Narrativas sobre o processo de modernizar-se - capes

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Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 200876do povo” 109 . Foram estas “viagens etnográficas” a força motriz tanto para as notas do que viria aser o livro editado por Telê Ancona Lopes, em 1976, “O Turista Aprendiz”, quanto para aidealização por Andrade da Missão Folclórica de 1938 (estando este na qualidade de diretor doDepartamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo desde 1935), realizada através doNordeste e parte do Norte brasileiro, com o propósito de documentar aspectos da vida popular,sendo a música aquela que recebeu maior importância.A Missão Folclórica, liderada por Luís Saia (etnógrafo aprendiz, formado no curso deDina Levi-Strauss, ministrado no Departamento de Cultura em 1936), Martin Braunweiner(responsável músical), Benedito Prado (técnico de gravação) e Antônio Ladeira (auxiliar), “gravae filma em Pernanbuco (Recife, Rio Branco – hoje Arcoverde – e Tacaratu); na Paraíba (JoãoPessoa, Itabaiana, Campina Grande e várias outras cidades e localidades no que foi o estadomais coberto); em São Luís do Maranhão e em Belém do Pará” 110 . Este extenso trabalho étraduzido objetualmente em “trinta horas de gravação, doze filmes cinematográficos silenciososem preto e branco, oitocentos objetos, entre instrumentos musicais e objetos rituais e esculturas,mil e duzentas fotografias e cerca de três mil páginas manuscritas em notas de campo” 111 ,posteriormente organizados heroicamente por Oneida Alvarenga – então chefe da DiscotecaPública Municipal de São Paulo e colaboradora de Mário de Andrade - em livros nos quais asletras das músicas foram transcritas e publicadas juntamente com as notas de campo, e emdiscos com as gravações correspondentes, seguidos de catálogos.As preocupações de Mário de Andrade versavam sobre as relações entre a “literaturaoral” e a “literatura escrita”, ou seja, em determinados domínios da fratura entre “arte popular” e“arte erudita”. Para Andrade, os elementos folclóricos passavam do plano folclórico para oerudito, cabendo ao artista erudito estabelecer as estratégias de transposição, ou mesmoreelaboração, para a arte erudita, de técnicas e motivos criados pelos artistas populares.FERNANDES comenta que, apesar de Mário de Andrade possuir erudição e treinamento comofolclorista, não foi fácil para este admitir que o movimento, partindo da forma erudita para apopular e vice-versa, seria a melhor configuração do fenômeno que tomava centralidade emsuas inquietações. Este autor alerta ainda que, mesmo posterior a esta constatação, a idéia109 SANDRONI, Carlos. Notas sobre Mário de Andrade e a Missão de Pesquisa Folclóricas de 1938. In: Revista doPatrimônio Histórico Nacional. Arte e Cultura Popular. Nº 28. 1999. pp. 60-73. A citação localiza-se na página 60.110 Idem, p. 62.111 Idem.

Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 200877original – a procedência popular de formas eruditas – sempre lhe serviu de guia: “Do grau deaproveitamento de material folclórico, mesmo, parecia-lhe possível inferir o grau correspondentede maturidade e o caráter nacional da cultura de um povo. Sobre este ponto, aliás, Mário deAndrade volta com insistência em seus escritos, defendendo a sua idéia mais cara epropugnando, contra os preconceitos e as suscetibilidades dos ‘letrados’ da terra, peloabrasileiramento da literatura e da música brasileiras, através de injeções maciças de artepopular” 112 .Todavia, FERNANDES ressalta a contrapelo de sua própria observação, que em Máriode Andrade a distância entre arte popular e arte erudita encontrou sua menor amplitude, eadmite até mesmo ser possível pensar em interpenetração e equilíbio notáveis. Mário deAndrade é, assim. para FERNANDES, o ponto de inflexão. Na obra poética daquele folcloristaamador expressavam-se com vigor os principios postulados por sua interpretação “quaseamorosa” do homem, da cultura popular, do Brasil. Aliás, FERNANDES categoricamente afirma:É óbvio que [Mário de Andrade] procurava aplicar suas idéias em várias direções, mas parecemeque só como poeta alcançou resultados positivos. Em todas as obras em que tenta aempresa, porém, Mário de Andrade afasta-se fielmente do puro retratismo. É o que dá, aliás,força excepcional às suas produções, localizando-as sob esse ponto de vista. Servir não érecorrer ou reproduzir com fidelidade acadêmica, mas incorporar e desenvolver segundoprocessos sempre novos ou, melhor, dinamicamente renovados pelo próprio viver em comum.Logicamente a razão está com Mário de Andrade, pois trata-se da realização da arte erudita enão do seu nivelamento à arte popular 113 .Mesmo reafirmando não a diferença, mas a hierarquia entre os dois gestos estéticos,FERNANDES nos permite acessar em Mário de Andrade mais uma ponte simmeliana, por ondeé possível cruzar de um lado ao outro e, neste ato, misturar tanto formas de um lado quanto deoutro e vice-versa. Na ponte-Mário-de-Andrade, a arte erudita realiza-se na popular e ascamadas populares encontram naquela arte estratégias e dispositivos para objetivações e (re)subjetivações de significados e sentidos da vida coletiva. Neste exercício de realização de suasproposições, a respeito dos domínios da arte erudita e popular ou de uma (im)possível estéticanacional 114 , a obra de Mário de Andrade permite duas preciosas lições, assim apresentadas porFERNANDES:112 FERNANDES, Florestan (2003) op. cit. p. 168.113 Idem. p. 173.

