essa tensão virtuosa entre forma e substância. Não preciso supor queo legislador esteja mais inclinado ao erro e a corte mais próxima do acerto, nemmesmo que a legitimida<strong>de</strong> do legislador esteja exclusivamente apegada à forma e da529 Visão que também já estava incipiente em minha dissertação <strong>de</strong> mestrado, on<strong>de</strong> concebi a revisãojudicial como promotora <strong>de</strong> uma “multiplicação dos testes”, como “veto qualificado pela linguagemdos direitos”, um “estratégia <strong>de</strong> prudência nos momentos intermediários do processo <strong>de</strong>cisóriocoletivo” (cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, pp. 132 e 133).210


corte à substância (apesar <strong>de</strong> ambas afinida<strong>de</strong>s serem plausíveis), para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r acontribuição <strong>de</strong>ssa circularida<strong>de</strong> permanente. 530Há mais uma ressalva importante. Não estamos diante <strong>de</strong> uma encruzilhadabinária entre corte e parlamento. A perspectiva do diálogo, ao relativizar a últimapalavra, mostra que a alternativa à supremacia do parlamento não é necessariamente asoberania, pura e simples, da corte, mas um jogo interativo mais rico e complexo. Ainexistência <strong>de</strong> revisão judicial, por outro lado, estimula uma cultura da soberania doparlamento.A <strong>de</strong>mocracia não po<strong>de</strong> abdicar do julgamento conseqüencialista paracertificar a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas instituições. Esta não <strong>de</strong>ve se limitar a um critérioformal ex ante e não se esgota num cálculo <strong>de</strong> engenharia institucional, com régua ecompasso. A solução <strong>de</strong> Bentham para o conflito entre direito e moral é ilustrativa:“Obe<strong>de</strong>ça pontualmente, censure livremente”. 531 Ele também permitia, entretanto, aválvula <strong>de</strong> escape da resistência para o caso <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões políticas excessivamenteinjustas. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> censura institucionalizada é o que estamos discutindo.Mas suspeito, como Rawls, que a função da revisão judicial também vá além disso.Não é apenas <strong>de</strong>fensiva, conforme veremos no restante do capítulo.3. Legitimida<strong>de</strong> contextual e comparativa: <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativoRetomemos o fio da meada. Vimos acima que a <strong>de</strong>mocracia, ou o autogovernocoletivo, não é uma prática que possa ser traduzida monoliticamente numprocesso <strong>de</strong>cisório ou numa instituição, sem contar o que ela faça. Indiquei tambémcomo a interação entre corte e parlamento gera uma tensão virtuosa e permanente.Possibilita-se que o teste <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> substantiva não seja simples censura socialdifusa, mas um mecanismo endógeno <strong>de</strong> controle. Toda essa parafernália está sujeita afalhar, certamente, mas não se po<strong>de</strong> dizer que o esforço institucional não seja válidopor isso. Este esforço torna a <strong>de</strong>liberação constitucional, aquela conduzida nos termos530 Mesmo que se possa dizer que também há tensão <strong>de</strong>liberativa e “circularida<strong>de</strong>” <strong>de</strong>ntro do próprioparlamento, e também entre diferentes legislaturas ao longo do tempo, <strong>de</strong>staco aqui a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssaparticular tensão inter-institucional, não apenas da intra-institucional.531 “Obey punctually, censor freely” (citado por Hart em “Positivism and the Separation of Law andMorals”).211


da razão pública, mais provável <strong>de</strong> ocorrer. Para tanto, como os po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>vem seportar? E quem <strong>de</strong>ve ter a última palavra provisória?Por mais necessário que seja <strong>de</strong>finir o <strong>de</strong>tentor da última palavra provisória, apartir <strong>de</strong> um outro olhar, este é um mero <strong>de</strong>talhe. Saber quem <strong>de</strong>ve prevalacer é umaquestão contingente. Não há resposta <strong>de</strong> princípio, geral e abstrata. O valor <strong>de</strong> umprocesso contínuo <strong>de</strong> formação da vonta<strong>de</strong> política precisa ser percebido, e não <strong>de</strong>veser ofuscado por aquela discussão. A corte, caso <strong>de</strong>tenha esse po<strong>de</strong>r, não é um garante<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões corretas e não po<strong>de</strong> ser percebida como tal. É um mecanismo que tentaevitar o esfriamento e a marginalização da linguagem dos direitos, a indiferença e aomissão <strong>de</strong> certas razões tidas como <strong>fundamentais</strong> na legitimação da política. Elabusca alimentar uma cultura pública <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa. Será legítima àmedida que cumprir essa função. Claro que há riscos. Para ficar nos principais <strong>de</strong>les:do lado judicial, o legalismo hermético, o imperialismo retórico, a soberba doguardião entrincheirado e monopolista; do outro lado, a <strong>de</strong>ferência ou o comodismolegislativo. Proponho que uma alternativa para redução <strong>de</strong>sses riscos seja <strong>de</strong>senvolveruma <strong>de</strong>manda mais forte <strong>de</strong> diálogo que, se impregnada na prática <strong>de</strong>cisória dospo<strong>de</strong>res, traz um ganho exponencial ao <strong>de</strong>senho. Nesse mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al, não há nem umguardião entrincheirado, nem um legislador acanhado e <strong>de</strong>ferente, mas dois po<strong>de</strong>resengajados no exercício da persuasão. Divergem, mas com respeito mútuo, sempresunção.Neste tópico, suscito o ângulo competitivo da interação, e o “<strong>de</strong>sempenho<strong>de</strong>liberativo” é a sua medida genérica. 532 A interação entre instituições que buscammaximizar seus respectivos <strong>de</strong>sempenhos <strong>de</strong>liberativos é o que po<strong>de</strong>mos esperar <strong>de</strong>melhor <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>mocracia organizada sob o princípio da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res.Estimula uma competição pelo melhor argumento e traz vibração ao regime. Implantauma pressão por consistência. Fundamentalmente, insere a tensão entre forma esubstância no centro <strong>de</strong>sse arranjo.532 É necessário aprofundar o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo <strong>de</strong> cortes e parlamentos, mas essatarefa não caberia nesta tese. Este conceito combina elementos procedimentais que facilitam a boa<strong>de</strong>liberação, com parâmetros argumentativos que ambas instituições <strong>de</strong>vem cumprir (<strong>de</strong> acordo comsuas respectivas diferenças). Para os fins <strong>de</strong>sse trabalho, entenda-se “<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo” como amedida <strong>de</strong> aproximação <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>liberativo.212


Torna-se possível, assim, pensar na legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cortes e parlamentos <strong>de</strong>maneira contextual e comparativa. Legitimida<strong>de</strong> política é um predicado institucionalvolátil, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá, em parte, dos resultados, e não somente das cre<strong>de</strong>nciaisprévias. É uma meta a ser conquistada e conservada, a cada <strong>de</strong>cisão. Esboçar umaescala <strong>de</strong> critérios qualitativos que permitam mensurá-lo é, nesse sentido, uma tarefafundamental da teoria <strong>de</strong>mocrática. O <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo po<strong>de</strong> ser tal princípioregulador das oscilações entre corte e parlamento.Cortes e parlamentos têm responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>liberativas, e po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>safiar-semutuamente a exercê-las. Isso não é feito sem conflito, incerteza ou risco <strong>de</strong> erro.Suponho que elas possam ser consi<strong>de</strong>radas mais ou menos legítimas a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>seu respectivo <strong>de</strong>sempenho. Por ser este um critério conseqüencialista <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong>, traz complexida<strong>de</strong> à <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res.Alocar, previamente, a “última palavra provisória” é uma escolhaindispensável, e não po<strong>de</strong> contar com mais do que uma expectativa probabilística doacerto, como vimos. O eventual “erro” daquele po<strong>de</strong>r que a <strong>de</strong>tém, a<strong>de</strong>mais, não fazessa <strong>de</strong>cisão per<strong>de</strong>r autorida<strong>de</strong>. Torna, contudo, mais legítimo o <strong>de</strong>safio do outropo<strong>de</strong>r. Esse é o preço que instituições pagam quando não tomam <strong>de</strong>cisões comjustificativas razoáveis e transparentes.Empiricamente, a exata <strong>de</strong>limitação do po<strong>de</strong>r da revisão judicial não se <strong>de</strong>finea priori, mas na interação. Ou seja, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> tanto <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões quanto das doparlamento. Quer dizer que não há arranjo formal pré-fixado? Se essa pergunta serefere aos <strong>de</strong>talhes das atribuições <strong>de</strong> cada um, sim. O que está pré-fixado é a lógicaflexível da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, não as suas minúcias, que variarão no <strong>de</strong>correr dotempo. A qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa <strong>de</strong>sse jogo po<strong>de</strong> fundamentar a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssasmutações, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a razão pública seja o idioma da instituição cuja <strong>de</strong>cisãoprevalece em cada momento.Até aqui, sustentei basicamente que a instituição com o melhor <strong>de</strong>sempenho<strong>de</strong>liberativo sobressai-se na competição pelo melhor argumento e tem legitimida<strong>de</strong>para <strong>de</strong>safiar a outra (o que é diferente <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cê-la). No entanto, essa proposiçãoparece simplista e causa inúmeros problemas práticos. O mais óbvio <strong>de</strong>les é: e se as213


duas utilizarem da razão pública, fizerem um claro esforço <strong>de</strong> maximização <strong>de</strong> seu<strong>de</strong>sempenho e, ainda assim, discordarem?Uma resposta seria: prevalece, no final das contas, aquela que tiver aprerrogativa da última palavra provisória. Num sistema <strong>de</strong> controle <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong>, a corte, portanto. Todavia, se, em outra perspectiva temporal, hácircularida<strong>de</strong>, e se a instituição <strong>de</strong>rrotada – nesse caso, o parlamento – po<strong>de</strong>rá semprereiniciar uma nova rodada, não caberia à corte <strong>de</strong>ferir? No extremo do <strong>de</strong>sacordosincero, engendrado pela razão pública, seria possível sustentar que a instituição como melhor pedigree <strong>de</strong>ve ter um trunfo especial? 533Essa aparenta ser uma questão fundamental <strong>de</strong> qualquer teoria do diálogo. Se aúltima palavra provisória não impe<strong>de</strong> novas rodadas procedimentais, significa que aestabilização <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado tema coletivo ocorreria somente a partir <strong>de</strong> algumaacomodação entre os dois po<strong>de</strong>res, ou quando um <strong>de</strong>les aceitar a posição do outro (aqual, a propósito, po<strong>de</strong> ser resultado <strong>de</strong> seguidas negociações argumentativas <strong>de</strong>rodadas anteriores). A abdicação judicial na situação-limite talvez fosse uma <strong>de</strong>fesanormativa plausível. A corte daria ao parlamento o benefício da dúvida. No entanto,este cenário é mais especulativo do que realista. Com maior freqüência, po<strong>de</strong>resreduzem progressivamente o <strong>de</strong>sacordo, fazendo concessões recíprocas. É um jogopolítico, mas nada impe<strong>de</strong> que uma <strong>de</strong>liberação influencie o processo.Neste tópico, analisei as instituições em disputa, e concebi uma medidagenérica para avaliar essas re<strong>de</strong>finições <strong>de</strong> espaço. Tratei, portanto, do <strong>de</strong>sempenho<strong>de</strong>liberativo na perspectiva intra-institucional, o qual contribui para a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cada instituição, consi<strong>de</strong>rada separadamente. Mas po<strong>de</strong>mos também olhar para o<strong>de</strong>sempenho inter-institucional, ou seja, para o que essas instituições produzem emconjunto. Vejamos isso nos dois próximos tópicos.4. Modulação das virtu<strong>de</strong>s ativas e passivas533 Argumento que ecoa Waldron: sem base para o acordo substantivo, resta tentar um procedimental.214


No capítulo anterior, mostrei que um certo tipo <strong>de</strong> diálogo é inevitável aolongo do tempo, ainda que numa acepção frágil <strong>de</strong>sse termo. Nesse capítulo, comeceia conceber um diálogo mais autêntico e consciente. Defendi que o <strong>de</strong>sempenho<strong>de</strong>liberativo é uma medida promissora para avaliar a legitimida<strong>de</strong> em cada contexto.Nesse tópico, quero examinar como a corte, especificamente, po<strong>de</strong> participar <strong>de</strong>sseprocesso, para além da orientação genérica do tópico anterior, segundo o qual umpo<strong>de</strong>r terá legitimida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>safiar o outro quando sobressair-se no seu <strong>de</strong>sempenho<strong>de</strong>liberativo.O grau <strong>de</strong> intervenção da corte no diálogo está sujeito a maior <strong>de</strong>sconfiança.Afinal, ela tem um pedigree menos auto-evi<strong>de</strong>nte no senso comum sobre a<strong>de</strong>mocracia, como vimos no capítulo 3 (mesmo que levados em conta os senões docapítulo 2). Há também uma preocupação do ponto <strong>de</strong> vista do estado <strong>de</strong> direito: énecessário haver divisão clara <strong>de</strong> funções, alguém que produza regras gerais e outroque as aplique, <strong>de</strong> maneira estável e previsível.A narrativa até agora não se ateve a qualquer especificação <strong>de</strong> papéis. Isso se<strong>de</strong>ve, para insistir num ponto anterior, ao fato <strong>de</strong> que essa divisão <strong>de</strong> funções é difícil<strong>de</strong> ser estabelecida no campo dos direitos <strong>fundamentais</strong>. Dizer que à corte cabe opapel negativo <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar a inconstitucionalida<strong>de</strong> e ao legislador o propositivo passalonge <strong>de</strong> como o fenômeno efetivamente ocorre. Recorrer às velhas distinções entrecriação e interpretação do direito seria insistir numa falácia. Não estou supondo que,em relação a direitos, cortes e parlamentos são institucionalmente equivalentes. 534Parece plausível constatar que ambos enxergam problemas por prismas bastantediversos, não redundantes. No entanto, quando parlamentos se engajam emargumentos <strong>de</strong> princípio, a divisão torna-se nebulosa e exige uma auto-compreensãomais refinada <strong>de</strong> cada po<strong>de</strong>r sobre seu papel. A melhor capacida<strong>de</strong> institucional <strong>de</strong> umou <strong>de</strong> outro, nesse caso, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser tão óbvia. Uma cartilha hermenêutica nãoresolve.Uma forma <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a essa dúvida é formular uma receita rígida. Ely nosoferece um exemplo disso. Suspeito, contudo, que tal alternativa não se adapta bem às534 Como na crítica <strong>de</strong> Whittington a Waldron.215


oscilações inerentes à <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, ou que, no mínimo, diminui seupotencial. Shapiro propõe uma solução <strong>de</strong> meio-termo através da seguinte fórmula:“mais do que processo, menos do que substância”. Defen<strong>de</strong> um papel judicialpredominantemente reativo que faça o legislador revisar eventuais contradições<strong>de</strong>rivadas <strong>de</strong> seus atos. À corte não cabe agir imperialmente, mas servir <strong>de</strong>suplemento à competição. 535A posição que suscito neste tópico guarda alguma similarida<strong>de</strong> com essatentativa intermediária <strong>de</strong> Shapiro, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se a entenda como recomendaçãomaleável à corte, não como solução fechada. Proponho que a corte possa modularintervenção e contenção a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do <strong>de</strong>sempenho do parlamento. Nesse sentido, elapo<strong>de</strong>, às vezes, ir além do mero “suplemento à competição”. Ela faz um juízo <strong>de</strong>ocasião, e opta por atos mais expansivos ou comprimidos. Para resgatar o vocabuláriodo capítulo 4, varia entre minimalismo e maximalismo. Volto, portanto, a umaquestão que levantei no segundo tópico acima: a análise pru<strong>de</strong>ncial do contexto, umapon<strong>de</strong>ração caso a caso, tema por tema.A idéia <strong>de</strong> “contexto”, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo das variáveis que entram nesse cálculo, écertamente perigosa. No entanto, a tentativa <strong>de</strong> imaginar possíveis cenários políticos,em paralelo ao melhor papel que caberia à corte em cada um, enriquece a discussão.Po<strong>de</strong>mos nos restringir à variável do <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo, combinada a situações<strong>de</strong> ação e omissão legislativa e à verificação do momento em que a lei questionada foipromulgada. Acredito que haja, em cada cenário, claras nuances que tornam oeventual “ruído anti-<strong>de</strong>mocrático” <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> maisou menos plausível conforme a circunstância (admitindo que o ruído faça algumsentido).535 Ian Shapiro: “But they should generally operate in a reactive, ‘safety valve’, manner – holdinglegislators’ feet to the fire rather than substituting for them. (…) [The court] should <strong>de</strong>clare thedomination that has emerged from the <strong>de</strong>mocratic process unacceptable, insisting that the parties tryanew to find an accommodation. In this sense courts should never act imperially to impose results onrecalcitrants legislatures or to protect society from majority rule. Rather, they should use their authorityto get legislatures to confront contradictions in their own actions, forcing them to rethink way ofworking their majoritarian wills that do not countenance domination” (cf. The State of DemocraticTheory, p. 66-67).216


