Narrativas sobre o processo de modernizar-se - capes

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Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 200836Como exemplo, cito a forma metafórica que algumas mulheres salmantinas – daEspanha -, donas de casa, utilizaram para narrar sua relação/experiência com a música, e, porconseguinte, seu consumo musical. Num determinado momento, “uma delas propôs: As“Estações” de Vivaldi são como uma colher. Todo mundo as tem em casa”. Para o grupo depesquisa, esta metáfora relacionada diretamente com o ambiente cotidiano, tinha muitosignificado, visto que para aquelas mulheres “as colheres têm a proximidade do familiar e opoder do útil”. Assim, a metáfora teria o poder de reduzir sistematicamente as coisas artísticas –“cultas” - às coisas cotidianas, subordinando, as coisas artísticas aos valores da experiênciavivida, não somente daquelas mulheres, mas de seus filhos, maridos e netos 43 .Todas estas formas metafóricas ou gêneros discursivos são transpassados peloseventos extraverbais ou metacomunicativos comuns ao (a) narrador (a) e seu grupo social.Eventos muitas vezes, desconhecidos pelo investigador em campo, como, por exemplo, ashistórias e personagens locais, as retóricas políticas e religiosas, a repetição de fórmulaspadronizadas de tratamento, conversação e performances que constituem a exegese daentrevista. A observação e a atenção do investigador convertem-se em ferramentas úteis para arealização de entrevistas. Pois estas observações anotadas nos protocolos de entrevista,seguindo codificação específica para este fim, informam e ajudam na interpretação doselementos contextuais que expõem as contradições ou tensões borradas/obscurecidas naconstrução da história contada pelo (a) narrador (a).BRIGGS chama a atenção a um de seus erros em campo para ilustrar a importância daatenção aos eventos metacomunicativos. Conta que ao perguntar a artesãos que trabalhavamcom o entalhe de santos em madeira no norte do Novo México, Estados Unidos da América,sobre os processos de entalhe (técnicas, diseños, inovações no entalhe) conhecidos oudesenvolvidos pela comunidade, recebia sempre as respostas: “¡quien sabe!” (quem sabe!), ouentão, “é isso!” ou “agora você obteve sua história”. BRIGGS, diante destas respostas evasivasou desconcertantes, e depois de algum tempo e de fracassadas entrevistas, percebeu que osinformantes estavam implicitamente dizendo que não poderiam aceitar aquela forma deinquérito. Caso eles se sujeitassem à entrevista, como estava sendo aplicada, estariam43 As citações originais são: “una de ellas proponía: “Las “Estaciones” de Vivaldi son como una cuchara”, e “(…) lascucharas tienen la cercania de lo familiar y el poder de lo útil”, ambas retiradas do texto CRUCES, Francisco. Decucharas y corazones. Encarnación y densidad semántica en la cultura expresiva contemporánea. In: VV. AA.(2003) Culturas tradicionales, território y región. Memórias del IV encontro para la promoción y difusión delpatrimónio inmaterial de los países andinos. Bogotá: Corporación para la Difusión de la Cultura.

Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 200837assumindo um papel de subordinação (isso envolvendo questões de status social e geracional,visto que o investigador era mais jovem que os entrevistados).Depois que BRIGGS entendeu que a entrevista padrão não seria útil (por questõesrelacionadas às performances e fórmulas estabelecidas para tratamento entre jovens e velhosem uma comunidade tradicional transnacional), buscou acessar a comunidade de outra forma.Apresentou-se como aprendiz de entalhe e assim a investigação tomou sentido para ele e paraos mexicanos 44 . Ele percebeu que as sessões de aprendizado eram repletas de informações, emque eram combinadas as rotinas e as fórmulas padronizadas, com os esquemasmetacomunicativos. Isso se dava de forma simultânea, envolvendo/sobrepondo as lições nãoverbais de entalhe com as articulações entre performances/atuações pessoais, as narrativasorais sobre as tradições e a citação a textos escritos, provérbios, piadas e outras estratégias ougêneros narrativos. Foi nesta outra forma de encarrar a entrevista, que BRIGGS obteve omaterial para a (re)construção dos processos de interação sociais, que o ajudou a entendercomo aconteciam as atualizações da cultura material e, por conseguinte, das práticas sociaisnaquele grupo transnacional.Uma lição aprendida com BRIGGS pode ser resumida da seguinte forma: a imposiçãode estratégias metacomunicativas do pesquisador aos entrevistados, bloqueia aquele ver o queestes mostram, com substancial valor material. Isso pode ser um alerta para refletir sobre asmotivações que geram a resistência dos entrevistados aos esquemas padrões de entrevista, eexpõe ricas percepções sobre o pesquisador e a respeito dos entrevistados. Como exemplo, citoa percepção de BRIGGS sobre seu processo de investigação de campo, a saber: a combinaçãode informações visuais e verbais, utilizada por aqueles artesãos (ãs) para transmitir mensagensartisticas, davam ao pesquisador suporte à aquisição de competência em um sistemasemiótico/semiológico que pertencia à exegese da entrevista, ou aos eventos comunicativoscompartilhados, e ausente no exercício burocrático de perguntar e obter respostas, com validadecientífica, ou o que se entenda por isso 45 .Outro exemplo é o relato de BARLEY sobre o seu trabalho de campo entre os Dowayos,em Camarões, África. BARLEY conta que ficou aflito por não obter, na aplicação de suas44 BRIGGS chama mexicanos os migrantes originários da República do México e a segunda geração já nascida nosEUA. Isso como uma forma de nominar processos identitários que estão deslocados de um território (o México),mas mantém características distintivas como um tipo de moral mexicana tradicional, conservada nestes contextostransnacionais.45 BRIGGS, Charles L. (1986) op. cit.