Ronaldo <strong>de</strong> Oliveira CorrêaTe<strong>se</strong> <strong>de</strong> Doutorado PPGICH UFSC | outono 200876do povo” 109 . Foram estas “viagens etnográficas” a força motriz tanto para as notas do que viria a<strong>se</strong>r o livro editado por Telê Ancona Lopes, em 1976, “O Turista Aprendiz”, quanto para ai<strong>de</strong>alização por Andra<strong>de</strong> da Missão Folclórica <strong>de</strong> 1938 (estando este na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diretor doDepartamento <strong>de</strong> Cultura da Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1935), realizada através doNor<strong>de</strong>ste e parte do Norte brasileiro, com o propósito <strong>de</strong> documentar aspectos da vida popular,<strong>se</strong>ndo a música aquela que recebeu maior importância.A Missão Folclórica, li<strong>de</strong>rada por Luís Saia (etnógrafo aprendiz, formado no curso <strong>de</strong>Dina Levi-Strauss, ministrado no Departamento <strong>de</strong> Cultura em 1936), Martin Braunweiner(responsável músical), Benedito Prado (técnico <strong>de</strong> gravação) e Antônio La<strong>de</strong>ira (auxiliar), “gravae filma em Pernanbuco (Recife, Rio Branco – hoje Arcover<strong>de</strong> – e Tacaratu); na Paraíba (JoãoPessoa, Itabaiana, Campina Gran<strong>de</strong> e várias outras cida<strong>de</strong>s e localida<strong>de</strong>s no que foi o estadomais coberto); em São Luís do Maranhão e em Belém do Pará” 110 . Este extenso trabalho étraduzido objetualmente em “trinta horas <strong>de</strong> gravação, doze filmes cinematográficos silencioso<strong>se</strong>m preto e branco, oitocentos objetos, entre instrumentos musicais e objetos rituais e esculturas,mil e duzentas fotografias e cerca <strong>de</strong> três mil páginas manuscritas em notas <strong>de</strong> campo” 111 ,posteriormente organizados heroicamente por Oneida Alvarenga – então chefe da DiscotecaPública Municipal <strong>de</strong> São Paulo e colaboradora <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> - em livros nos quais asletras das músicas foram transcritas e publicadas juntamente com as notas <strong>de</strong> campo, e emdiscos com as gravações correspon<strong>de</strong>ntes, <strong>se</strong>guidos <strong>de</strong> catálogos.As preocupações <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> versavam <strong>sobre</strong> as relações entre a “literaturaoral” e a “literatura escrita”, ou <strong>se</strong>ja, em <strong>de</strong>terminados domínios da fratura entre “arte popular” e“arte erudita”. Para Andra<strong>de</strong>, os elementos folclóricos passavam do plano folclórico para oerudito, cabendo ao artista erudito estabelecer as estratégias <strong>de</strong> transposição, ou mesmoreelaboração, para a arte erudita, <strong>de</strong> técnicas e motivos criados pelos artistas populares.FERNANDES comenta que, apesar <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> possuir erudição e treinamento comofolclorista, não foi fácil para este admitir que o movimento, partindo da forma erudita para apopular e vice-versa, <strong>se</strong>ria a melhor configuração do fenômeno que tomava centralida<strong>de</strong> emsuas inquietações. Este autor alerta ainda que, mesmo posterior a esta constatação, a idéia109 SANDRONI, Carlos. Notas <strong>sobre</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e a Missão <strong>de</strong> Pesquisa Folclóricas <strong>de</strong> 1938. In: Revista doPatrimônio Histórico Nacional. Arte e Cultura Popular. Nº 28. 1999. pp. 60-73. A citação localiza-<strong>se</strong> na página 60.110 I<strong>de</strong>m, p. 62.111 I<strong>de</strong>m.

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