Pensemos em quatro contextos básicos. Muitas outras variações e grauspo<strong>de</strong>riam se <strong>de</strong>sdobrar <strong>de</strong>sses quatro, mas estes bastam para os fins do meuargumento. No primeiro, há omissão do legislador no atendimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>veresconstitucionais (mais facilmente exemplificados em constituições dirigentes querequerem ampla atuação legislativa para tornar eficazes boa quantida<strong>de</strong> dos direitos).No segundo, há ativismo legislativo sem gran<strong>de</strong> consistência <strong>de</strong>liberativa. No terceiro,o ativismo legislativo é acompanhado <strong>de</strong> alto <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo. No quarto,mudando um pouco a chave, a corte analisa a constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma lei antiga,aprovada por gerações anteriores.Sem entrar em consi<strong>de</strong>rações sobre o eventual grau <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong>da lei, esses contextos, por si sós, insinuam situações bastante diferentes parajustificar ou criticar a intervenção judicial. Exceto no terceiro caso, não parece tãodifícil, à luz do que foi dito até agora, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a intervenção da corte. Estasimplesmente chamaria o parlamento a exercer sua responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa. Oterceiro caso é <strong>de</strong>licado, mas a recomendação <strong>de</strong> abdicação judicial, sem mais, éprematura.A <strong>de</strong>cisão da corte, portanto, transcen<strong>de</strong> a um juízo binário <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong>, como Bickel já disse há quase meio século. Po<strong>de</strong>-se não apenasconstatar isso empiricamente, mas <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r essa postura do ponto <strong>de</strong> vista normativo.Nessa zona discricionária do juízo <strong>de</strong> ocasião, não resta outra alternativa à teorianormativa senão uma receita pragmática e particularista. Saber quanto e quando<strong>de</strong>cidir, encontrar um espaço do meio que evite o excesso e a timi<strong>de</strong>z, é um <strong>de</strong>safioque a corte terá <strong>de</strong> resolver caso a caso. Do ponto <strong>de</strong> vista abstrato, não se po<strong>de</strong> dizermuito. Minha sugestão é que a corte module virtu<strong>de</strong>s ativas e passivas por meio daprudência. Talvez esta seja uma fórmula ainda mais enigmática do que asrecomendações <strong>de</strong> Bickel, pois este, salvo engano, ao menos se posiciona maisclaramente pela auto-contenção como regra geral. Aproximo-me mais <strong>de</strong> Sunstein,que permite esse tipo <strong>de</strong> modulação casuística e fornece critérios para tanto.O que <strong>de</strong>ve nortear a corte nessa modulação? Qual propósito <strong>de</strong>ve elaperseguir com ações <strong>de</strong> ativismo e contenção? Voltando ao parâmetro <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>que firmei há pouco, a corte po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve catalisar um <strong>de</strong>bate mais qualificado sobre217


direitos nas esferas formais e informais da política. O que a protege é o bomargumento.Ela não tem como impor sua <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> cima para baixo, a não ser que olegislador a aceite passivamente. O interlocutor judicial po<strong>de</strong> provocar atritos e<strong>de</strong>safiar o legislador a enfrentar um tipo especial <strong>de</strong> razão que nem sempre pesa nas<strong>de</strong>cisões parlamentares. À medida que o legislador se nega a fazê-lo <strong>de</strong> formatransparente, ele <strong>de</strong>sperdiça a cre<strong>de</strong>ncial eleitoral <strong>de</strong> que dispõe para inovar comresponsabilida<strong>de</strong> na esfera política. Isso não implica a obrigação <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar aresposta correta, ou <strong>de</strong> encontrar uma que alcance a<strong>de</strong>são consensual, mas <strong>de</strong> respeitaros ônus argumentativos <strong>de</strong> quem participa <strong>de</strong> um empreendimento <strong>de</strong>liberativo. Acorte, nesse sentido, tem outras razões para enfrentar o parlamento que não asmessiânicas.Novamente, o arquiteto institucional po<strong>de</strong> ficar irrequieto. A hipótese <strong>de</strong><strong>de</strong>safio ou <strong>de</strong> discordância lhe remete a <strong>de</strong>sobediência, o que romperia a coerência doestado <strong>de</strong> direito, geraria instabilida<strong>de</strong> ou mesmo o risco <strong>de</strong> anarquia. O conceito <strong>de</strong>diálogo inter-institucional po<strong>de</strong> realmente levar a mal-entendidos. Se sua orientaçãofosse “todos po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>cidir tudo todo o tempo”, os riscos <strong>de</strong> impasse, paralisia,colapso e vácuo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r saltariam aos olhos. É por isso que a idéia <strong>de</strong> última palavracontinua a <strong>de</strong>sempenhar algum papel, apesar <strong>de</strong> termos amenizado sua importância,quer pela inevitabilida<strong>de</strong> da resposta ao longo do tempo, caso persista o <strong>de</strong>sacordo, 536quer pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a <strong>de</strong>liberação reduzir o dissenso, ou ao menos <strong>de</strong>spertarrespeito mútuo e a <strong>de</strong>ferência. 5375. Mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> diálogo e seu potencial epistêmicoFinalmente, consi<strong>de</strong>remos a plausibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma promessa epistêmicaembutida numa <strong>de</strong>liberação autêntica. A expectativa é que a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res536 Justice Bran<strong>de</strong>is traduz essa idéia em frase eloqüente, indicando que o <strong>de</strong>bate só termina (e portanto,a circularida<strong>de</strong> da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res), quando há um acordo: “no case is ever finally <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>d until itis rightly <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>d”.537 Como, sinteticamente, diz Urbinati: “In fact, <strong>de</strong>liberation is not meant to impose a <strong>de</strong>cision, but toachieve it” (cf. Representative Democracy, p. 198).218


<strong>de</strong>liberativa tenha maior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar à resposta certa. 538 - 539 Ao contráriodos tópicos anteriores, não estou mirando o esforço <strong>de</strong> cada po<strong>de</strong>r em maximizar oseu próprio <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo, e, assim, prevalecer sobre o outro. Tentoperceber o produto <strong>de</strong>ssa competição no agregado. Sob esse prisma, não mais seprocura qual po<strong>de</strong>r, entre corte e parlamento, está mais bem estruturado para alcançara melhor resposta em questões <strong>de</strong> princípio. Olho para os dois como partes <strong>de</strong> umúnico <strong>de</strong>senho. Passo da <strong>de</strong>liberação intra-institucional para a inter-institucional.Vimos, ao longo <strong>de</strong>ste e do último capítulos, basicamente dois reguladores dainteração entre os po<strong>de</strong>res. O primeiro diz respeito ao <strong>de</strong>senho procedimental,característica particular a cada constituição, ao qual não <strong>de</strong>dicamos atenção. Osegundo refere-se à atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada po<strong>de</strong>r em relação ao outro. Nessa dimensão,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> quem tenha a última palavra provisória, ou <strong>de</strong> quem seja, doponto <strong>de</strong> vista formal, o “guardião”, diferentes mo<strong>de</strong>los nascem a partir <strong>de</strong> distintasposturas.Procuro, aqui, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> interação que é mais sensível, ao longo do tempo,“à força <strong>de</strong> boas razões”. 540 Po<strong>de</strong>mos pensar em dois tipos-i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> interação, a partirda oposição entre duas atitu<strong>de</strong>s puras: a <strong>de</strong>liberativa (que fala e escuta, com o objetivoda persuasão), e a adversarial (que fala para se impor). O primeiro está mais expostopublicamente ao argumento, mais aberto ao reconhecimento do diálogo, e maisdisposto ao <strong>de</strong>safio <strong>de</strong>liberativo. 541 Tentemos i<strong>de</strong>ntificar por que este mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>diálogo é mais ten<strong>de</strong>nte a se aproximar das melhores respostas.538 Novamente, Urbinati exemplifica essa esperança trazida pela <strong>de</strong>liberação: “In any case, although a<strong>de</strong>cision can be ma<strong>de</strong> without <strong>de</strong>liberation and although it can end in majority/minority divi<strong>de</strong>, theassumption of <strong>de</strong>liberation is that a <strong>de</strong>liberated <strong>de</strong>cision has more chance of being a good one and thuscommand rational conviction precisely because of the trial-and-error process it went through” (cf.Representative Democracy, p. 198).539 É também a esperança <strong>de</strong> Michael Perry: “In the constitutional dialogue between the Court andother agencies of government – a subtle, dialectical interplay between Court and polity – what emergesis a far more self-critical political morality than would otherwise appear, and therefore is likely a moremature political morality as well – a morality that is moving toward, even though it has never alwaysand everywhere arrived at, right answers, rather than a stagnant or even regressive morality” (cf. TheConstitution, the Courts and Human Rights, p. 113).540 Nas palavras <strong>de</strong> Zurn: “to be responsive, over time, to the force of good reasons” (cf. JudicialReview and …, p. 62).541 Está mais sujeito, portanto, à “força civilizadora da hipocrisia”, na expressão <strong>de</strong> Elster (cf.Deliberative Democracy, pp. 12 e 111).219


John Stuart Mill talvez tenha elaborado o argumento mais conhecido a esserespeito. Refiro-me à fundamentação da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão e sua vinculação coma verda<strong>de</strong>. 542 A sua distinção entre “verda<strong>de</strong> viva” e “dogma morto” é o atalho maisdireto para enten<strong>de</strong>r o seu ponto. Para que a “verda<strong>de</strong>” tenha chance <strong>de</strong> emergir econtinuar a exercer seu papel reflexivo, não se <strong>de</strong>vem impor obstáculos àmanifestação <strong>de</strong> opiniões <strong>de</strong> qualquer or<strong>de</strong>m. Só teremos segurança <strong>de</strong> que umaproposição é verda<strong>de</strong>ira na medida em que ataques a ela estejam abertos, e elaresista. 543 Se, a título da conquista da verda<strong>de</strong>, proíbe-se a contestação daí em diante,esta morre como um dogma que entorpece a capacida<strong>de</strong> crítica. Não se sustenta maiscomo verda<strong>de</strong>. Qualquer óbice à discussão correspon<strong>de</strong> a uma suposição <strong>de</strong>infalibilida<strong>de</strong>, e produz um efeito educativo perverso. 544Esse argumento <strong>de</strong> Mill não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser criticado. Por um lado, seria hiperprotetivoda liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, não permitindo restrições on<strong>de</strong> tais seriamjustificáveis (como em casos <strong>de</strong> hate speech, por exemplo). Por outro, seria subprotetivo:a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão subordinar-se-ia a um fim externo. Não seria umfim em si mesmo, um elemento incondicional da dignida<strong>de</strong> humana, mas um meiopara atingir a verda<strong>de</strong>. É assim que Martha Nussbaum o rejeitou. 545Não precisamos nos esten<strong>de</strong>r na interpretação <strong>de</strong> Mill para testar essasobjeções. Ao adaptar o argumento para o plano institucional, a instrumentalização daliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão em nome da verda<strong>de</strong> é exatamente o que se busca. Não é maisa dignida<strong>de</strong> individual que está em jogo. Trata-se <strong>de</strong> uma fundamentação para a<strong>de</strong>sejabilida<strong>de</strong> da resposta, para a continuida<strong>de</strong> ininterrupta e franca do diálogoinstitucional. Sob pena <strong>de</strong> virarem “dogmas mortos”, e, portanto, vulneráveis e542 O capítulo 2 <strong>de</strong> On Liberty.543 “There is the greatest difference between presuming an opinion to be true, because, with everyopportunity for contesting it, it has not been refuted, and assuming its truth for the purpose of notpermitting its refutation. Complete liberty of contradicting and disproving our opinion, is the verycondition which justifies us in assuming its truth for purposes of action; and on no other terms can abeing with human faculties have any rational assurance of being right” (cf. On Liberty, 24).544 “All silencing of discussion is an assumption of infallibility” (cf. On Liberty, p. 22).545 “If one starts from the i<strong>de</strong>a that each human being has dignity and <strong>de</strong>serves respect, and that politicsmust be groun<strong>de</strong>d in respect for the dignity of all citizens as equals, one will find that Mill has putthings just the wrong way round. Instead of thinking truth good because of what it does for the selfrespectand flourishing of individuals, he subordinates individual flourishing and dignity to truth” (cf.Hiding From Humanity, p. 327-328).220


<strong>de</strong>sprotegidos, a proteção dos direitos <strong>de</strong>ve inspirar rodadas <strong>de</strong>liberativas permanentes(ou ao menos a ausência <strong>de</strong> obstáculos intransponíveis).Ao tratar <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> interação que se oriente por princípios<strong>de</strong>liberativos e que se preocupe em criar uma “cultura da justificação” para além <strong>de</strong>um puro jogo <strong>de</strong> forças, tento <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r um tipo mais <strong>de</strong>sejável <strong>de</strong> “reativida<strong>de</strong>política”, on<strong>de</strong> o bom argumento cumpra algum papel. Se parlamentos e cortesadotam uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa e levam em conta os argumentos expostos por cadaum, <strong>de</strong>safiando-se reciprocamente quando consi<strong>de</strong>ram que têm uma melhoralternativa, é provável que produzam respostas mais criativas do que num mo<strong>de</strong>loconflitivo e adversarial.O recurso a Mill po<strong>de</strong> parecer artificial ou ingênuo, especialmente numacircunstância <strong>de</strong> “pluralismo razoável”, predicado obrigatório <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s<strong>de</strong>mocráticas. “Verda<strong>de</strong>”, ao menos no campo das relações políticas e sociais, é umapalavra que <strong>de</strong>sperta suspeita. Mas o ponto <strong>de</strong> Mill é mais mo<strong>de</strong>sto. Ele não parecesupor uma verda<strong>de</strong> única, estável e a-histórica. Para ele, simplesmente, tampar ousuprimir o <strong>de</strong>sacordo representa um perigo maior do que permitir o choque <strong>de</strong> idéiaspara que as melhores sobrevivam. O cético, mais uma vez, <strong>de</strong>spejará uma infinida<strong>de</strong><strong>de</strong> exemplos em que tal choque culminou em resultado inverso. Prefere ser realista aoseu modo, e propõe instituições que esfriem esse <strong>de</strong>bate tendo em vista outros valorese serem preservados na boa or<strong>de</strong>m política. Isso não é, porém, incompatível com oque <strong>de</strong>fendo neste tópico. É justamente nesse sentido mais cauteloso, e incorporado àspróprias instituições, que o argumento <strong>de</strong> Mill conserva a sua força. Mantê-lo comoi<strong>de</strong>al orienta a ação <strong>de</strong> cada po<strong>de</strong>r, e não necessariamente subverte valores como aestabilida<strong>de</strong> e a segurança.Outra reserva tradicional à <strong>de</strong>liberação refere-se à pressão temporal pela<strong>de</strong>cisão. Tomar uma <strong>de</strong>cisão imperfeita, em muitas circunstâncias, é seguramentepreferível à paralisia na busca infinita da resposta correta. 546 Po<strong>de</strong>mos encontrar,inclusive, razões morais para justificar essa opção.546 Nas palavras <strong>de</strong> Vermeule e Garrett: “The real question is not whether <strong>de</strong>liberation is beneficial, buthow much <strong>de</strong>liberation is optimal” (cf. “Institutional Design of a Thayerian Congress”, p. 1292).221


Deliberações parlamentares, judiciais e executivas não têm a mesma abertura,por exemplo, <strong>de</strong> um seminário acadêmico, mesmo que possam tratar,fundamentalmente, <strong>de</strong> um mesmo dilema. 547 No entanto, a necessida<strong>de</strong> políticaevi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões não exclui a responsabilida<strong>de</strong> coletiva <strong>de</strong> continuar aperseguir a melhor resposta. Posto <strong>de</strong>ssa maneira, a <strong>de</strong>mocracia não é diferente <strong>de</strong> um“café filosófico” porque precisa tomar <strong>de</strong>cisões, mas lhe é similar, em algumamedida, porque tem o ônus <strong>de</strong> buscar a melhor resposta (sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> tomar, aolongo do caminho, <strong>de</strong>cisões provisórias e imperfeitas). Auto-aperfeiçoamento é umcompromisso <strong>de</strong>sse regime. Se <strong>de</strong>cisões provisórias aten<strong>de</strong>m à <strong>de</strong>manda <strong>de</strong>autorida<strong>de</strong>, o tempo não é um limite para a <strong>de</strong>liberação inter-institucional, mas umelemento central para maximizar a sua capacida<strong>de</strong> epistêmica.6. ConclusõesNa <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, a interação é inevitável. A interação <strong>de</strong>liberativa éum ganho; a interação puramente adversarial, se não chega a ser uma perda,<strong>de</strong>sperdiça seu potencial epistêmico.Po<strong>de</strong>-se elevar a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a <strong>de</strong>mocracia produzir boas <strong>de</strong>cisões, nãoeliminar a justiça procedimental imperfeita. Seria enganoso equiparar a falibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>todos os <strong>de</strong>senhos. Uma interação <strong>de</strong>liberativa não extingue a possibilida<strong>de</strong> do erro,mas maximiza a do acerto.A revisão judicial não precisa ser vista apenas como um dique ou uma barreira<strong>de</strong> contenção, mas também como um mecanismo propulsor <strong>de</strong> melhores <strong>de</strong>liberações.Não serve somente para (tentar) nos proteger da política quando esta sucumbe aopânico ou irracionalida<strong>de</strong>, mas para <strong>de</strong>safiá-la a superar-se em qualida<strong>de</strong>.A corte po<strong>de</strong> ser um catalisador <strong>de</strong>liberativo. Simboliza um esforço para fazerda <strong>de</strong>mocracia um regime que não apenas separe maiorias e minorias, estruture acompetição política periódica e selecione as elites vencedoras e per<strong>de</strong>doras, mas547 Como disse Elster: “Whereas scientists can wait for <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s and science can wait for centuries,politicians are typically subject to strong time constraints” (cf. Deliberative Democracy, p. 9).222


também seja capaz <strong>de</strong> discernir entre bons e maus argumentos. Isso não exclui acompetição, mas a qualifica.A dimensão <strong>de</strong>liberativa aponta para uma <strong>de</strong>manda mais <strong>de</strong>nsa <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong>, que não se limita a uma mera certificação procedimental. Torna apaisagem <strong>de</strong>mocrática mais variada. Não se limita a um retrato frio e insosso <strong>de</strong> umacoletivida<strong>de</strong> tomando <strong>de</strong>cisões, pura e simplesmente. Mostra os pressupostos e ascondições subjacentes ao valor moral <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão coletiva.223