Ronaldo <strong>de</strong> Oliveira CorrêaTe<strong>se</strong> <strong>de</strong> Doutorado PPGICH UFSC | outono 200837assumindo um papel <strong>de</strong> subordinação (isso envolvendo questões <strong>de</strong> status social e geracional,visto que o investigador era mais jovem que os entrevistados).Depois que BRIGGS enten<strong>de</strong>u que a entrevista padrão não <strong>se</strong>ria útil (por questõesrelacionadas às performances e fórmulas estabelecidas para tratamento entre jovens e velho<strong>se</strong>m uma comunida<strong>de</strong> tradicional transnacional), buscou acessar a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outra forma.Apre<strong>se</strong>ntou-<strong>se</strong> como aprendiz <strong>de</strong> entalhe e assim a investigação tomou <strong>se</strong>ntido para ele e paraos mexicanos 44 . Ele percebeu que as <strong>se</strong>ssões <strong>de</strong> aprendizado eram repletas <strong>de</strong> informações, emque eram combinadas as rotinas e as fórmulas padronizadas, com os esquemasmetacomunicativos. Isso <strong>se</strong> dava <strong>de</strong> forma simultânea, envolvendo/<strong>sobre</strong>pondo as lições nãoverbais <strong>de</strong> entalhe com as articulações entre performances/atuações pessoais, as narrativasorais <strong>sobre</strong> as tradições e a citação a textos escritos, provérbios, piadas e outras estratégias ougêneros narrativos. Foi nesta outra forma <strong>de</strong> encarrar a entrevista, que BRIGGS obteve omaterial para a (re)construção dos <strong>processo</strong>s <strong>de</strong> interação sociais, que o ajudou a enten<strong>de</strong>rcomo aconteciam as atualizações da cultura material e, por con<strong>se</strong>guinte, das práticas sociaisnaquele grupo transnacional.Uma lição aprendida com BRIGGS po<strong>de</strong> <strong>se</strong>r resumida da <strong>se</strong>guinte forma: a imposição<strong>de</strong> estratégias metacomunicativas do pesquisador aos entrevistados, bloqueia aquele ver o queestes mostram, com substancial valor material. Isso po<strong>de</strong> <strong>se</strong>r um alerta para refletir <strong>sobre</strong> asmotivações que geram a resistência dos entrevistados aos esquemas padrões <strong>de</strong> entrevista, eexpõe ricas percepções <strong>sobre</strong> o pesquisador e a respeito dos entrevistados. Como exemplo, citoa percepção <strong>de</strong> BRIGGS <strong>sobre</strong> <strong>se</strong>u <strong>processo</strong> <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong> campo, a saber: a combinação<strong>de</strong> informações visuais e verbais, utilizada por aqueles artesãos (ãs) para transmitir mensagensartisticas, davam ao pesquisador suporte à aquisição <strong>de</strong> competência em um sistema<strong>se</strong>miótico/<strong>se</strong>miológico que pertencia à exege<strong>se</strong> da entrevista, ou aos eventos comunicativoscompartilhados, e au<strong>se</strong>nte no exercício burocrático <strong>de</strong> perguntar e obter respostas, com valida<strong>de</strong>científica, ou o que <strong>se</strong> entenda por isso 45 .Outro exemplo é o relato <strong>de</strong> BARLEY <strong>sobre</strong> o <strong>se</strong>u trabalho <strong>de</strong> campo entre os Dowayos,em Camarões, África. BARLEY conta que ficou aflito por não obter, na aplicação <strong>de</strong> suas44 BRIGGS chama mexicanos os migrantes originários da República do México e a <strong>se</strong>gunda geração já nascida nosEUA. Isso como uma forma <strong>de</strong> nominar <strong>processo</strong>s i<strong>de</strong>ntitários que estão <strong>de</strong>slocados <strong>de</strong> um território (o México),mas mantém características distintivas como um tipo <strong>de</strong> moral mexicana tradicional, con<strong>se</strong>rvada nestes contextostransnacionais.45 BRIGGS, Charles L. (1986) op. cit.

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