Capítulo 8Constitucionalismo brasileiro:entre a retórica do guardião entrincheirado e a prática do guardião acanhado1. Introdução 548Nenhuma instituição política é <strong>de</strong>mocrática in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do que <strong>de</strong>cida.Essa proposição requer diversas qualificações, sem dúvida. O capítulo anterior tentouexplicitá-las. Tomei a <strong>de</strong>liberação, guiada pela razão pública, como variáveldominante <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> das <strong>de</strong>cisões sobre direitos <strong>fundamentais</strong>. Propus que o<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo seja a métrica para se construir um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>separação</strong> <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res não apenas <strong>de</strong>fensivo, mas com potencial epistêmico. Cada po<strong>de</strong>r possui ônusargumentativos que, se não atendidos, autorizam a reação do outro.Se a legitimida<strong>de</strong> não se esgota no procedimento estipulado ex ante, masabrange o conteúdo das <strong>de</strong>cisões, oscilações e funções cambiantes passam a seraceitáveis. Não significa que, nessa teoria, a substância sujeite o procedimento edissolva a autorida<strong>de</strong>, como se cada indivíduo fosse livre para <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer a partir <strong>de</strong>seu julgamento individual. Uma vez que <strong>de</strong>safios recíprocos entre corte a parlamentosão inevitáveis ao longo do tempo, a substância é um critério para justificar essasreações. Tal inevitabilida<strong>de</strong> não significa, todavia, que a qualida<strong>de</strong> da resposta, que ointervalo entre uma <strong>de</strong>cisão e outra, e que a consciência <strong>de</strong> cada po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> que está<strong>de</strong>safiando o outro (e <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>rá legitimamente receber uma resposta) não variem.Por isso, cabe à teoria normativa contribuir nessa tarefa. Entre as alternativas, <strong>de</strong>fendio tipo <strong>de</strong>liberativo (ou não adversarial) <strong>de</strong> interação. Quanto ao lapso temporal i<strong>de</strong>al,sustentei que valores do estado <strong>de</strong> direito <strong>de</strong>vem ser sopesados com prudência nessecálculo pragmático. A <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do cenário, portanto, justifica-se o exercício <strong>de</strong>virtu<strong>de</strong>s passivas ou ativas.“Desafio”, para alguns, equivaleria à pura “<strong>de</strong>sobediência”. De fato, talvez adistinção seja apenas <strong>de</strong> grau. Chamemos essa prática <strong>de</strong> um ou <strong>de</strong> outro nome, nalógica da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, ela é inescapável. Alguns postulados do estado <strong>de</strong>548 Agra<strong>de</strong>ço a Luciana Ramos pela ajuda no levantamento <strong>de</strong> alguns episódios exemplificativos <strong>de</strong>diálogo inter-institucional no Brasil.224


direito, tais como a certeza e a segurança das <strong>de</strong>cisões jurídicas, são, <strong>de</strong> fato,mitigados em função da realização <strong>de</strong> outros valores indispensáveis. Esse não é,necessariamente, um problema ou novida<strong>de</strong>, afinal, às vezes é preferível abrir mão <strong>de</strong>certo grau <strong>de</strong> previsibilida<strong>de</strong> em nome da maior proteção <strong>de</strong> direitos.No presente capítulo, pretendo aplicar esses argumentos a uma crítica <strong>de</strong>algumas características do constitucionalismo brasileiro, especialmente <strong>de</strong> certaspremissas por trás da aceitação tranqüila do STF como “guardião da constituição”.Suponho que a percepção do diálogo traz ganhos cognitivos ainda mal percebidos pornosso discurso constitucional. Mostra a importância <strong>de</strong> se atentar para a seqüência da<strong>de</strong>cisão judicial. Para o que vem <strong>de</strong>pois, ininterruptamente. Abre espaço para sepensar em critérios normativos que orientem essas respostas.O tipo <strong>de</strong>liberativo <strong>de</strong> interação é o i<strong>de</strong>al que permeia, portanto, esseexercício. Dá uma justificativa condicionada para a prática do STF, mas, ao mesmotempo, tira-o do pe<strong>de</strong>stal <strong>de</strong> “guardião”. 549 Permite ver a possibilida<strong>de</strong>, provavelmenteherética para o pensamento constitucional brasileiro, <strong>de</strong> o legislador <strong>de</strong>safiar o STF. 550Mas não recusa, ao mesmo tempo, a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o STF praticar um acentuadoativismo em certas circunstâncias. Isso está em sintonia com a concepção <strong>de</strong><strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>lineada no capítulo anterior, segundo a qual não há (e nempo<strong>de</strong> haver) receitas abstratas e pré-fixadas que esgotem a <strong>de</strong>finição das funções.Argumento que a “retórica do guardião entrincheirado” possui dois víciosrelevantes: do ponto <strong>de</strong> vista normativo, é incompatível com a noção <strong>de</strong> uma interação<strong>de</strong>liberativa, e alimenta uma dinâmica adversarial e hierárquica que empobrece e<strong>de</strong>sperdiça o potencial epistêmico da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res; do ponto <strong>de</strong> vistaempírico, produz uma mistificação e atribui à corte um ônus extremamente pesado549 Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 19.550 Vale lembrar, mais uma vez, que ao relativizar a idéia <strong>de</strong> “última palavra”, não nego que a cortetoma <strong>de</strong>cisões e que elas <strong>de</strong>vam ser obe<strong>de</strong>cidas, sob pena <strong>de</strong> colocar em risco alguns pilares do estado<strong>de</strong> direito. Louis Fisher se atenta para isso: “At certain moments in our constitutional history there is acompelling need for an authoritative and binding <strong>de</strong>cision by the Supreme Court. (…) These momentsare rare. Usually the Court makes a series of exploratory movements followed by backing and filling(…). For the most part, court <strong>de</strong>cisions are tentative and reversible like other political events. Courtor<strong>de</strong>rs must be obeyed, but obedience here relates only to the or<strong>de</strong>rly and expeditious administration ofjustice, not to the soundness or finality of a court or<strong>de</strong>r. Upon appeal, erroneous court or<strong>de</strong>rs may bereversed. The fact that the judiciary has acted does not relieve members of the political branches or thepublic from exercising in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt judgment” (cf. Constitutional Dialogues, p. 275, 276).225


que ela não é capaz <strong>de</strong> carregar. Ao arrogar-se a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, olímpica esolitariamente, salvar a <strong>de</strong>mocracia contra a vonta<strong>de</strong> dos outros po<strong>de</strong>res, a cortearrisca-se a criar um feitiço contra si mesma que ten<strong>de</strong> a culminar ou numa prática<strong>de</strong>cisória tímida e acanhada, ou numa reação mais agressiva (e menos <strong>de</strong>liberativa) dooutro po<strong>de</strong>r. 551 Não apresento essa idéia como um diagnóstico empíricorigorosamente <strong>de</strong>monstrado, pois este exigiria um tipo <strong>de</strong> pesquisa que extrapola oslimites da tese. Assumo a “retórica do guardião entrincheirado” como uma hipóteseempírica plausível, e examino suas implicações normativas.Nesse sentido, <strong>de</strong>fendo ser preferível um tribunal comedido e mo<strong>de</strong>sto naretórica, que se enxerga como participante <strong>de</strong> um processo inter-institucional <strong>de</strong>construção do significado da constituição e que não se intimida a ser ativista quando<strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> um bom argumento, a um tribunal verborrágico, mas pouco corajoso no<strong>de</strong>safio ao legislador. À medida que amansa a retórica e investe seriamente no seu<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo, o STF po<strong>de</strong> construir melhores condições políticas paraintervir com maior intensida<strong>de</strong>. Pratica o ativismo não para se impor, mas paraprovocar reações. Desafia a outra instituição a buscar um melhor argumento, não a secalar e obe<strong>de</strong>cer. Faz menos alar<strong>de</strong>, e po<strong>de</strong> vir a ser mais bem sucedido na promoção<strong>de</strong> direitos. Não vê nos fenômenos da resposta legislativa, da construção coor<strong>de</strong>nada,da cooperação etc. afrontas à sua autorida<strong>de</strong>. Numa cultura encantada pelo “guardiãoentrincheirado”, por outro lado, essas idéias sequer são tematizadas.O capítulo segue por quatro outros tópicos. No segundo, <strong>de</strong>screvo o diálogoinstitucional brasileiro por meio <strong>de</strong> seus dois componentes inter-<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes: o<strong>de</strong>senho institucional da Constituição brasileira <strong>de</strong> 1988, e a mentalida<strong>de</strong> que a opera.No terceiro, esboço alguns cenários elucidativos da interação entre STF e CongressoNacional, cada qual produzindo diferentes conseqüências para a legitimida<strong>de</strong>. Noquarto, <strong>de</strong>screvo alguns casos <strong>de</strong> diálogo que exemplificam os cenários <strong>de</strong>scritos notópico anterior. Por fim, elaboro algumas conclusões.551 Uma relação que Reva Siegel Robert Post i<strong>de</strong>ntificaram: “The Court speaks loudly, but strikesnarrowly” (“Protecting the Constitution from the People”, p. 43-44).226


2. O diálogo inter-institucional brasileiro2.1 O circuito <strong>de</strong>cisório formalDo ponto <strong>de</strong> vista procedimental, a Constituição brasileira <strong>de</strong> 1988 reserva aoSTF a última palavra provisória não só para o controle <strong>de</strong> leis, mas inclusive <strong>de</strong>emendas constitucionais. Opera-se, portanto, em dois níveis. No primeiro, a basesobre a qual o controle po<strong>de</strong> ser feito é muito mais ampla, pois todo o texto daconstituição, em seus múltiplos assuntos (que extrapolam o núcleo constitucionaltradicionalmente associado a direitos e à organização do estado), está protegido contraalterações por meio <strong>de</strong> lei. O <strong>de</strong>bate sobre legitimida<strong>de</strong>, neste primeiro contexto, édiverso, seja porque se trata <strong>de</strong> um estágio intermediário <strong>de</strong> controle (que po<strong>de</strong> sersuperado por emenda constitucional), seja porque a base substantiva do controle vaimuito além dos direitos <strong>fundamentais</strong>. Aqui, a justificativa <strong>de</strong> que o controle servecomo um contra-po<strong>de</strong>r para amansar a política eleitoral ordinária cumpre um papelsignificativo. No segundo, a referência substantiva do controle é mais restrita(limitada às cláusulas pétreas), e o seu ônus <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>, maisagudo. O controle <strong>de</strong> leis atua como um sinal amarelo ao legislador. O <strong>de</strong> emendas,como um sinal vermelho, passível <strong>de</strong> ser superado somente com a ruptura da or<strong>de</strong>mconstitucional (caso o STF seja renitente em novas rodadas <strong>de</strong>liberativas).Essa é uma maneira estritamente formal <strong>de</strong> interpretar o arranjo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>resbrasileiro. Cada “rodada <strong>de</strong>liberativa” envolveria um percurso com, “no mínimo, 4fases”. 552 O STF teria o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> mandar recomeçar. Foi com base nessa percepçãoque, em minha dissertação, consi<strong>de</strong>rei tal arranjo como um “paroxismo da jurisdiçãoconstitucional” – a atribuição ao STF do “direito <strong>de</strong> errar por último”. 553Essa <strong>de</strong>scrição, ainda que acurada do ponto <strong>de</strong> vista jurídico, tem muito <strong>de</strong>artificial. É especulativa, mas pouco realista. É insensível às negociaçõesargumentativas informais que ocorrem entre os po<strong>de</strong>res, e supõe o <strong>de</strong>sacordo e oenfrentamento totais entre STF e o legislador, um jogo <strong>de</strong> soma zero com per<strong>de</strong>dor e552 Ou seja, um caminho que começa com a (i) edição <strong>de</strong> uma lei, (ii) a qual é <strong>de</strong>claradainconstitucional, (iii) segue para a edição <strong>de</strong> uma emenda, e (iv) termina numa nova <strong>de</strong>claração <strong>de</strong>inconstitucionalida<strong>de</strong> (cf. Controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> e Democracia, p. 134).553 Ibid, p. 161.227


vencedor. Tratar-se-ia <strong>de</strong> um braço-<strong>de</strong>-ferro polarizado, e não <strong>de</strong> um jogo <strong>de</strong> vetoresque se somam e se acomodam. Numa interação <strong>de</strong>sse tipo, há pouco lugar para apersuasão inter-institucional, e a única forma <strong>de</strong> prevalecer seria recorrer a uminstrumento jurídico <strong>de</strong> maior autorida<strong>de</strong> (como a emenda, para o legislador).Essa abordagem não percebe que o STF não <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> no vácuo, livre <strong>de</strong>quaisquer constrangimentos. Tampouco nota que, muitas vezes, a reação legislativa émais sutil e que, para o legislador, a emenda não é a única alternativa a uma lei quefoi <strong>de</strong>clarada inconstitucional. Uma nova lei ligeiramente modificada, que façaconcessões aos testes constitucionais do STF, ou mesmo uma lei idêntica àanteriormente invalidada, mas acompanhada <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong>liberativo maisintenso, po<strong>de</strong>m ser estratégias políticas menos custosas. 554 A própria jurisprudênciado STF reconhece pacificamente a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reedição <strong>de</strong> lei idêntica àquela quefoi anteriormente <strong>de</strong>clarada inconstitucional. 555 - 556É por essas razões que, ao abordar qualida<strong>de</strong>s e problemas do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>diálogo institucional brasileiro, não se po<strong>de</strong> permanecer apenas no plano daselucubrações que a leitura do texto constitucional nos autoriza a fazer. O <strong>de</strong>senhoprocedimental não diz tudo. Apenas estabelece uma or<strong>de</strong>m das intervenções (quemcomeça, quem termina e os passos intermediários). Não consegue regular estritamenteos argumentos e as outras estratégias políticas que cada po<strong>de</strong>r irá utilizar para <strong>de</strong>safiaro outro.Não precisamos entrar em minúcias <strong>de</strong>scritivas. O ponto, aqui, é apenas notarque a Constituição reservou, <strong>de</strong> fato, ao STF, a última palavra provisória. Esta554 Cf., p. ex., Pickerill, Constitutional Deliberation in Congress, pp. 38-40, 47 etc.555 Veja-se, p. ex., trecho <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão: “Inteligência do art. 102, § 2º, da CF, e do art. 28, § único, daLei fe<strong>de</strong>ral nº 9.868/99. A eficácia geral e o efeito vinculante <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, proferida pelo SupremoTribunal Fe<strong>de</strong>ral, em ação direta <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei ou atonormativo fe<strong>de</strong>ral, só atingem os <strong>de</strong>mais órgãos do Po<strong>de</strong>r Judiciário e todos os do Po<strong>de</strong>r Executivo, nãoalcançando o legislador, que po<strong>de</strong> editar nova lei com idêntico conteúdo normativo, sem ofen<strong>de</strong>r aautorida<strong>de</strong> daquela <strong>de</strong>cisão” (Rcl 2617 AgR/MG, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 23.02.2005). Amesma posição foi mantida na Rcl 5442 MC/PE, Rel. Min. Celso <strong>de</strong> Mello, julgado em 31 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong>2007 (cf. Informativo-STF n. 477).556 Essa alternativa é curiosa, uma vez que parece reconhecer a possibilida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>safio legislativo econtradizer, portanto, a eventual existência <strong>de</strong> uma “retórica do guardião entrincheirado”. Nos termosem que está elaborada essa incipiente jurisprudência do STF, no entanto, não se trata ainda da aceitação<strong>de</strong> um “<strong>de</strong>safio <strong>de</strong>liberativo”, ou <strong>de</strong> levar em conta o argumento do outro po<strong>de</strong>r, mas <strong>de</strong> uma disputa <strong>de</strong>forças, e da prevalência do mais forte (o guardião).228


escolha, naturalmente, não é trivial, e representa um custo, conforme já abor<strong>de</strong>i emcapítulos anteriores. O objetivo da tese não é discutir a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse custo.Saber se vale ou não a pena pagar esse preço envolveria pon<strong>de</strong>rações empíricasabrangentes e controversas. No plano da teoria normativa, não se po<strong>de</strong> dar respostaperemptória a esse problema, mas apenas indicar algumas variáveis e parâmetros.Quero observar se um tipo específico <strong>de</strong> retórica sobre o papel do STF é compatívelcom o argumento normativo da tese, que constrói uma justificativa condicionada aocontrole <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. O tópico abaixo <strong>de</strong>screve essa retórica.2.2 A retórica do guardião entrincheirado e da última palavraA mentalida<strong>de</strong> política que opera a interação institucional brasileira édominada por uma “retórica do guardião entrincheirado”. Atribui ao tribunal, aomenos no discurso, uma missão salvacionista na proteção <strong>de</strong> direitos e da reserva <strong>de</strong>justiça da <strong>de</strong>mocracia. A armadura procedimental da Constituição possibilitadiferentes tipos <strong>de</strong> interação, uns mais, outros menos legítimos, como vimos(simplificados na dicotomia entre “<strong>de</strong>liberativo” e “adversarial”). A “retórica doguardião entrincheirado”, porém, incentiva um tipo distante do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> diálogo<strong>de</strong>senvolvido na tese.Essa mentalida<strong>de</strong> não é difícil <strong>de</strong> ser diagnosticada em manuais <strong>de</strong> direitoconstitucional, em <strong>de</strong>cisões do STF, ou no <strong>de</strong>bate público em geral. Ela <strong>de</strong>va serrejeitada não só porque pressupõe a superiorida<strong>de</strong> do juízo moral feito pelo tribunalsobre o legislador, mas porque, ao atribuir ao tribunal um ônus <strong>de</strong>ssa magnitu<strong>de</strong>, correo risco <strong>de</strong> produzir uma conseqüência talvez contra-intuitiva – o guardião acanhado.Seria um fardo que inibe em vez <strong>de</strong> fortalecer.Se há um senso comum claramente enraizado na cultura constitucionalbrasileira, este é a suposição <strong>de</strong> que o STF tem a última palavra sobre direitos<strong>fundamentais</strong> (e em questões constitucionais em geral). Nos arroubos <strong>de</strong> retórica229


messiânica, costuma-se dizer que ele é a “última trincheira” ou o “último guardião”do cidadão. 557A <strong>de</strong>fesa do tribunal como última palavra geralmente vem acompanhada <strong>de</strong>alguns elementos <strong>de</strong>corativos. Fala-se menos em supremacia do tribunal. Prefere-sevalorizar a supremacia da constituição. 558 O tribunal seria apenas o ator que, peloexercício <strong>de</strong> “hermenêuticas emancipatórias”, põe em vigor o que já estaria <strong>de</strong>senhadono texto constitucional. Técnicas hermenêuticas, entretanto, têm pouco a contribuirpara o <strong>de</strong>senho institucional (a <strong>de</strong>terminar “quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o que e como e quando e porque”). Aplicam-se, igualmente, a qualquer po<strong>de</strong>r.A cultura do guardião não é prejudicial apenas porque rejeita a participaçãogenuína do legislador na formulação do significado constitucional, mas tambémporque lhe confere uma isenção <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>. Numa posição cômoda, nãoprecisa preocupar-se com a constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus próprios atos. 559 Não se lhe<strong>de</strong>manda uma prestação <strong>de</strong> contas argumentativa. Há muitas evidências <strong>de</strong> tal cultura.Oscar Vilhena, por exemplo, após exame da evolução do STF, concluiu:(...) que a partir das mudanças impostas pela Constituição <strong>de</strong>1988, o Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral viu-se obrigado a assumir opapel <strong>de</strong> árbitro último da política nacional, neutralizandoconflitos <strong>de</strong>sagregadores e garantindo a continuida<strong>de</strong> e a harmoniado sistema político, exercendo uma espécie <strong>de</strong> Po<strong>de</strong>r Mo<strong>de</strong>rador(...). Caso se afaste da vonta<strong>de</strong> da Constituição, substituindo-apela <strong>de</strong> seus próprios Ministros, estará agindo ilegitimamente,pois afinal não foram eleitos para assumir esse tipo <strong>de</strong> função e557 Em frase que também serviu <strong>de</strong> mote para meu último capítulo da dissertação <strong>de</strong> mestrado, oMinistro Marco Aurélio afirmou: “O judiciário é a última trincheira do cidadão” (“Para Marco Aurélio,reforma só com revolução”, Estado <strong>de</strong> São Paulo, Ca<strong>de</strong>rno Nacional, 15/01/2003).558 Ataquei, na minha dissertação, esse tipo <strong>de</strong> estratégia argumentativa. Cria-se uma cortina <strong>de</strong> fumaçaque escon<strong>de</strong> o STF enquanto ator político. Nessa passagem <strong>de</strong> Carlos Ayres Britto, há um exemplo<strong>de</strong>sse cacoete: “Pois bem, haveria alguém acima <strong>de</strong>sse governante que é o chefe do Po<strong>de</strong>r Executivo?(...) Mas, se não existe alguém, existe algo. Esse algo superior aos próprios governantes é aConstituição. Com efeito, a Constituição governa quem governa. Governa <strong>de</strong> modo permanente quemgoverna <strong>de</strong> modo transitório. (...) Para além <strong>de</strong> se traduzir na Lei Fundamental <strong>de</strong> todo o povobrasileiro, ela é a Lei Fundamental <strong>de</strong> toda a nação brasileira. Sabido que a nação, por ser a linhainvisível que faz a costura da unida<strong>de</strong> entre o passado, o presente e o futuro, é instituição que tantoengloba o povo <strong>de</strong> hoje como o povo <strong>de</strong> ontem e o povo <strong>de</strong> amanhã” (Carlos Ayres Britto, “Quemgoverna quem governa?”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, p. 3, 07/01/2007).559 James Bradley Thayer mostra esse problema: “No doubt our doctrine of constitutional law has had aten<strong>de</strong>ncy to drive out questions of justice and right, and to fill the minds of legislators with thoughts ofmere legality, of what the constitution allows. And moreover, even in the matter of legality, they havefelt little responsibility; if we are wrong, they say, the court will correct it” (cf. “The Origin and Scopeof the American Doctrine of Constitutional Law”, p. 156).230


sequer a Constituição assegurou ao tribunal tais atribuições. AoSupremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, no entanto, cabe a última palavra. Daía sua enorme responsabilida<strong>de</strong>. 560 (grifos meus)Em entrevista, Vilhena também <strong>de</strong>clarou:Eu diria que o Supremo tem possivelmente a última palavra emtodos os temas quentes da pauta política brasileira. Na Reforma daPrevidência, quem <strong>de</strong>u a última palavra não foi o Congresso. Foio STF dizendo que é constitucional. Quem dará a última palavrasobre o <strong>de</strong>sarmamento sequer será o plebiscito. Será o Supremoque irá dizer se ter ou não arma <strong>de</strong> fogo é um direito. Quem dará aúltima palavra sobre o aborto, provavelmente será o Supremo.Sem dúvida nenhuma, o Supremo hoje tem um papelincomparável na história brasileira, <strong>de</strong> profundo <strong>de</strong>staque, umaarena <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão política muito forte. 561 (grifos meus)O Ministro Celso <strong>de</strong> Mello já enfatizou em passagens <strong>de</strong> julgamentos que oSTF tem o “monopólio da última palavra” sobre temas constitucionais. 562 Com muitafreqüência, especialmente no voto <strong>de</strong> alguns ministros, anuncia-se espalhafatosamentea supremacia do STF.Recorro novamente à idéia <strong>de</strong> erro e acerto para explorar um pouco mais asimplicações <strong>de</strong>ssa atitu<strong>de</strong>. A tabela abaixo mostra quatro cenários, supondo apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliarmos o erro e o acerto judicial e legislativo (possibilida<strong>de</strong> sema qual teorias canônicas da revisão judicial seriam ainda menos plausíveis). Nocenário 1, o legislador acerta ao produzir uma lei constitucional, e o STF acerta aoreconhecer a constitucionalida<strong>de</strong> da lei. No cenário 2, o legislador erra ao produziruma lei inconstitucional e o STF acerta <strong>de</strong>clarando a sua inconstitucionalida<strong>de</strong>. Nocenário 3, o STF erra ao <strong>de</strong>clarar a inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma lei que seriaconstitucional. No cenário 4, por fim, o legislador erra ao editar uma leiinconstitucional e o STF erra ao aceitar a lei inconstitucional.560 Cf. Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral – Jurisprudência Política, p. 233.561 Consultor Jurídico, dia 23 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2005.562 Cf., p. ex., Agravo <strong>de</strong> Regimental em Recurso Extraordinário nº. 249.363/RS. Numa entrevista <strong>de</strong>jornal, Celso <strong>de</strong> Mello também <strong>de</strong>clarou: “Não há nenhum tribunal superior ao Supremo TribunalFe<strong>de</strong>ral. Trata-se da Corte suprema em matéria <strong>de</strong> jurisdição constitucional. Quem tem o monopólio daúltima palavra é o Supremo e ninguém mais” (Felipe Recondo e Luciana Nunes Leal, “Ministro criticaproposta <strong>de</strong> anistia”, Estado <strong>de</strong> São Paulo, 05/10/07, p. A5).231


Passo 2STF acertaSTF erraPasso 1Legislador acerta 1 3Legislador erra 2 4A “cultura do guardião entrincheirado”, se não peca pela presunção dainfalibilida<strong>de</strong> judicial, subestima a possibilida<strong>de</strong> e os efeitos do erro judicial. Nessesentido, o constitucionalista tem dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apresentar saídas para os cenários 3 e4, nos quais o STF erra e o legislador, em princípio, teria a legitimida<strong>de</strong> para enfrentálo.Ao prevalecer a noção <strong>de</strong> “última palavra” do juiz e a passivida<strong>de</strong> do legislador emfunção <strong>de</strong>ssa última palavra, <strong>de</strong>squalifica-se a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar uma <strong>de</strong>cisãojudicial por meio <strong>de</strong> uma nova lei.O diagnóstico é plausível: a cultura constitucional brasileira, razoavelmentemajoritária, vê no STF a autorida<strong>de</strong> última e monopolística para revelar o significadoda constituição. E isso <strong>de</strong>sestimula, ao mesmo tempo em que protege e isenta, olegislador <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar o judiciário com novos argumentos. 563 Dentro <strong>de</strong>sse esquema <strong>de</strong>pensamento, se o STF <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, o jogo acabou. Dificilmente se percebe tal <strong>de</strong>cisãocomo apenas um evento <strong>de</strong> uma corrente, um estágio <strong>de</strong> um processo.3. STF e Congresso Nacional: agendas passivas e ativasO STF e o Congresso Nacional possuem agendas ativas e passivas, pautassobre as quais estão mobilizados na busca <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão, e outras em relação àsquais lhes falta disposição institucional para <strong>de</strong>cidir. Tal como a percepção da“provisorieda<strong>de</strong> da última palavra”, essa é mais uma constatação óbvia sobre umelemento inerente a qualquer agência individual ou coletiva. Suas implicações,contudo, não são triviais: a compreensão da interação entre as instituições e aavaliação <strong>de</strong> sua respectiva legitimida<strong>de</strong> requer que se consi<strong>de</strong>re não apenas o queelas fazem, mas também o que <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> fazer.563 Paul Brest também <strong>de</strong>senvolve argumento na mesma linha: “If the judges exercise a monopoly overconstitutional <strong>de</strong>cisionmaking, then other citizens and their representatives are exclu<strong>de</strong>d fromparticipating in what are among the polity’s most fundamental questions” (cf. “ConstitutionalCitizenship”).232


Defendi, no capítulo anterior, que a corte <strong>de</strong>ve modular o exercício <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>sativas e passivas <strong>de</strong> forma pru<strong>de</strong>nte, tendo em vista, sempre, as ações ou omissões dolegislador e, sobretudo, a qualida<strong>de</strong> do argumento dos dois lados. Ações e omissõesjudiciais, portanto, não são legítimas ou ilegítimas per se, mas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do contexto(e, mais especificamente, da respectiva postura do legislador). Neste tópico, pretendoconstruir uma estrutura analítica um pouco mais refinada para categorizar cenários <strong>de</strong>diálogo. A elucidação <strong>de</strong>ssas categorias nos permite ter, em cada contexto particular,um melhor diagnóstico sobre o ritmo e a qualida<strong>de</strong> do diálogo. A partir <strong>de</strong>ssediagnóstico, po<strong>de</strong>mos vislumbrar estratégias <strong>de</strong> ação que possam estimular padrões <strong>de</strong>interação mais próximos do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>liberativo.Todo processo constitucional tem, ao menos, quatro tipos <strong>de</strong> pauta. A primeiraé a pauta constitucional reprimida, em estado <strong>de</strong> latência. Esta é aparente no <strong>de</strong>batepúblico informal e reflete certa tensão social, mas não foi canalizada pelasinstituições. É um laboratório <strong>de</strong> interpretação constitucional sem repercussão formal.Não há, claramente, diálogo institucional, pois legislador e corte não conseguiram seracionados. A segunda é a pauta constitucional estabilizada. Esta reflete <strong>de</strong>cisões bemacomodadas, produtos <strong>de</strong> rodadas <strong>de</strong>liberativas anteriores. Neste caso, houve algumgrau <strong>de</strong> interação no passado, mas o diálogo se encerrou porque legislador e cortealcançaram algum tipo <strong>de</strong> acordo. O status quo, nesse caso, é fruto <strong>de</strong> uma sucessão<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões conscientes. A terceira é a pauta constitucional congelada, em estado <strong>de</strong>espera. Diz respeito a temas já provocados, mas aguardando <strong>de</strong>cisão, seja na corte,seja no parlamento. Por fim, há também uma pauta constitucional aquecida. Refere-seaos temas que permanecem acesos na or<strong>de</strong>m do dia, que não se estabilizam apesar <strong>de</strong>diversas rodadas <strong>de</strong>liberativas.Obviamente, essas não são categorias estanques. Há transitivida<strong>de</strong> entre elas:alguns temas da pauta reprimida po<strong>de</strong>m caminhar para a aquecida, congelar-se por umtempo, e, eventualmente, estabilizar-se. E assim por diante, via outras combinações.Um processo político i<strong>de</strong>al, aos mol<strong>de</strong>s do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>liberativo traçado anteriormente,<strong>de</strong>ve oscilar entre pautas aquecidas e estabilizadas. Pautas reprimidas e congeladasrevelam, quase sempre, patologias institucionais que merecem ser atacadas. Deixemos233


as reprimidas <strong>de</strong> lado, pois escapam ao âmbito da tese, e nos concentremos nascongeladas para i<strong>de</strong>ntificarmos modos <strong>de</strong> convertê-las em aquecidas.As pautas aquecidas e congeladas apresentam situações mais visíveis <strong>de</strong>diálogo institucional. A partir da consi<strong>de</strong>ração do ativismo e da inércia <strong>de</strong> corte eparlamento, alguns <strong>de</strong>sdobramentos são possíveis. Em relação à pauta constitucionalaquecida, é <strong>de</strong> se esperar a coexistência <strong>de</strong> ativismo legislativo e judicial até que,eventualmente, essas tensões se estabilizem (como, por exemplo, por meio <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>cisão judicial que reconhece a constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ato legislativo). Seria,provavelmente, a situação i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> diálogo institucional (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que com alto<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo <strong>de</strong> ambos os lados). Essa pauta aquecida, alimentada porativismo dos dois lados, po<strong>de</strong>, no entanto, esfriar em virtu<strong>de</strong> da inércia <strong>de</strong> alguma<strong>de</strong>ssas instituições. Passa-se ao estado <strong>de</strong> espera. Do cruzamento <strong>de</strong>ssas variáveis,po<strong>de</strong>-se montar o seguinte quadro:ParlamentoAtivismoInérciaCorteAtivismo 1 2Inércia 3 4Inércia, aqui, não <strong>de</strong>ve ser confundida com a inação absoluta presente numapauta constitucional reprimida. 564 Neste último caso, as instituições sequer foramprovocadas. Nos casos <strong>de</strong> inércia, as instituições foram acionadas, mas não semanifestam. A inércia legislativa correspon<strong>de</strong> à situação em que, apesar <strong>de</strong> exigênciasconstitucionais em <strong>de</strong>terminado tema (às vezes explícitas no texto constitucional,outras vezes construídas pelo <strong>de</strong>bate público 565 ), o legislador não se manifestou, ou semanifestou <strong>de</strong> modo insuficiente. Na inércia judicial, a corte recebe o caso, mas564 A <strong>de</strong>finição da fronteira entre “inércia” e “ativismo” é sutil e freqüentemente controversa.Depen<strong>de</strong>rá do lapso temporal que estipulamos para que a falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> uma instituição passe a serconsi<strong>de</strong>rada como inércia. Para a ocorrência <strong>de</strong> “inércia”, provavelmente, será ao menos necessário quehaja expirado um prazo regular pelo qual uma lei ou uma <strong>de</strong>cisão judicial costumam produzidas.565 Este seria um conceito mais ambicioso <strong>de</strong> “omissão legislativa”. Esta não ocorreria apenas emsituações em que a constituição exige explicitamente regulamentação legislativa e o parlamento nadafaz, mas po<strong>de</strong> <strong>de</strong>rivar <strong>de</strong> novas interpretações do texto constitucional, exigindo mudança <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisõeslegislativas passadas.234


simplesmente “engaveta”. 566 Da tabela emergem, portanto, quatro dinâmicasinterativas. 567 A pauta está acesa no cenário 1, e está congelada (mas nãoestabilizada), em alguma medida, nos outros três.Como fazer para que a pauta constitucional congelada se converta em pautaconstitucional aquecida? Em outras palavras, como transformar inércia, legislativa oujudicial, em ativismo? A constituição brasileira prevê mecanismos para o controle daomissão legislativa, com potencial importante e pouco reconhecido para a promoçãodo diálogo. Refiro-me aos conhecidos instrumentos do mandado <strong>de</strong> injunção e daação direta <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> por omissão. Esses instrumentos, apesar <strong>de</strong>timidamente usados nos primeiros 15 anos da Constituição <strong>de</strong> 1988, começaramrecentemente a ser reconfigurados, como veremos num exemplo no próximo tópico.E como controlar a omissão do STF? Essa parece ser uma perguntaininteligível. A idéia <strong>de</strong> omissão judicial é incoerente com princípios do estado <strong>de</strong>direito evocados em prosa e verso. Em teoria, ao tribunal não está aberta apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não <strong>de</strong>cidir (non liquet). Às vezes, é verda<strong>de</strong>, evita-se <strong>de</strong>cidir omérito por meio <strong>de</strong> alguma questão processual preliminar. Nesse caso, bem ou mal, há<strong>de</strong>cisão. Mas me refiro à hipótese <strong>de</strong> omissão no mérito. É preciso lançar luzes sobretal agenda passiva do STF, sobre aquilo que, <strong>de</strong> modo estratégico e informal, <strong>de</strong>cidiunão <strong>de</strong>cidir, ou mesmo esperar, in<strong>de</strong>finidamente, à margem <strong>de</strong> qualquer prestação <strong>de</strong>contas.Há mecanismos muito claros <strong>de</strong>ssa prática. Os três principais são: a <strong>de</strong>finiçãoda pauta <strong>de</strong> julgamento; 568 o voto-vista; 569 e a <strong>de</strong>cisão liminar em medida cautelar. 570566 A inércia judicial a que me refiro não correspon<strong>de</strong> ao princípio geral <strong>de</strong> que o judiciário não po<strong>de</strong>agir <strong>de</strong> ofício, mas somente sob provocação. Dirijo-me à hipótese em que o judiciário é provocado e seutiliza <strong>de</strong> artifícios para não <strong>de</strong>cidir.567 Esses cenários lembram os cogitados no capítulo 7 para justificar a atuação da corte. Lá, porém,inseri também a variável do <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo. Nessa tabela, tal variável está ausente porquenão <strong>de</strong>senvolvemos o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo no <strong>de</strong>talhe para que fosse possível aplica-loaos casos exemplificativos abaixo. Nessa tabela, portanto, ativismo é assumido como simples prática<strong>de</strong> produzir <strong>de</strong>cisões (in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>liberativo), e a inércia como ausência <strong>de</strong><strong>de</strong>cisão.568 Po<strong>de</strong>r que se concentra nas mãos do presi<strong>de</strong>nte do tribunal, e que se <strong>de</strong>fine por critériosdiscricionários nem sempre relacionados à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> chegada dos casos.569 À livre disposição <strong>de</strong> qualquer ministro da corte, que po<strong>de</strong> interromper um julgamento colegiadosob o pretexto <strong>de</strong> querer refletir mais sobre o assunto (curiosamente, sem sequer ouvir o que os outrosministros teriam a dizer). Trata-se <strong>de</strong> um completo vácuo normativo do tribunal. Apesar <strong>de</strong> seu235


São formas <strong>de</strong> adiar, esperar, jogar para um futuro incerto. São manifestações doguardião acanhado.Usar o tempo como variável <strong>de</strong>cisória é necessário, apesar <strong>de</strong> as técnicastradicionais <strong>de</strong> interpretação não darem conta <strong>de</strong>ssa dimensão. O STF tem diversastécnicas para lidar com o tempo. 571 - 572 As três enumeradas acima são formas poucolegítimas <strong>de</strong> fazê-lo. Raramente são usadas para, aos mol<strong>de</strong>s das virtu<strong>de</strong>s passivas <strong>de</strong>Bickel, <strong>de</strong>ixar que o <strong>de</strong>bate público ganhe efervescência e, no momento maduro,<strong>de</strong>cidir. Ou, nas palavras <strong>de</strong> Sunstein, promover um “uso construtivo do silêncio”.Mais freqüentemente, são formas sub-reptícias <strong>de</strong> adiar ou escon<strong>de</strong>r o conflito,esperar que ele se resolva por outros meios. Tal prática seria mais fielmente <strong>de</strong>signadacomo “vício passivo”, um modo não <strong>de</strong>liberativo <strong>de</strong> evitar o problema e congelar apauta constitucional. Abdica-se da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir do modo menosruidoso possível.Esses três “vícios passivos” são livremente exercidos por qualquer ministro,individualmente. O Ministro Marco Aurélio Mello, em seguida ao término doregimento interno prever prazos, os usos e costumes tornaram vazia essa regra, e atualmente, não sãoraros os casos que ficam “na gaveta” por períodos entre cinco a <strong>de</strong>z anos.570 Decisão <strong>de</strong> caráter monocrático que, supostamente, tem caráter provisório, mas que, com maiorfreqüência, satisfaz a <strong>de</strong>manda imediata. Há uma quantida<strong>de</strong> significativa <strong>de</strong> processos em que, após a<strong>de</strong>cisão liminar, o tribunal esperou até o legislador se manifestar a respeito, fazendo com que a açãoper<strong>de</strong>sse o objeto e nunca fosse julgada no mérito. Três interessantes estudos sobre o uso estratégico <strong>de</strong>medidas liminares e a modulação temporal foram feitos por alunos da Escola <strong>de</strong> Formação da SBDP:Pedro Luiz do Nascimento Filho (“Medida cautelar em ação direta <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong>”), PauloCésar Amorim Alves (“O tempo como ferramenta <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão no STF”), e Veridiana Alimonti (“Ocontrole <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> das privatizações: O contexto político e o tempo nos votos do SupremoTribunal Fe<strong>de</strong>ral”). Cf. http://www.sbdp.org.br/monografia.php571 Técnicas <strong>de</strong> interpretação que reconhecem a “mutação constitucional”, por exemplo, permitemconsi<strong>de</strong>rar que leis estejam “a caminho da inconstitucionalida<strong>de</strong>”. Hoje, em ações diretas <strong>de</strong>inconstitucionalida<strong>de</strong>, o STF po<strong>de</strong> modular os efeitos da <strong>de</strong>cisão (se ela será retroativa, se valerásomente a partir da <strong>de</strong>cisão, ou ainda num momento futuro). Em ações por omissão do executivo, po<strong>de</strong>estabelecer um prazo para que ele <strong>de</strong>cida, sob pena <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir por si mesmo. Interessante é também aestratégia do “julgamento a conta-gotas”, por meio do qual o STF, mesmo tendo uma jurisprudênciapacífica, prefere adiar a <strong>de</strong>cisão final (cf., sobre essa última, o Informativo n. 19, <strong>de</strong> 15/04/2008, daSocieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Direito Público: www.sbdp.org.br).572 A modulação dos efeitos temporais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão, permitida pela Lei 9868, é um exercício claro<strong>de</strong> prudência (que <strong>de</strong>nota algo semelhante a ‘conseqüencialismo’, a consi<strong>de</strong>ração do impacto e daeficácia, sem a conotação eminentemente econômica pela qual aquele termo é utilizado no <strong>de</strong>bate sobreadjudicação). Sobre esta técnica, Gilmar Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong>clarou: “A amplitu<strong>de</strong> da jurisdição constitucionalbrasileira – talvez a mais ampla do mundo – com tantas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> provocação, torna quaseinevitável a modulação <strong>de</strong> efeitos, sob pena <strong>de</strong> a toda hora nós po<strong>de</strong>rmos produzir impassesinstitucionais” (cf. Cristine Preste, “Uma Revolução Silenciosa no Supremo”, Valor Econômico,18/10/2007).236


julgamento do caso das células-tronco, 573 <strong>de</strong>u um bom exemplo <strong>de</strong>ssa distorção.Decidiu recolocar em pauta, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma espera <strong>de</strong> 4 anos, o julgamento daconstitucionalida<strong>de</strong> do aborto <strong>de</strong> fetos anencéfalos. Declarou: “Foi uma <strong>de</strong>cisãorefletida. Perguntei a mim mesmo: Devo tocar o processo? Para quê? Para queimaruma matéria <strong>de</strong> tão alta relevância? Não. Agora, creio que o Supremo já está maduropara tratar da matéria. Já temos clima para julgar e, creio, autorizar a interrupção dagravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> anencéfalos”. 574 Como <strong>de</strong>clarou Josias <strong>de</strong> Souza, “sentindo o cheiro <strong>de</strong>queimado, Marco Aurélio achou melhor dar refúgio à causa em sua gaveta”. 575 Maistar<strong>de</strong>, avaliando a maturida<strong>de</strong> do tribunal, resolveu retomar a causa.Estamos ainda num vácuo teórico para perceber o fenômeno da maturaçãotemporal, algo que oriente o inevitável juízo <strong>de</strong> ocasião (do “momento certo”) eestabeleça critérios e procedimentos para tanto. Ministros tomam essas <strong>de</strong>cisões semnenhum escrutínio público, ou sequer uma <strong>de</strong>liberação colegiada no tribunal.Voltando à pergunta: como controlar a inércia do STF? Não há,aparentemente, instrumentos formais para tanto. O caso das células-tronco, todavia,mostrou que a pressão pública difusa po<strong>de</strong> surtir algum efeito. A primeira sessão <strong>de</strong>julgamento <strong>de</strong>sse caso foi realizada no dia 5 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008, e foi interrompida,com pedido <strong>de</strong> vista do Min. Menezes Direito, logo após o voto do relator, Min.Carlos Britto. O julgamento somente foi reiniciado no dia 28 <strong>de</strong> maio, e nesseintervalo <strong>de</strong> quase três meses <strong>de</strong> “reflexão individual” o Min. Direito foi publicamentecobrado em inúmeras manifestações na mídia. Talvez esse seja um típico caso <strong>de</strong> “altasaliência”, que não permite ao STF exercitar vícios passivos impunemente. Outroscasos fora da agenda pública prioritária, contudo, po<strong>de</strong>m indicar um sério problemainstitucional a ser enfrentado.4. Episódios <strong>de</strong> diálogoQual o padrão do diálogo no Brasil? Que tipo <strong>de</strong> diálogo po<strong>de</strong> ser verificadona interação entre legislador e STF? Os últimos anos produziram alguns casos573 ADI n. 3510, <strong>de</strong> 2005, julgada entre os meses <strong>de</strong> março e maio <strong>de</strong> 2008.574 O Min. Marco Aurélio certamente não é o único a adotar essa prática. Muitos outros ministros senotabilizaram por serem “engavetadores” crônicos do STF.575 Cf. “STF julgará interrupção da gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> anencéfalo”, Blog Josias <strong>de</strong> Souza, 29/05/2008.237


ilustrativos. Entre outras coisas, eles mostram que o legislador, ordinário ouconstituinte, reage ao STF com freqüência.Fiz uma seleção exemplificativa <strong>de</strong> alguns episódios legislativos e judiciais dodiálogo. Selecionei: 1) a reforma da previdência e tributação dos inativos; 2) areforma do judiciário e o Conselho Nacional <strong>de</strong> Justiça; 3) a reforma administrativa;4) a cláusula <strong>de</strong> barreira; 5) a licença-maternida<strong>de</strong>; 6) o direito <strong>de</strong> greve; 7) afi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> partidária.1) A reforma da previdência e tributação dos inativosA ADI n. 2.016, ajuizada por PT, PDT, PSB e PC do B, impugnoudispositivos da Lei n. 9.783/99. Esta ação foi julgada juntamente com a ADI-MC n.2.010, proposta pela OAB, pois tratava da mesma matéria. O STF suspen<strong>de</strong>u,liminarmente, a cobrança <strong>de</strong> contribuição previ<strong>de</strong>nciária dos servidores inativos epensionistas, estabelecida na lei.O tribunal enten<strong>de</strong>u que, apesar das mudanças introduzidas pela EmendaConstitucional n. 20, <strong>de</strong> 1998, a Constituição não autorizava a criação <strong>de</strong> contribuiçãodos aposentados e pensionistas da União. Com base em informações do processolegislativo, o STF afirmou que “o Congresso Nacional absteve-se, conscientemente,no contexto da reforma do mo<strong>de</strong>lo previ<strong>de</strong>nciário, <strong>de</strong> fixar a necessária matrizconstitucional, cuja instituição se revelava indispensável para legitimar, em basesválidas, a criação e a incidência <strong>de</strong>ssa exação tributária sobre o valor dasaposentadorias e das pensões. O regime <strong>de</strong> previdência <strong>de</strong> caráter contributivo, a quese refere o art. 40, caput, da Constituição, na redação dada pela EC nº 20/98, foiinstituído, unicamente, em relação ‘aos servidores titulares <strong>de</strong> cargos efetivos...’,inexistindo, <strong>de</strong>sse modo, qualquer possibilida<strong>de</strong> jurídico-constitucional <strong>de</strong> se atribuir,a inativos e a pensionistas da União, a condição <strong>de</strong> contribuintes da exação prevista naLei n. 9.783/99”.Posteriormente, o Governo Lula enviou proposta <strong>de</strong> emenda constitucional(PEC n. 40/2003) que, entre outras matérias, constitucionalizava a cobrança <strong>de</strong>contribuição previ<strong>de</strong>nciária <strong>de</strong> inativos e pensionistas. No parecer aprovado pela238


Comissão <strong>de</strong> Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, <strong>de</strong> autoria doDeputado Maurício Rands (PT-PE), há menção explícita à orientação do STF na ADI-MC n. 2.010: “O principal fundamento do voto do relator, Min. Celso <strong>de</strong> Mello, foi o<strong>de</strong> que a matriz constitucional vigente não estabelecia as bases para que a lei ordináriacriasse a exação tributária. Não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> reconhecer o STF naquela ocasião, todavia,que uma nova matriz constitucional po<strong>de</strong> colocar o problema em novas bases”. Oparecer lembrava ainda que a mesma <strong>de</strong>cisão do STF indicava que: “Se, em<strong>de</strong>terminado momento histórico, circunstâncias <strong>de</strong> fato ou <strong>de</strong> direito reclamarem aalteração da Constituição, em or<strong>de</strong>m a conferir-lhe um sentido <strong>de</strong> maiorcontemporaneida<strong>de</strong>, para ajustá-la, <strong>de</strong>sse modo, às novas exigências ditadas pornecessida<strong>de</strong>s políticas, sociais ou econômicas, impor-se-á a prévia modificação dotexto da Lei Fundamental, com estrita observância das limitações e do processo <strong>de</strong>reforma estabelecidos na própria Carta Política.”Assim, o relator do parecer da CCJ propôs emenda que incluiu no art. 40 apalavra “solidário” e o trecho “inclusive mediante contribuição dos servidoresinativos e pensionistas”, <strong>de</strong> modo a <strong>de</strong>ixar mais claro que a mudança constitucionalintroduzia uma nova matriz constitucional no tratamento do regime previ<strong>de</strong>nciário dosservidores, aten<strong>de</strong>ndo à orientação do STF. Promulgada a EC nº. 41, <strong>de</strong> 2003, aAssociação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) ingressou coma ADI n. 3.105, pedindo a <strong>de</strong>claração da inconstitucionalida<strong>de</strong> da contribuiçãoprevi<strong>de</strong>nciária dos inativos. Por maioria <strong>de</strong> votos (7x4), o STF julgou constitucionalessa contribuição, ratificando o entendimento do Congresso Nacional, ao afirmar:“não há, em nosso or<strong>de</strong>namento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeitoespecífico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos e as pensões,<strong>de</strong> modo absoluto, à tributação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m constitucional, qualquer que seja amodalida<strong>de</strong> do tributo eleito, don<strong>de</strong> não haver, a respeito, direito adquirido com oaposentamento”.Este episódio exemplifica exatamente o “caminho com quatro fases” dodiálogo <strong>de</strong>senhado pela Constituição brasileira, tendo, aparentemente, estabilizado apauta constitucional com uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> pelo STF.2) A reforma do judiciário e o Conselho Nacional <strong>de</strong> Justiça239


Houve cinco ADI contra a criação <strong>de</strong> Conselhos Estaduais <strong>de</strong> Justiça, 576 mas<strong>de</strong>screvo apenas duas, que bastam para ilustrar o caso. Na ADI n. 135-5/PB, aAssociação dos Magistrados Brasileiros (AMB) impugnou o artigo 147 daConstituição do Estado da Paraíba, que criava o Conselho Estadual <strong>de</strong> Justiça,supostamente em <strong>de</strong>sconformida<strong>de</strong> com o artigo 2º da Constituição Fe<strong>de</strong>ral(<strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res), e com alguns <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sdobramentos (arts. 96, 99 e 168).O Conselho Estadual <strong>de</strong> Justiça da Paraíba era composto por membros dopróprio judiciário, do po<strong>de</strong>r legislativo, do ministério público e <strong>de</strong> uma entida<strong>de</strong>autônoma. O STF <strong>de</strong>clarou sua inconstitucionalida<strong>de</strong> sob fundamento da violação doprincípio da <strong>separação</strong> dos po<strong>de</strong>res, dada a existência <strong>de</strong> membros <strong>de</strong> outros po<strong>de</strong>resna composição do referido Conselho, o que po<strong>de</strong>ria representar uma forma <strong>de</strong>reprimir a in<strong>de</strong>pendência da magistratura. Segundo o ministro relator:Do exercício dos po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> fiscalização da ativida<strong>de</strong>administrativa e do <strong>de</strong>sempenho dos <strong>de</strong>veres funcionais doPo<strong>de</strong>r Judiciário estadual, outorgados, sem reserva, pelaConstituição da Paraíba, afigura-se indissociável (...),alguma parcela <strong>de</strong> ingerência e <strong>de</strong> iminência repressiva doColegiado estranho ao Judiciário, a que se preten<strong>de</strong>incumbir <strong>de</strong>ssas tarefas, em <strong>de</strong>trimento da integrida<strong>de</strong> dagarantia <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência da magistratura. 577A ADI n.183-3, do Mato Grosso, por sua vez, teve como requerente oProcurador-Geral da República. Novamente, o argumento contra o Conselho Estadual<strong>de</strong> Justiça do Mato Grosso foi o princípio da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Este Conselhoapresentava composição ainda mais heterogênea do que o primeiro. 578 Tais artigosforam <strong>de</strong>clarados inconstitucionais na mesma linha do caso anterior, pois seconsi<strong>de</strong>rou que o Conselho, em razão <strong>de</strong> sua composição, era um órgão <strong>de</strong> controleexterno ao Po<strong>de</strong>r Judiciário, o que feriria a sua in<strong>de</strong>pendência:576 Relativas aos Conselhos <strong>de</strong> Justiça dos Estados da Paraíba, Mato Grosso, Sergipe, Ceará e Pará.577 ADI 135-3/PB, Relator Min. Octavio Gallotti, 21.11.1996, p. 26578 Conforme previa o artigo 121 da Constituição mato-grossense, seriam membros: o Presi<strong>de</strong>nte doTribunal <strong>de</strong> Justiça, o Corregedor- Geral da Justiça, um representante da Assembléia Legislativa doEstado, o Presi<strong>de</strong>nte da OAB, Seção do Mato Grosso, o Procurador- Geral <strong>de</strong> Justiça, o Procurador-Geral do Estado, o Procurador- Geral da Defensoria Pública, o Secretário <strong>de</strong> Justiça, um Juiz <strong>de</strong>Direito, um Promotor, um Advogado, um Defensor Público, um Procurador <strong>de</strong> Estado e umserventuário da Justiça.240


Note-se que no caso vertente, <strong>de</strong> Mato Grosso, essaintromissão é muito mais funda que no da Paraíba, (...):neste – afora o Presi<strong>de</strong>nte da OAB, a cuja presença a<strong>de</strong>finição constitucional da advocacia como funçãoessencial à Justiça dá conotação especial –, o Executivo sóestaria representado pelo Procurador- Geral do Estado e oLegislativo, por um representante da AssembléiaLegislativa: na Constituição do Mato Grosso, além <strong>de</strong> doisDesembargadores e um Juiz e afora o Presi<strong>de</strong>nte da seçãoda OAB e um outro advogado, do chefe do Ministériopúblico e um outro Promotor, do da Defensoria Pública eum outro Defensor –, o Legislativo teria o Vice-Presi<strong>de</strong>nteda Assembléia e o Executivo, o Vice-Governador, oProcurador- Geral do Estado e outro Procurador, e oSecretário <strong>de</strong> Justiça (...); para completar tudo isso, umserventuário da Justiça. 579Os conselhos estaduais <strong>de</strong> justiça, portanto, foram julgados inconstitucionaiscom base no princípio da <strong>separação</strong> dos po<strong>de</strong>res. Consi<strong>de</strong>rou-se, em virtu<strong>de</strong> dacomposição dos conselhos, que os outros po<strong>de</strong>res estariam interferindo na autonomiado Judiciário. O entendimento <strong>de</strong> que a criação <strong>de</strong> conselhos estaduais <strong>de</strong> “controleexterno” dos órgãos judiciários é inconstitucional consolidou-se na Súmula 649 doSTF:É inconstitucional a criação, por Constituição Estadual, <strong>de</strong>órgão <strong>de</strong> controle administrativo do Po<strong>de</strong>r Judiciário doqual participem representantes <strong>de</strong> outros Po<strong>de</strong>res ouentida<strong>de</strong>s.Em 8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro 2004, foi editada a Emenda Constitucional nº. 45, queinstituiu, no artigo 103-A, o Conselho Nacional <strong>de</strong> Justiça (CNJ). Esse órgão éformado por nove magistrados (<strong>de</strong> diferentes tribunais), dois membros do MinistérioPúblico, dois advogados e dois cidadãos. As atribuições conferidas ao Conselho pelaEC nº. 45/2004 são: (i) o controle da ativida<strong>de</strong> administrativa e financeira doJudiciário; e (ii) o controle disciplinar <strong>de</strong> seus membros.Na ADI n. 3.367, proposta pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB),o Supremo <strong>de</strong>clarou constitucional os dispositivos referentes à criação e disciplina doConselho Nacional <strong>de</strong> Justiça. Enten<strong>de</strong>u o Ministro Cezar Peluso que se trata <strong>de</strong> um579 ADI 183-3/MT, Relator Min. Sepúlveda Pertence, 07.08.1997, p. 25.241


órgão interno 580 <strong>de</strong> controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura e,por isso, não haveria ofensa ao princípio da <strong>separação</strong> dos po<strong>de</strong>res, tendo em vista apreservação da função típica do Judiciário – a função jurisdicional – e das condiçõesmateriais do seu exercício imparcial e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.O voto do ministro relator argumenta pela inaplicabilida<strong>de</strong> dos prece<strong>de</strong>ntes doSTF apontados acima. Em primeiro lugar, salientou que os conselhos criados pelosvários estados seriam “autênticos órgãos externos ao Po<strong>de</strong>r Judiciário”, porquenenhuma <strong>de</strong> suas composições tinha presença majoritária <strong>de</strong> membros pertencentes àsmagistraturas estaduais. Nesses conselhos, a presença <strong>de</strong> membros originais doLegislativo estadual representaria forma <strong>de</strong> interferência direta <strong>de</strong> outro po<strong>de</strong>r. Comoa composição do CNJ teria três quintos <strong>de</strong> magistrados, seria um órgão <strong>de</strong> controleinterno, conduzido pelo próprio Judiciário.Mais importante, porém, do ponto <strong>de</strong> vista do diálogo, a <strong>de</strong>cisão salientou queo Po<strong>de</strong>r Judiciário é nacional, não tendo os Estados-membros a “competênciaconstitucional para instituir conselhos, internos ou externos, <strong>de</strong>stinados a controle <strong>de</strong>ativida<strong>de</strong> administrativa, financeira ou disciplinar das respectivas Justiças, porque aautonomia necessária para fazê-lo seria incompatível com o regime jurídicoconstitucionaldo Po<strong>de</strong>r Judiciário, cuja unida<strong>de</strong> reflete a da soberania nacional” 581 . Oeventual po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> conselho estadual violaria a Constituição Fe<strong>de</strong>ral porquelhe <strong>de</strong>sfiguraria o regime unitário.Em síntese, o princípio da <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, conforme entendido pelo STFnas primeiras ADI, impedia a existência <strong>de</strong> controle externo (entendido como órgãocomposto por uma maioria <strong>de</strong> membros não pertencentes ao judiciário). O legisladorfe<strong>de</strong>ral optou, ao criar o CNJ, pela via da emenda constitucional para tentar superar aconcepção <strong>de</strong> <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res que o STF solidificou em <strong>de</strong>cisões anteriores.580 Nesse sentido, afirma o Ministro relator Cezar Peluso: “Sob o prisma constitucional brasileiro dosistema da <strong>separação</strong> dos Po<strong>de</strong>res, não se vê a priori como possa ofendê-lo a criação do ConselhoNacional <strong>de</strong> Justiça. À luz da estrutura que lhe <strong>de</strong>u a Emenda Constitucional nº 45/2004, trata-se <strong>de</strong>órgão próprio do Po<strong>de</strong>r Judiciário (art. 92, I-A), composto, na maioria, por membros <strong>de</strong>sse mesmoPo<strong>de</strong>r (art. 103-B), nomeados sem interferência direta dos outros Po<strong>de</strong>res, dos quais o Legislativoapenas indica, fora <strong>de</strong> seus quadros e, pois, sem laivos <strong>de</strong> representação orgânica, dois dos quinzemembros”.581 ADI nº. 3367/DF, página 53.242


3) A reforma administrativaNa ADI n. 14 e no Recurso Extraordinário n. 141.788-9/CE, o STF <strong>de</strong>cidiupela não inclusão das vantagens pessoais na remuneração do servidor público, aindaque a redação originária do artigo 37, XI, se referisse à remuneração “a qualquertítulo”. Destaca-se passagem do voto do Ministro Néri da Silveira, na ADI n. 14:Compreendido, <strong>de</strong>sse modo, o art. 39, §1º, 582 última parte daConstituição Fe<strong>de</strong>ral, em face d art. 37, inciso XI e do art.93, V, da mesma Lei Magna, força é concluir, efetivamente,que pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> o parágrafo 2º, do art.2º, da Lei nº. 7.721, <strong>de</strong> 06.01.1989, quando insere cláusulasegundo a qual as “vantagens pessoais (adicionais portempo <strong>de</strong> serviço)” se somam ao vencimento básico erepresentação para os efeitos da relação <strong>de</strong> equivalência oucorrespondência prevista no artigo 37, XI, da Constituição(...)Posteriormente, editou-se a Emenda Constitucional n. 19, <strong>de</strong> 1998, quemodificou dispositivos da Constituição referentes à administração pública e aoservidor público. Dentre as principais mudanças, <strong>de</strong>staca-se a alteração da redação doinciso XI do artigo 37, para explicitar, <strong>de</strong> modo a superar interpretação do STF, queno limite máximo <strong>de</strong> remuneração dos servidores públicos estavam incluídas asvantagens pessoais: “a remuneração e o subsídio dos ocupantes <strong>de</strong> cargos, (...),percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou <strong>de</strong> qualqueroutra natureza, não po<strong>de</strong>rão exce<strong>de</strong>r o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros doSupremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral”. 5834) A cláusula <strong>de</strong> barreiraA cláusula <strong>de</strong> barreira é um dispositivo da legislação eleitoral brasileira queexige <strong>de</strong> um partido político um número mínimo <strong>de</strong> 5% do total <strong>de</strong> votos para a582 O artigo 39, §1º, da Constituição <strong>de</strong> 1988, em sua redação original, dispunha que: § 1º - “A leiassegurará, aos servidores da administração direta, isonomia <strong>de</strong> vencimentos para cargos <strong>de</strong> atribuiçõesiguais ou assemelhados do mesmo Po<strong>de</strong>r ou entre servidores dos Po<strong>de</strong>res Executivo, Legislativo eJudiciário, ressalvadas as vantagens <strong>de</strong> caráter individual e as relativas à natureza ou ao local <strong>de</strong>trabalho”.583 Importante <strong>de</strong>stacar que esse dispositivo não está mais em vigor, pois foi alterado pela EmendaConstitucional nº. 41, <strong>de</strong> 2003.243


Câmara dos Deputados, a fim <strong>de</strong> que o partido tenha funcionamento parlamentar emqualquer casa legislativa em nível fe<strong>de</strong>ral, estadual ou municipal, e tenha direito auma distribuição maior do Fundo Partidário (99% dos recursos entre os partidos quealcançarem, e 1% entre os restantes) e do tempo da propaganda partidária <strong>de</strong> teordoutrinário. Tal cláusula está prevista no artigo 13 da Lei n. 9.096/95:Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas asCasas Legislativas para as quais tenha elegidorepresentante, o partido que, em cada eleição para a Câmarados Deputados obtenha o apoio <strong>de</strong>, no mínimo, cinco porcento dos votos apurados, não computados os brancos e osnulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados,com um mínimo <strong>de</strong> dois por cento do total <strong>de</strong> cada um<strong>de</strong>les.A cláusula <strong>de</strong> barreira, portanto, não impe<strong>de</strong> o partido <strong>de</strong> existir ou <strong>de</strong> elegerrepresentantes, mas impõe restrições à sua ativida<strong>de</strong>. O STF julgou proce<strong>de</strong>nte pedidoformulado nas ADI n. 1351 e 1354, que pediam a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong><strong>de</strong> alguns dispositivos da Lei n. 9.096/95, referentes à cláusula <strong>de</strong> barreira. Osdispositivos impugnados foram consi<strong>de</strong>rados inconstitucionais. Enten<strong>de</strong>u-se queviolavam o artigo 1º, V, que prevê como um dos fundamentos da República opluralismo político; o artigo 17, que estabelece ser livre a criação, fusão, incorporaçãoe extinção <strong>de</strong> partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime<strong>de</strong>mocrático, o pluripartidarismo, os direitos <strong>fundamentais</strong> da pessoa humana; e oartigo 58, §1º, que assegura, na constituição das mesas e das comissões permanentesou temporárias da Câmara dos Deputados e do Senado Fe<strong>de</strong>ral, a representaçãoproporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectivaCasa, todos da Constituição Fe<strong>de</strong>ral.O ministro relator Marco Aurélio ressaltou que “no Estado Democrático <strong>de</strong>Direito, a nenhuma maioria é dado tirar ou restringir os direitos e liberda<strong>de</strong>s<strong>fundamentais</strong> da minoria, tais como a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se expressar, <strong>de</strong> se organizar, <strong>de</strong><strong>de</strong>nunciar, <strong>de</strong> discordar e <strong>de</strong> se fazer representar nas <strong>de</strong>cisões que influem nos <strong>de</strong>stinosda socieda<strong>de</strong> como um todo, enfim, <strong>de</strong> participar plenamente da vida pública”.Dois meses <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>cisão do STF (<strong>de</strong> 07/12/2006), o Senador MarcoMaciel produziu uma Proposta <strong>de</strong> Emenda à Constituição (PEC), que prevê a volta da244


cláusula <strong>de</strong> barreira. No dia 28 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2007, a Comissão <strong>de</strong> Constituição eJustiça (CCJ) do Senado, em votação simbólica, aprovou a volta da chamada cláusula<strong>de</strong> barreira. 584A PEC nº. 02/2007 acrescenta um parágrafo ao art. 17 da Constituição, paraautorizar distinções entre partidos políticos com base no seu <strong>de</strong>sempenho eleitoral.Com isso, restringe a participação parlamentar dos partidos que não atingirem 5% dosvotos válidos para <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral em todo país, distribuídos em, pelo menos, noveEstados, com no mínimo 2% em casa. Uma justificativa da PEC nº. 02/2007 é o fato <strong>de</strong>a cláusula vigorar em muitos países com “rica história <strong>de</strong> proteção aos direitospolíticos”, como a Alemanha. Aponta que, com a referida medida, tais países buscaramreduzir o número <strong>de</strong> partidos, o que lhes pareceu necessário à governabilida<strong>de</strong>.Segundo o autor da PEC em questão, enten<strong>de</strong>-se “por <strong>de</strong>mais necessária a cláusula <strong>de</strong><strong>de</strong>sempenho, a exemplo <strong>de</strong> expressivos países que a adotam”. A PEC nº. 02/2007ainda tramita no Senado Fe<strong>de</strong>ral. Pelo fato <strong>de</strong> não ter sido ainda publicado o inteiroteor da <strong>de</strong>cisão do STF, ainda não é possível analisar com cuidado os argumentos.5) A licença-maternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mães adotivasA licença-maternida<strong>de</strong> está assegurada às gestantes no artigo 7°, XVIII, daConstituição: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais (...): XVIII - licença àgestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração <strong>de</strong> cento e vinte dias”.No Recurso Extraordinário n. 197.807/RS, a Primeira Turma do STF <strong>de</strong>cidiu,por unanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> votos, que as mães adotivas não teriam direito à licençamaternida<strong>de</strong><strong>de</strong> 120 dias assegurada às gestantes. Com base no artigo 7º, XVIII, daConstituição Fe<strong>de</strong>ral, o Ministro Relator Octávio Gallotti sustentou que o benefícionão podia ser estendido às mães adotivas por analogia, tendo em vista que o aludidodispositivo faz menção à licença-maternida<strong>de</strong> da gestante, o que se restringe à mãebiológica. Esse posicionamento foi seguido pelos <strong>de</strong>mais ministros da Turma 585 .584 O parecer nº. 91/2007 favorável à volta da cláusula <strong>de</strong> barreira foi publicado em 03/03/2007 noDSF, página(s): 3659 a 3673.585 Ministros Ilmar Galvão, Moreira Alves, Sepúlveda Pertence e Sydney Sanches.245


Esse julgamento, do dia 30 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2000, teve enorme repercussão. Forampropostos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então seis projetos <strong>de</strong> lei 586 dispondo sobre a concessão <strong>de</strong> licençamaternida<strong>de</strong>às mães adotivas (cada um com algumas variações relativas ao exercício<strong>de</strong>sse direito). Além dos projetos <strong>de</strong> lei, foi elaborada, em 4 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2000, aProposta <strong>de</strong> Emenda Constitucional n. 31 – <strong>de</strong> autoria da Senadora Maria do CarmoAlves (PFL-SE) – acrescentando o inciso XVIII-A ao artigo 7º, da Constituição, parabeneficiar as mães adotivas. O dispositivo tem a seguinte redação: Art.7º XVIII-A –licença-maternida<strong>de</strong>, nos termos da lei, sem prejuízo do emprego e do salário, (...), àmulher a quem for concedida a adoção <strong>de</strong> criança.A justificativa da PEC n. 31/2000, promulgada pelas Mesas da Câmara dosDeputados e do Senado Fe<strong>de</strong>ral, funda-se na proteção à maternida<strong>de</strong> e à infância,garantida em diversos dispositivos constitucionais. A <strong>de</strong>cisão do RE 197.807-RS,proferida pelo STF, é citada e criticada com base no argumento <strong>de</strong> que a Constituição,ao consi<strong>de</strong>rar como garantia fundamental a igualda<strong>de</strong>, sem distinção <strong>de</strong> qualquernatureza, não po<strong>de</strong> estabelecer norma discriminatória entre os filhos biológicos e osadotivos, assegurando somente àqueles o contato mais próximo com a mãe nosprimeiros meses junto à família.O texto original da PEC estipulava a concessão <strong>de</strong> licença-maternida<strong>de</strong> paramães adotivas, sendo trabalhadoras rurais ou urbanas. Na Comissão <strong>de</strong> Constituição eJustiça (CCJ) foi incluído o direito à licença-paternida<strong>de</strong>, por iniciativa <strong>de</strong> SenadorAloizio Mercadante (PT-SP), segundo Parecer nº. 1.861, publicado em 1° <strong>de</strong>novembro <strong>de</strong> 2005. Em 18/01/2006, a Proposta <strong>de</strong> Emenda foi aprovada em segundoturno no Senado Fe<strong>de</strong>ral e encaminhada à Câmara dos Deputados, on<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>05/01/2007, aguarda <strong>de</strong>cisão.6) “A concorrência ten<strong>de</strong> a pôr o Legislativo para trabalhar”: 587 o direito <strong>de</strong>greve dos servidores públicos586 PL 3525/2000 (Deputado Márcio Bittar - PPS); PL 3479/2000 (Deputado Paulo Paim - PT); PL3406/2000 (Deputado Padre Roque - PT); PL 3392/2000 (Executivo Fe<strong>de</strong>ral); PL 3266/2000(Deputado Alberto Fraga - PMDB); PL 3216/2000 (Deputado Pompeo <strong>de</strong> Mattos - PDT).587 Editorial, “Ativismo judiciário”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, 5/11/2007.246


O artigo 5º, LXXI da Constituição Fe<strong>de</strong>ral prevê: “conce<strong>de</strong>r-se-á mandado <strong>de</strong>injunção sempre que a falta <strong>de</strong> norma regulamentadora torne inviável o exercício dosdireitos e liberda<strong>de</strong>s constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalida<strong>de</strong>, àsoberania e à cidadania”. Trata-se <strong>de</strong> um instrumento jurídico <strong>de</strong>stinado a suprir asomissões legislativas na implementação dos direitos constitucionais. Dentre osmandados <strong>de</strong> injunção já propostos ao STF, há alguns dispondo sobre o direito <strong>de</strong>greve do servidor público, previsto no artigo 37, VII, da Constituição: “o direito <strong>de</strong>greve será exercido nos termos e nos limites <strong>de</strong>finidos em lei específica”.O Mandado <strong>de</strong> Injunção n. 670 foi proposto pelo Sindicato dos ServidoresPoliciais Civis do Espírito Santo (SINDIPOL), com dois objetivos: autorizar oexercício imediato do direito <strong>de</strong> greve e compelir o Congresso Nacional aregulamentar, <strong>de</strong>ntro do prazo <strong>de</strong> trinta dias, o inciso VII do art. 37 da CF, que exigelei específica para <strong>de</strong>finição dos termos e limites do exercício do direito <strong>de</strong> greve doservidor público.O Ministro Maurício Corrêa apenas reconheceu o atraso do CongressoNacional quanto à edição da norma regulamentadora, mas enten<strong>de</strong>u que o po<strong>de</strong>rjudiciário não po<strong>de</strong>ria, nos limites do mandado <strong>de</strong> injunção, garantir ao impetrante odireito <strong>de</strong> greve, substituindo-se ao legislador ordinário e extrapolando o âmbito dacompetência que a Constituição lhe confere. Além disso, salientou que não éfacultado ao po<strong>de</strong>r judiciário fixar prazo para que o Congresso Nacional aprove arespectiva lei.O Ministro Gilmar Men<strong>de</strong>s, em voto-vista, abriu divergência para <strong>de</strong>terminar aaplicação da Lei n. 7.783/89 (que dispõe sobre o exercício do direito <strong>de</strong> greve nainiciativa privada) enquanto não for suprida a lacuna legislativa, observado oprincípio da continuida<strong>de</strong> do serviço público. Defen<strong>de</strong>u, ainda, que cabe ao Po<strong>de</strong>rJudiciário intervir <strong>de</strong> forma mais <strong>de</strong>cisiva, <strong>de</strong> modo a afastar a inoperância <strong>de</strong> suas<strong>de</strong>cisões em mandado <strong>de</strong> injunção, e atuar também nos casos <strong>de</strong> omissão do po<strong>de</strong>rlegislativo, tendo em vista as normas constitucionais que <strong>de</strong>mandam a concretizaçãodo direito <strong>de</strong> greve a todos os trabalhadores. Os Ministros Celso <strong>de</strong> Mello, SepúlvedaPertence, Carlos Britto, Carmen Lúcia e Cezar Peluso seguiram a mesma orientação, e<strong>de</strong>cidiram pela aplicação da Lei nº. 7.783/89. Com o mesmo objetivo, foram247


propostos os MI n. 708, pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município<strong>de</strong> João Pessoa (SINTEM), e n. 712, pelo Sindicato dos Trabalhadores do Po<strong>de</strong>rJudiciário do Estado do Pará (SINJEP), ambos <strong>de</strong>cididos também no mesmo sentidopor maioria <strong>de</strong> votos.Após a sinalização do STF, e antes <strong>de</strong> terminados os julgamentos, o ExecutivoFe<strong>de</strong>ral elaborou um anteprojeto <strong>de</strong> lei para regulamentar o direito <strong>de</strong> greve noserviço público. Em 10 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007, o anteprojeto foi entregue à Casa Civil, on<strong>de</strong>será analisado antes <strong>de</strong> ser enviado ao Congresso Nacional. Em entrevista, oConsultor Geral da União, Ronaldo Jorge <strong>de</strong> Araújo Vieira Junior, menciona esseposicionamento em gestação do STF (segundo o qual, na ausência <strong>de</strong> uma legislaçãoespecífica para regulamentar a greve no setor público, po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>terminar a aplicaçãoda Lei 7.783/89), como prova da urgência <strong>de</strong> se regulamentar a matéria. 588O julgamento <strong>de</strong>sses três mandados <strong>de</strong> injunção é consi<strong>de</strong>rado um divisor <strong>de</strong>águas na jurisprudência do STF sobre a omissão legislativa, não apenas por ter feitomais do que apenas reconhecer a mora legislativa, mas por ter, inclusive, estendido osefeitos da <strong>de</strong>cisão para além das partes do processo. 589 Maria Teresa Sa<strong>de</strong>k, aocomentar a <strong>de</strong>cisão, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> tal postura ativista: “O Supremo julgou um mandado <strong>de</strong>injunção, previsto na Constituição. Há um jogo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre o Legislativo e oExecutivo e não restou ao Supremo outra alternativa. Se me perguntarem se eu gosto<strong>de</strong>ssa alternativa, eu não gosto. Não é a<strong>de</strong>quado para a <strong>de</strong>mocracia que o Judiciáriolegisle. Diante do vazio, foi a alternativa que sobrou. A solução po<strong>de</strong> ser interessantepara o Legislativo e para o Executivo, pois nunca tiveram força para aprovar essas<strong>de</strong>cisões. (...) Não adianta ficar imaginando o mo<strong>de</strong>lo abstrato <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia. Daspossibilida<strong>de</strong>s que estavam na mesa, essa foi a <strong>de</strong> menor custo”. 590588 “Governo fe<strong>de</strong>ral estuda limitar greves em ‘serviços inadiáveis’ a 60% dos servidores”, dia 15 <strong>de</strong>maio <strong>de</strong> 2007, www.sinafresp.org.br (Sabrina Crai<strong>de</strong> e Mylena Fiori, da Agência Brasil).589 “Esse novo ativismo judiciário contrasta com a história da corte. Até recentemente, quando se<strong>de</strong>parava com a ausência <strong>de</strong> norma jurídica, o STF limitava-se a <strong>de</strong>clarar a omissão do Legislativo, sem<strong>de</strong>finir regras” (cf. Editorial, “Ativismo judiciário”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, 5/11/2007).590 Cf. Fre<strong>de</strong>rico Vasconcelos, “Judiciário no papel <strong>de</strong> legislador é alternativa que sobrou, diz Sa<strong>de</strong>k”,Folha <strong>de</strong> São Paulo, 31/10/2007.248


7) “Não se fez lá, que se faça no Supremo”: 591 o caso da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> partidáriaO STF julgou, no dia 4 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2007, três mandados <strong>de</strong> segurançaimpetrados pelo PSDB, PPS e DEM. 592 Nessas <strong>de</strong>cisões, o STF reconheceu,revertendo a sua própria jurisprudência, que o mandato parlamentar pertence aopartido político, não ao representante eleito. O argumento do caráter prioritariamentepartidário das vagas congressuais é sintetizado nessa passagem:o ato <strong>de</strong> infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, seja ao partido político, seja aopróprio cidadão-eleitor, mais do que um <strong>de</strong>svio éticopolítico,representa, quando não precedido <strong>de</strong> umajusta razão, uma inadmissível ofensa ao princípio<strong>de</strong>mocrático e ao exercício legítimo do po<strong>de</strong>r, namedida em que migrações inesperadas não apenascausam surpresa ao próprio corpo eleitoral e asagremiações partidárias <strong>de</strong> origem, privando-as darepresentativida<strong>de</strong> por elas conquistada nas urnas, masacabam por acarretar um arbitrário <strong>de</strong>sequilíbrio <strong>de</strong>forças no Parlamento, vindo, em frau<strong>de</strong> à vonta<strong>de</strong>popular e afronta ao próprio sistema eleitoralproporcional, a tolher, em razão da súbita reduçãonumérica, o exercício pleno da oposição política. 593Os casos do direito <strong>de</strong> greve e da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> partidária foram os dois passosmais polêmicos dados pelo STF no ano <strong>de</strong> 2007, e gerou não somente reações nopróprio corpo legislativo, mas uma ampla discussão pública. A gran<strong>de</strong> maioria das<strong>de</strong>clarações apoiou o ativismo do STF como uma espécie <strong>de</strong> remédio contra a inérciado legislativo, uma ocupação legítima <strong>de</strong> um espaço vazio. 594 A omissão legislativa, o591 Declaração <strong>de</strong> Aécio Neves, Governador <strong>de</strong> Minas Gerais, em <strong>de</strong>fesa da <strong>de</strong>cisão do STF (cf. PauloPeixoto, “Decisão do STF foi ‘recado’ ao Congresso, diz ministro”, Folha Online, 05/10/2007).592 MS n. 26602, 26603 e 26604.593 Cf. Informativo do STF n. 482.594 Entre outras intervenções, Tarso Genro manifestou-se <strong>de</strong> modo favorável ao que chamou <strong>de</strong>“judicialização da reforma política”: “Quando existe uma certa contenção <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado Po<strong>de</strong>r,no caso concreto o Legislativo, em relação à reforma política, um outro Po<strong>de</strong>r [Judiciário] avança umpasso e exerce, além da sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgamento <strong>de</strong> interpretação, exerce uma certa capacida<strong>de</strong>normativa. (...) Acho também que é um certo recado ao Po<strong>de</strong>r Legislativo como se dissesse o seguinte:'Se vocês não estão fazendo a reforma política, nós estamos dando um passo’” (Paulo Peixoto,“Decisão do STF foi ‘recado’ ao Congresso, diz ministro”, Folha Online, 05/10/2007). José Sarneyseguiu a mesma linha: “Não estou <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo que o STF assuma o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> legislar, mas, já queentrou para fazer avançar a reforma política que o Congresso não fez, <strong>de</strong>ve prosseguir em outros temas.(...) Agora, STF e TSE <strong>de</strong>vem forçar os partidos a que sejam <strong>de</strong>mocráticos, e não simples clubespolíticos” (“O STF <strong>de</strong>ve avançar”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, p. 2, 12/10/2007).249


não exercício da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa do parlamento, parece ser umacircunstância em que parece mais fácil aceitar o ativismo judicial.Po<strong>de</strong> o STF assumir a reforma do sistema político quando, segundo certoconsenso difuso, este se distancia <strong>de</strong> qualquer mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>sejável <strong>de</strong> representação e semostra incapaz <strong>de</strong> reformar-se? Como fazer tal reforma? Por meio <strong>de</strong> um pacoteamplo ou <strong>de</strong> forma incremental e minimalista, <strong>de</strong> modo a provocar reações? Em quemedida é plausível afirmar que o ambiente <strong>de</strong> aguda crise <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> do sistemarepresentativo dá mais espaço para o STF agir?Todas essas questões foram suscitadas no <strong>de</strong>bate. Marco Antonio Villa, porexemplo, ao mesmo tempo em que celebra a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o STF assumir a tarefa<strong>de</strong> realizar pequenas fatias da reforma política, lamenta a <strong>de</strong>cisão equivocada do STFsobre a cláusula <strong>de</strong> barreira e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a questão seja reapresentada, ou seja, queuma nova rodada <strong>de</strong>liberativa se inicie para que o STF possa ser convencido docontrário: “Pensar em gran<strong>de</strong>s reformas políticas é um meio <strong>de</strong> inviabilizar mudanças.Contudo, algo po<strong>de</strong> ser feito. A fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> partidária é um bom início e seráimplantada, apesar do Congresso. A permanência da cláusula <strong>de</strong> barreira que, justiçaseja feita, tinha sido aprovada pelo Congresso, mas foi <strong>de</strong>rrubada pelo STF, tem <strong>de</strong>ser reapresentada”. 595Diversas intervenções também se utilizaram <strong>de</strong> uma análise <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>comparativa entre STF e parlamento e suas respectivas oscilações. Estaríamosacompanhando um processo simultâneo <strong>de</strong> ascensão judicial e queda parlamentar. 596595 Cf. “Sobre o governo, o Congresso e as reformas”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, p. 3, 19/10/2007.596 Três autores importantes salientaram contrastes semelhantes. José Afonso da Silva, por exemplo:“João Mangabeira disse, certa vez, que o Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral foi a instituição que mais tinhafalhado na República; o Congresso, não. Se estivesse entre nós, estaria dizendo: o Supremo TribunalFe<strong>de</strong>ral não falhou, dignificou-se mais ainda, elevou-se, engran<strong>de</strong>ceu. Ao contrário, uma dasinstituições do Congresso falhou, minguou, apequenou-se. Utilizou-se <strong>de</strong> uma sessão secreta para seescon<strong>de</strong>r, numa vergonhosa frau<strong>de</strong> à Constituição” ( “O sigilo do <strong>de</strong>spudor”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, p. 3,05/10/2007). Em seguida, Paulo Bonavi<strong>de</strong>s adotou idéia parecida: “Se porventura colocarmos nabalança da legitimida<strong>de</strong> as duas instituições que ora atraem as atenções da cidadania, a saber, o Senadoe o Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, verificaremos o seguinte: enquanto o primeiro <strong>de</strong>cai na confiança dopovo, em conseqüência <strong>de</strong> escândalos que envolveram seu presi<strong>de</strong>nte, o segundo cresce com arenovação <strong>de</strong> quadros e as <strong>de</strong>cisões do mensalão e da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> partidária. (...) Ao manter a <strong>de</strong>cisãohistórica do Tribunal Superior Eleitoral sobre a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> partidária, aquele órgão da magistratura, aoque tudo indica, inaugurou na esfera constitucional uma nova era em que a supremacia da Constituiçãoé, em primeiro lugar, a supremacia dos princípios” (“Senado Fe<strong>de</strong>ral e STF: queda e ascensão”, Folha<strong>de</strong> São Paulo, p. 3, 26/10/2007). Por fim, Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos: “O combate à corrupção leva a250


Ao mesmo tempo, numerosas <strong>de</strong>clarações sobre a falência e <strong>de</strong>gradação do sistemarepresentativo também abundaram. 597Gilmar Men<strong>de</strong>s refere-se a essa técnica <strong>de</strong> ocupação <strong>de</strong> espaços vazios como“sentença <strong>de</strong> perfil aditivo”, uma postura que extrapola o tradicional papel <strong>de</strong>legislador negativo e constrói uma regulação judicial original por meio <strong>de</strong>“intervenções minimalistas”. 598 Wan<strong>de</strong>rley Guilherme dos Santos foi uma voz quasesolitária que se <strong>de</strong>stoou <strong>de</strong>sse coro. Opôs-se veementemente ao que chamou <strong>de</strong>“política <strong>de</strong> facção” do po<strong>de</strong>r judiciário. Vale a pena transcrever esse longo trecho:Com a ‘sentença <strong>de</strong> perfil aditivo’ o Supremosubstituiu-se politicamente ao Legislativo napressuposição <strong>de</strong> estar somente agregandohermenêutica jurídica a um corpo preexistente. (...) Atese do vácuo legal sobre a reforma política éunanimemente aceita por juristas, comentaristas ediversos lí<strong>de</strong>res partidários. Fiquei espantado quandovi a in<strong>de</strong>vida interferência do Judiciário <strong>de</strong>fendida e,em conseqüência, apoiada por cientistas sociaisprofissionais, sob pretexto do vazio legal. É legítimopreten<strong>de</strong>r uma reforma, mas <strong>de</strong> modo algum justificálapor putativa existência <strong>de</strong> algum vácuo, jurídico,newtoniano, político ou saturnal, dada a poucatransparência do diagnóstico.O trabalho dos parlamentos se inscreve em duasgran<strong>de</strong>s áreas: as áreas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão e as áreas <strong>de</strong> não<strong>de</strong>cisão.Nenhum parlamento trata <strong>de</strong> tudosimultaneamente. As <strong>de</strong>cisões efetivas, aprovando ourejeitando algum projeto <strong>de</strong> lei, são <strong>de</strong> conhecimentodireto, assim como direta po<strong>de</strong> ser a investigação sobreos motivos que as fizerem ser como são. Diferente é oque ocorre na área <strong>de</strong> não-<strong>de</strong>cisão. No mínimo, há quese distinguir aquilo que não é <strong>de</strong>cidido por indiferençaque alguns conflitos políticos sejam resolvidos em tribunal. Só que a judicialização da política conduzà politização do Judiciário, tornando-o mais controverso, mais visível e vulnerável politicamente. Nosmelhores casos, tem vindo a produzir um <strong>de</strong>slocamento da legitimida<strong>de</strong> do Estado: do Executivo e doLegislativo para o Judiciário” (“A Justiça em <strong>de</strong>bate”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, p. 3, 17/09/2007).597 Cláudio Weber Abramo: “Capturadas pelos interesses privados <strong>de</strong> seus integrantes, não é <strong>de</strong>espantar que levantamentos <strong>de</strong> opinião feitos no Brasil sempre situem as instituições parlamentaresentre as menos confiáveis” (“Parlamento capturado”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, p. 3, 12/04/2007). PauloBonavi<strong>de</strong>s: “Nunca nos regimes imperial e republicano o corpo representativo <strong>de</strong>sceu tanto em grau <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong> quanto na atual conjuntura. A pior, talvez, <strong>de</strong> toda a nossa história constitucional”(“Senado Fe<strong>de</strong>ral e STF: queda e ascensão”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, p. 3, 26/10/2007). Ricardo Antunes,na mesma toada: “Nunca antes na história <strong>de</strong>ste país se tornaram tão acentuadas a falência e a<strong>de</strong>gradação do po<strong>de</strong>r parlamentar” (“Nunca mais!”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, p. 3, 26/10/2007).598 Cf. Cristine Preste, “Uma Revolução Silenciosa no Supremo”, Valor Econômico, 18/10/2007.251


do que não recebe legislação por ser precisamente esseo <strong>de</strong>sejo do corpo parlamentar. Neste caso, há uma<strong>de</strong>cisão implícita <strong>de</strong> manter o status quo, nenhumaindiferença. Exemplo clássico em diversosparlamentos, e também no brasileiro, é a ausência <strong>de</strong>legislação sobre reforma agrária. (...) Até então, não sepo<strong>de</strong>ria dizer que o Congresso era indiferente à matériaou que existisse algum vácuo a sorvê-la. Simplesmenteos parlamentares <strong>de</strong>cidiram não tocar no assunto. Aecologia, ao contrário, foi durante décadas um tópicoausente do <strong>de</strong>bate parlamentar por conta da indiferençados legisladores. Não houve da parte <strong>de</strong>les, ao que eusaiba, nenhuma <strong>de</strong>cisão positiva <strong>de</strong> não discuti-la. Orabem, com a reforma política trata-se <strong>de</strong> algo maispróximo da reforma agrária do que da ecologia. Osparlamentares não são indiferentes à matéria. O que,sim, ocorre, é que as sucessivas maiorias nas diversaslegislaturas não foram convencidas por nenhumaproposta em circulação na socieda<strong>de</strong>. Decidir manter ostatus quo na ausência <strong>de</strong> consenso sobre que mudançapromover está longe <strong>de</strong> configurar qualquer tipo <strong>de</strong>vácuo que autorize outro po<strong>de</strong>r a ocupá-lo. Afirmardogmaticamente que o Legislativo não age em matéria<strong>de</strong> reforma política por indiferença ou incompetêncianão enobrece a argumentação dos reformistas. Trata-se<strong>de</strong> atribuir caráter perverso a uma suposta inação pelacapciosa razão <strong>de</strong> que a ação que <strong>de</strong>sejariam nãoencontra apoio majoritário no Congresso. Oextraordinário consenso exibido pela opinião impressa,sob cuja influência têm vivido os juízes, poiscompartilham do mesmo sistema <strong>de</strong> crenças, nãocorrespon<strong>de</strong> ao que se passa na vida política real dopaís. No momento, usa-se a sua força para estremeceros seus <strong>de</strong>svãos mais sofisticados. Não é boapolítica. 599Santos, portanto, ataca a intervenção judicial num assunto em que a inação dolegislador não <strong>de</strong>nota indiferença, mas opção. Seria uma pauta estabilizada, nãocongelada. De fato, a inação do parlamento não significa necessariamente indiferença,omissão ou inércia. Eventualmente, po<strong>de</strong> indicar uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberada <strong>de</strong> manter ostatus quo. O argumento <strong>de</strong>fendido no capítulo 7 permite amenizar esse ataque. Porque o STF não po<strong>de</strong>ria corromper, <strong>de</strong> modo minimalista, o status quo para obrigar oparlamento a respon<strong>de</strong>r? Conservar um antigo status quo, problematizado há anos porexercícios razoáveis <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> princípios constitucionais, é uma confortável599 Cf. “A política <strong>de</strong> facção do Po<strong>de</strong>r Judiciário”, Valor Econômico, 26/10/2007.252


estratégia legislativa <strong>de</strong> escapar das <strong>de</strong>mandas da razão pública. Eventualmente, reeletrizaruma pauta estabilizada <strong>de</strong> tempos em tempos po<strong>de</strong> operar um efeitoepistêmico produtivo. Além disso, não se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sprezar a hipótese <strong>de</strong> que uma pautaestabilizada se transforme, gradativamente, numa pauta reprimida, situação patológicaque talvez o tribunal possa começar a corrigir. O sistema <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> omissõeslegislativas rompe com o princípio <strong>de</strong> que somente o legislativo inova. A corte po<strong>de</strong>testar seu espaço e estimular reações que, mesmo contrárias, pelo menos têm opotencial <strong>de</strong> criar um ônus <strong>de</strong> razão pública sobre o parlamento, que será obrigado a<strong>de</strong>stampar a suposta neutralida<strong>de</strong> do status quo. Desafiar, pru<strong>de</strong>ntemente, oparlamento a <strong>de</strong>liberar nem sempre correspon<strong>de</strong> a uma ação ilegítima. Na <strong>separação</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, funções são cambiantes.5. ConclusõesO Presi<strong>de</strong>nte Lula, em discurso <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2008, por ocasião dolançamento <strong>de</strong> um programa social que foi questionado judicialmente por partidos <strong>de</strong>oposição, enviou mensagem ao Min. Marco Aurélio, que havia se pronunciadoalgumas vezes na imprensa apontando a inconstitucionalida<strong>de</strong> dos gastos em anoeleitoral: “Seria bom se o Po<strong>de</strong>r Judiciário metesse o nariz apenas nas coisas <strong>de</strong>les, oLegislativo apenas nas coisas <strong>de</strong>les e o Executivo apenas nas coisas <strong>de</strong>les. Nósiríamos criar a harmonia estabelecida na Constituição”. É mais ou menos a essadivisão estática <strong>de</strong> funções que a teoria normativa sobre a <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res àsvezes se apega. Este trabalho se opôs a ela. 600600 Matthew Taylor, analisando o caso brasileiro, insinua a idéia <strong>de</strong> funções cambiantes quando falasobre “jogo interativo”: “A combinação da fraqueza do Legislativo – em termos <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ação coletiva (in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do Executivo) – e a dificulda<strong>de</strong> que a população tem <strong>de</strong> cobrar ação <strong>de</strong>seus representantes – fruto do sistema eleitoral – fazem com que o Judiciário tenha uma altaprobabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> evitar punições do Legislativo quando toma <strong>de</strong>cisões que contrariam a maiorialegislativa. Não é tão fácil evitar punições oriundas do Executivo, e talvez seja por isso que o Judiciárioaja conservadoramente quando possível. Mas, como veremos a seguir, o Judiciário nem sempre ésubmisso, mesmo quando tem a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agir mais timidamente. Como o jogo é interativo, e osatores po<strong>de</strong>m apren<strong>de</strong>r com os turnos anteriores, em algum momento se espera que o Executivo reaja aessas provocações ou que o Judiciário capitule. Talvez estejamos mais próximos da segunda situação.No entanto, o conservadorismo do STF não se reflete em uma timi<strong>de</strong>z exagerada, o que <strong>de</strong>ixa emaberto o questionamento sobre estes dois fenômenos empíricos: a assertivida<strong>de</strong> da Justiça e a aceitação(mesmo acompanhada <strong>de</strong> altas reclamações) disso pelo Executivo e seus aliados no Congresso” (cf. “OJudiciário e as políticas públicas no Brasil”, p. 236).253


Este capítulo tentou i<strong>de</strong>ntificar elementos e episódios do direito constitucionalbrasileiro que po<strong>de</strong>m ser enriquecidos pelos argumentos da tese. Trouxe uma amostra<strong>de</strong> eventos nos quais o legislador levou em conta <strong>de</strong>cisões do STF para planejar suaação. A resposta do legislador, <strong>de</strong>ferente ou não, foi pensada nos termos doposicionamento do STF. Nas reformas da previdência e do judiciário, o circuito <strong>de</strong>idas e vindas foi até o último estágio: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar a inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>leis, o STF foi levado a analisar o mesmo problema trazido sob a roupagem formal <strong>de</strong>emenda constitucional. Na reforma administrativa, o legislador simplesmenteesclareceu textualmente sua intenção em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação diferenteconsolidada na jurisprudência. No caso da cláusula <strong>de</strong> barreira, o Senado ensaia umareação diante <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão do STF que usou cláusulas pétreas como fundamento, oque, em tese, também justificaria a invalidação <strong>de</strong> uma eventual emendaconstitucional. Nos últimos três casos, igualmente, verifica-se uma mobilizaçãolegislativa em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões do STF.A <strong>de</strong>scrição dos casos não teve o objetivo <strong>de</strong> mostrar que um diálogo genuínoesteja acontecendo, muito menos o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>liberativo que consi<strong>de</strong>ro <strong>de</strong>sejável na<strong>de</strong>mocracia. Entretanto, os casos mostram ao menos um tipo <strong>de</strong> interação na qual, emalguma medida, há uma troca <strong>de</strong> argumentos. Procurei refletir sobre as condiçõesi<strong>de</strong>ais da interação entre os po<strong>de</strong>res, tomando como ponto <strong>de</strong> partida dois fatosempíricos que os casos acima <strong>de</strong>monstram: as instituições, bem ou mal, argumentam,e, em alguma medida, levam em conta os argumentos da outra.Claro que, da mesma forma que o artigo seminal <strong>de</strong> Peter Hogg, no Canadá,passou por uma bateria <strong>de</strong> críticas que já completa uma década, objeções parecidaspo<strong>de</strong>m ser feitas à tese: não se trata <strong>de</strong> diálogo, mas monólogo; não há diálogo quandouma instituição fala e a outra obe<strong>de</strong>ce etc. No entanto, a pretensão <strong>de</strong>ssa tese énormativa, não <strong>de</strong>scritiva. A sua consistência não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> o evento ser ou nãoconfirmado na realida<strong>de</strong>. Construo e <strong>de</strong>fendo um <strong>de</strong>terminado padrão <strong>de</strong> interaçãoinstitucional como mais condizente com o processo <strong>de</strong>mocrático. Esse argumento,como qualquer proposição <strong>de</strong> teoria política normativa, <strong>de</strong>canta na realida<strong>de</strong> namedida em que consegue convencer atores políticos. É claro que a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>um diálogo mais claro pressupõe uma consistência <strong>de</strong>cisória e um <strong>de</strong>sempenho254


<strong>de</strong>liberativo que talvez o STF não tenha, mas esse ponto mereceria <strong>de</strong>sdobramentosque não cabem nessa tese.O direito constitucional se empobrece quando domesticado pela mentalida<strong>de</strong>do advogado, que pensa a constituição a partir <strong>de</strong> um caso individual. Em vez disso, aconstituição po<strong>de</strong> ser vista a partir do processo político conflituoso e permanente queela dirige, com maior ou menor sucesso a cada momento.Quando entrincheirado ou acanhado, o STF não contribui para a <strong>de</strong>liberaçãointer-institucional. Na primeira hipótese, a corte se impõe numa atitu<strong>de</strong> heróica erejeita a “cooperação legislativa”. Na segunda, a corte se encolhe, amedrontada com opeso do caso que tem em mãos.Sinais recentes indicam que o STF está num processo acelerado <strong>de</strong> mudanças.As inovações internas promovidas pelos últimos dois presi<strong>de</strong>ntes (Nelson Jobim eEllen Gracie), e a intensificação <strong>de</strong>sse processo por Gilmar Men<strong>de</strong>s, que com aquelesdois comporia o “trio dos pragmáticos”, 601 parecem mostrar uma corte maispropositiva e menos inerte, mais voltada ao atacado e menos ao varejo. 602Após a <strong>de</strong>cisão no caso das células-tronco, a bancada religiosa no Congressocomeçou a se mobilizar na tentativa <strong>de</strong> mudar a constituição. Marco Aurélio,surpreen<strong>de</strong>ntemente, avaliou com naturalida<strong>de</strong>: “É uma forma <strong>de</strong> diálogoinstitucional. É um processo natural”. A semente do guardião entrincheirado, contudosobrevive no tribunal. Para Celso <strong>de</strong> Mello, seria “absolutamente inadmissívelqualquer ensaio <strong>de</strong> resistência por parte <strong>de</strong> qualquer órgão estatal a uma <strong>de</strong>cisãojudicial, especialmente quando proferida pela mais alta corte <strong>de</strong> Justiça do País. Nãohá nenhum tribunal superior ao Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral. Trata-se da corte suprema601 Cf. “Com Jobim e Ellen, ministro formou trio dos pragmáticos”, Valor Econômico, 23/04/2008.602 “Gilmar Men<strong>de</strong>s assume hoje o comando do Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral (STF) no período maisinovador da história recente da Corte. (...) Com isso, os ministros do Supremo estão cada vez maissaindo do varejo para atuar no atacado. (...) O novo presi<strong>de</strong>nte é um dos lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong>sta nova tendência <strong>de</strong>um Supremo cada vez mais propositivo e menos inerte” (cf. Juliano Basile, “Posse <strong>de</strong> Gilmar Men<strong>de</strong>sreforça papel propositivo do Supremo”, Valor Econômico, 23/04/2008).255


em matéria <strong>de</strong> jurisdição constitucional. Quem tem o monopólio da última palavra é oSupremo, e ninguém mais”. 603Se o parlamento quiser ter papel relevante na interpretação da constituição,<strong>de</strong>ve reconstruir seu papel e perceber as condições legítimas <strong>de</strong> exercê-lo. Posiçõesjuricêntricas anunciadas pelo STF não <strong>de</strong>vem assustá-lo. 604603 Cf. Felipe Recondo, “Congresso confronta <strong>de</strong>cisões do STF”, Estado <strong>de</strong> São Paulo, 15/06/2008.Essa reportagem mostra movimentos <strong>de</strong> reação a <strong>de</strong>cisões recentes do STF. Os mais enérgicos dizemrespeito a <strong>de</strong>cisões relacionadas aos sistemas eleitoral e partidário (como na <strong>de</strong>cisão sobre a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>partidária, sobre cláusula <strong>de</strong> barreira, e sobre número <strong>de</strong> vereadores).604 Como afirmaram Robert Post and Reva Siegel: “Although the Court may claim authority to speakfor the Constitution, that authority does not exist merely by <strong>de</strong>cree. It must be earned by articulating avision of the Constitution that the nation is prepared to accept. (…) Congress itself must begin toanswer the Court's claims. (…) If Congress wishes to reclaim its prerogatives as an equal andcoordinate branch of the fe<strong>de</strong>ral government, it must counter the Court’s claims of exclusive authoritywith a public and persuasive <strong>de</strong>fense of Congress’s historical role in the creation of constitutionalmeaning. It must act to protect the Constitution for the people” (cf. “Protecting the Constitution fromthe People”, p. 43-44).256


ConclusõesA tese fez um longo percurso. No capítulo 1, sustento duas proposições.Primeiro, que discussões sobre <strong>de</strong>senho institucional e <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, tanto doponto <strong>de</strong> vista normativo quanto <strong>de</strong>scritivo, precisam dar conta <strong>de</strong> todas as dimensõesda pergunta “Quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o que e como e quando e por que numa <strong>de</strong>mocraciaconstitucional?”. Segundo, que a literatura sobre legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática da revisãojudicial po<strong>de</strong> ser classificada a partir <strong>de</strong> uma pequena reformulação da mesmapergunta, versão que <strong>de</strong>limita o campo <strong>de</strong>cisório aos direitos: “Quem e como equando e por que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre direitos numa <strong>de</strong>mocracia constitucional?”. A tesepropõe que, a partir <strong>de</strong>ssa nova pergunta, há dois mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> resposta. Um reduz oproblema a uma busca pela última palavra e pelo <strong>de</strong>tentor da supremacia <strong>de</strong>cisória.Discute, assim, a ponta do iceberg, assumindo que, mesmo que haja questõesintermediárias relevantes (papel da legislação e da execução, p. ex.), o ponto <strong>de</strong>cisivopara <strong>de</strong>finir a legitimida<strong>de</strong> esgota-se na <strong>de</strong>finição da última autorida<strong>de</strong>. Culmina nanecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher entre duas respostas exclu<strong>de</strong>ntes: corte ou parlamento. Ooutro suspen<strong>de</strong> o foco na última palavra, e põe a discussão em outros termos. Aonotar que “a história continua”, lança luzes sobre a dimensão temporal da comunida<strong>de</strong>política e preocupa-se em observar a qualida<strong>de</strong> do diálogo entre as instituições.Os três capítulos seguintes cumprem um papel <strong>de</strong>scritivo e sistematizam ospossíveis componentes <strong>de</strong>sses três mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> resposta. Esses três blocos não sãocaricaturas formuladas para o fim da <strong>de</strong>fesa do meu argumento, apesar <strong>de</strong> nãocorrespon<strong>de</strong>rem rigorosamente ao pensamento <strong>de</strong> nenhum autor específico. Sãoartifícios <strong>de</strong> que me utilizo para tentar montar o edifício <strong>de</strong> questões e valores emjogo. O objetivo é combinar as peças <strong>de</strong> variados tipos <strong>de</strong> argumento e construir a<strong>de</strong>fesa mais forte possível para cada lado.O capítulo 2 <strong>de</strong>screve a primeira versão das teorias da última palavra – ainclinação por cortes e juízes. Essa inclinação é baseada no ataque da (i) visãoestritamente populista e agregativa da <strong>de</strong>mocracia e da (ii) figura do legisladorrepresentativo majoritário, sujeito a pressões <strong>de</strong> conjuntura e vulnerável ao autointeresse.Essa teoria supõe que juízes são menos falíveis que os legisladores ou que,257


mesmo que não possam <strong>de</strong>monstrar a resposta certa, possuem melhores condições <strong>de</strong><strong>de</strong>liberação para <strong>de</strong>cidir a<strong>de</strong>quadamente sobre o assunto.O capítulo 3 <strong>de</strong>screve os oponentes da última palavra judicial, ou seja, ainclinação por parlamentos e legisladores. Defen<strong>de</strong>m os valores da (i) representaçãoeleitoral e da (ii) regra <strong>de</strong> maioria, embutidos na justificação institucional doparlamento, e também que o parlamento possui melhores (iii) condições <strong>de</strong>liberativas.Atacam, por sua vez, a suposição da (iv) super-racionalida<strong>de</strong> judicial, ao mostrar quejuízes <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m criativamente, exercem vonta<strong>de</strong> e não são domesticados por qualquermétodo <strong>de</strong> interpretação; e a (v) linguagem dos direitos, que aprisiona a racionalida<strong>de</strong>judicial a um confronto polarizado e incompatível com os balanceamentos valorativosque a política precisa promover.O capítulo 4 apresenta e sistematiza uma corrente que recusa o dilema acima,ou ao menos atenua a importância da última palavra. Apesar da gran<strong>de</strong>heterogeneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “teorias do diálogo”, todas compartilham <strong>de</strong> uma mesmapercepção: a revisão judicial não correspon<strong>de</strong> à última palavra, e o legislador sempreterá condições <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r, com maior ou menor amplitu<strong>de</strong>, em maior ou menorespaço <strong>de</strong> tempo, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> arranjos específicos.O capítulo 5 abre um breve parênteses na argumentação central para lidar comuma pergunta importante <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho institucional. Se todo procedimento <strong>de</strong>cisório éfalível, quem tem o direito <strong>de</strong> errar por último? Se a revisão judicial <strong>de</strong>tém a últimapalavra, uma certa crítica <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que esse arranjo comprometeria componenteessencial do auto-governo <strong>de</strong>mocrático – a responsabilização pelos próprios erros. Aperspectiva do diálogo, ao ampliar o leque temporal do problema, dilui essapreocupação em alguma medida, pois a resposta legislativa é sempre umapossibilida<strong>de</strong> institucional em aberto.O capítulo 6 procura posicionar-se diante <strong>de</strong>ssa tensão. Teorias da últimapalavra e do diálogo são projetos teóricos antagônicos? Acredito que não. Ambosprocuram respon<strong>de</strong>r a perguntas diferentes. Diferentes, porém não in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.Mostrar essa inter-<strong>de</strong>pendência é um dos objetivos <strong>de</strong>sse capítulo. Ao seremapartados, correm o risco <strong>de</strong> fornecer uma resposta incompleta e parcial a um258


problema mais abrangente. Reconheço que teorias da última palavra apontam parauma questão relevante do ponto <strong>de</strong> vista da construção institucional. Afirmo, todavia,que tal questão relevante seria melhor entendida se fosse refraseada. Por meio dosconceitos <strong>de</strong> “última palavra provisória” e <strong>de</strong> “rodadas procedimentais”, procuro dar aexata dimensão e limitação daquela pergunta. Teorias do diálogo, ao observarem ofato da continuida<strong>de</strong> (das “seqüências legislativas”, e assim por diante), põem asimples existência da revisão judicial sob uma nova luz. Última palavra e diálogo,nesse sentido, complementam-se. Assim como o direito e a política precisam <strong>de</strong>“últimas palavras provisórias”, precisam também <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>.O capítulo 7 sustenta que mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> diálogo são forjados a partir <strong>de</strong> doiscomponentes centrais: (i) <strong>de</strong>senho institucional e (ii) cultura política. O padrão <strong>de</strong>interação, portanto, não se esgota na forma como procedimentos são <strong>de</strong>lineadosabstratamente, mas <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma certa atitu<strong>de</strong> política na operação <strong>de</strong>ssesprocedimentos. Preocupa-me, nesse capítulo, <strong>de</strong>senvolver o segundo componente emostrar o papel que a “<strong>de</strong>liberação inter-institucional” po<strong>de</strong> cumprir na construção dalegitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada po<strong>de</strong>r. Esse passo prepara o terreno para que, no capítulo 8, sejapossível mostrar como, no Brasil, a combinação <strong>de</strong> certo <strong>de</strong>senho institucional (jáanalisado na dissertação) com certo tipo <strong>de</strong> cultura predominante (“cultura doguardião entrincheirado”) gera problemas que <strong>de</strong>safiam a <strong>de</strong>mocracia constitucional.Esse argumento, portanto, em vez <strong>de</strong> rejeitar ou criticar a existência pura esimples do controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> (o que, a propósito, em termos práticos,contribui pouco para enten<strong>de</strong>r possíveis papéis que essa instituição já secular po<strong>de</strong><strong>de</strong>sempenhar na <strong>de</strong>mocracia), pensa em condições e critérios para avaliar a suaprática. “O povo”, o que quer que signifique, não toma todas as <strong>de</strong>cisões todo otempo, ou, mais do que isso, manifesta-se <strong>de</strong> diferentes modos, em diferentes lugares,não somente no parlamento.Há algum avanço cognitivo nessa abordagem? Ela lança alguma luz em algoque antes era obscuro ou imperceptível? Acredito que o argumento da tese importamenos pela novida<strong>de</strong> do que por colocar em evidência uma perspectiva<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rada na prática constitucional brasileira.259


Gostaria <strong>de</strong> tentar, nessa conclusão, dialogar com artigo <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Vita,“Socieda<strong>de</strong> Democrática e Democracia Política”, cujas preocupações se cruzam emalguma medida com o problema enfrentado na tese. Tal texto preten<strong>de</strong> discutir o tipo<strong>de</strong> conexão que po<strong>de</strong> haver entre uma forma <strong>de</strong> governo – <strong>de</strong>mocracia política – euma forma <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> – socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática, estruturada na base da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>status.Há ali dois argumentos importantes que são oportunos para essa conclusão.Em primeiro lugar, marca a distinção e a in<strong>de</strong>pendência entre uma socieda<strong>de</strong> justa eum governo justo. Nesse sentido, não se po<strong>de</strong> exigir que o segundo (governo justo),num passe <strong>de</strong> mágica, culmine no primeiro (socieda<strong>de</strong> justa). Não se po<strong>de</strong> forçar queo melhor critério <strong>de</strong> justiça, formulado por meio da <strong>de</strong>liberação moral, sejanecessariamente adotado no momento da <strong>de</strong>liberação política. 605 Essa passagem não éautomática. Tal distinção é semelhante a que faço, em outros momentos do meu texto,entre forma e substância. Na dissertação, usando a terminologia <strong>de</strong> Waldron,argumentei que as teorias dominantes da revisão judicial fariam uma promessaequivocada: <strong>de</strong> uma teoria da justiça (proteção <strong>de</strong> direitos) <strong>de</strong>rivariam uma certateoria da autorida<strong>de</strong> (arranjo contra-majoritário).Apesar <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, porém, as duas questões se inter-relacionam, e o<strong>de</strong>safio que se coloca para a teoria política é <strong>de</strong>scobrir como elevar a capacida<strong>de</strong>epistêmica da <strong>de</strong>mocracia e tornar a <strong>de</strong>liberação política mais permeável ao critério <strong>de</strong>justiça <strong>de</strong>senhado na <strong>de</strong>liberação moral. 606 Este é o segundo argumento <strong>de</strong> Vita <strong>de</strong> quequero tratar: para ele, aquele objetivo epistêmico não po<strong>de</strong> ser cumprido pelo simplesabandono da competição política e pela criação <strong>de</strong> instituições alternativas que, porserem mais “<strong>de</strong>liberativas” ou “participativas”, supostamente produziriam <strong>de</strong>cisões605 Segundo Álvaro <strong>de</strong> Vita: “O máximo que é possível fazer, no terreno da argumentação normativa, éformular uma concepção <strong>de</strong> justiça que, como afirma Joshua Cohen em um texto recente, objetivaorientar os julgamentos que os cidadãos e seus representantes fazem ao exercerem essaresponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberativa em <strong>de</strong>cisões políticas mais <strong>fundamentais</strong>”.606 Ainda o autor: “Mas constitui uma questão distinta a <strong>de</strong> saber em que medida propostas fundadas‘nos melhores argumentos’ irão, <strong>de</strong> fato, prevalecer na tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões políticas por meio doprocesso <strong>de</strong>mocrático, que, diversamente dos dispositivos contrafatuais que empregamos na<strong>de</strong>liberação moral, têm uma natureza eminentemente competitiva e conflitiva”. E mais adiantecontinua: “Só não haverá conflito entre as recomendações da justiça rawlsiana e a tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisõespor meio do processo <strong>de</strong>mocrático se uma maioria dos cidadãos e <strong>de</strong> seus representantes estiverempersuadidos <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vem se valer dos procedimentos <strong>de</strong>mocráticos para realizar, ou chegar tão pertodisso quanto as circunstâncias o permitirem, uma visão <strong>de</strong> justiça social”.260


melhores. 607 O caminho recomendado, ao contrário, é a radicalização e oaperfeiçoamento do próprio “schumpeterianismo”. Teorias da <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>liberativapassam a ter problemas no momento em que, além <strong>de</strong> valorizarem o papel do bomargumento na política, rejeitam a competição política em nome <strong>de</strong> alguma instituiçãoque encontrará a resposta correta.O autor pergunta: “como aumentar a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o processo<strong>de</strong>mocrático produza resultados políticos que possamos consi<strong>de</strong>rar justos <strong>de</strong> acordocom um critério in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e moralmente justificável <strong>de</strong> justiça?” Mais adiante,refina o problema: “Como os ‘argumentos fundados em boas razões’ que prevalecem(vamos supor) em fóruns <strong>de</strong>liberativos po<strong>de</strong>m adquirir força institucional suficientepara influenciar as escolhas <strong>de</strong> atores políticos po<strong>de</strong>rosos?” Próximo do final do texto,Vita resume seu argumento central: “Mas o que eu quis <strong>de</strong>monstrar, do ponto <strong>de</strong> vistateórico, é que o compromisso com uma concepção epistêmica <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia não<strong>de</strong>veria nos levar a negligenciar a importância da competição política”.Acredito que minha tese compartilha das preocupações apontadas acima.Além disso, ensaia também uma proposta <strong>de</strong> como <strong>de</strong>senvolver um aspecto da“radicalização da competição política”. Postulo, como condição adicional <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong>, que as instituições interajam por meio da “razão publica”. Essaexigência, portanto, se aplica não apenas ao judiciário, ou ao tribunal constitucionalespecificamente. A <strong>de</strong>manda argumentativa, numa cultura política preocupada emdiscutir justificativas por trás <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões coletivas, se aplica a todas as instituições. Aproposta <strong>de</strong> diálogo institucional, ou <strong>de</strong> uma <strong>separação</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>liberativapropõe-se a dar vitalida<strong>de</strong> às instituições postas da <strong>de</strong>mocracia competitiva, fazendocom que o argumento seja um elemento relevante, e não apenas retórico, dacompetição. Mais do que isso, fazendo com que o bom argumento tenha força parainfluenciar <strong>de</strong>cisões. Ao contrário <strong>de</strong> rejeitar o arranjo procedimental existente, a teseobserva uma forma mais ambiciosa <strong>de</strong> operá-lo.607 Ainda Álvaro <strong>de</strong> Vita: “‘Mais participação’ ou ‘mais <strong>de</strong>liberação’ não é, <strong>de</strong> per se, a respostanormativamente mais apropriada para o problema que estamos examinando, pelo menos não na medidaem que essas expressões entre aspas sejam interpretadas (como aqui estou supondo) como referênciasabreviadas a mo<strong>de</strong>los alternativos <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia”.261


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