Narrativas sobre o processo de modernizar-se - capes

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Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 200834A memória converte-se em um processo histórico importante, não para conhecer aunicidade do indivíduo e sua trajetória, ou ainda para subtrair deste informações sobre causas eefeitos. Ao invés disso, ela serviria como ponte inconclusa - na plenitude do sentidoSimmeliano 38 - que permite compreender a experiência, ou, ainda, a percepção daspossibilidades de agência, de simultaneidade entre repetição e inovação, transcendendo averdade dos fatos. Para tanto, faz-se necessário compreender que “o tempo histórico não é otempo vivido. A história escrita, documentada, distingue-se do acontecido; é [pois,] umarepresentação. E neste hiato entre o vivido e o narrado localiza-se o fazer próprio dohistoriador” 39 ou daquele (como eu) que executa o gesto de reconstruir a partir das experiênciasnarradas. Ao expor as tensões entre o tempo histórico e aquele vivido, realizo uma tentativacriativa e dialógica de reconstrução dos trajetos percorridos pelos (as) narradores (as), dosdeslizamentos de sentidos efetuados por estes, das histórias, antropologias, sociologias,filosofias ou artes por fim.Parto do princípio de que o ato narrativo pretende criar uma identidade harmoniosa,estável e icônica de um self homogêneo em relação ao passado e ao presente, no gesto deorganizar uma identidade que, no decorrer da vida, está fragmentada e dispersa. Tal qual umailustração deste processo de (re)criar-se e apresentar-se a um outro ouvinte/participante doato/gesto de construir uma narrativa/história, apresento a percepção de NECOECHEA GARCIAsobre a narrativa biográfica reconstruída por este autor de Fernando, um morador domultifamiliar Alemão, na Cidade do México. Aquele investigador assombrou-se com aperformance de Fernando na (re)construção de uma identidade homogênea e,conseqüentemente, com a coerência da narrativa do entrevistado. Sobre isso, aquele autorcomenta:38 Para SIMMEL, a cultura poderia ser metaforizada por meio de uma ponte inconclusa. A partir desta imagem, esteautor configura o processo de objetivação dos valores significativos para a constituição da personalidade – e aquipoderia citar entre vários, a memória -, enquanto um movimento humano de realizar-se e desfazer-se. Uma contínuaobra em construção e desconstrução de práticas e significados, de estéticas e éticas. Sendo este movimento o quepermitiria ao espírito construir-se na sua inteireza, ou numa utilização dos termos simmelianos, construir a totalidadeda sua personalidade. Todavia, não uma totalidade estática, mas agente, dialógica, prenhe de possibilidades quenão reside na fixação dos conteúdos das realizações humanas, ou como diria este autor das objetivações doespírito. Ao invés disso, na justa parcela de vontade para ultrapassar aqueles conteúdos e reconhecer sentidos,práticas, éticas e estéticas outras, que são por instantes negociadas e instauradas a partir da presença física,simbólica, histórica e política, em face de um outro também físico, simbólico, histórico e político com quem com-vivo.Remeto a SIMMEL, Georg. O conceito e a tragédia da Cultura. In: SOUZA, Jessé; ÖELZE, Berthold (orgs) (1998)Simmel e a Modernidade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília.39 MONTENEGRO, Antonio Torres. (2007) História Oral e memória: a cultura popular revisitada. 6ª ed. São Paulo:Contexto. p. 10.

Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 200835Saltou a vista o esforço que fazia Fernando para recordar e estabelecer uma trajetória queexplicasse quem é ele no presente. A coerência surge da identidade que ele vai estabelecendoconsigo mesmo; um homem que graças a sua astúcia gradualmente ganha controle sobre o queacontece em sua vida. O deslocamento até este fim, contudo, não é unilateral, nem está isentode contradições 40 .Neste movimento de construção de um self-herói - seja trágico, épico ou burlesco -,conta-se uma história/ficção onde FINNEGAN identifica as seguintes chaves:(...) primeiro, uma delimitação [framework] temporal e seqüêncial; segundo, alguns elementos deexplicação ou coerência; terceiro, algum potencial de generalidade [generalisability] – algo douniversal no particular; e finalmente a existência do reconhecimento de convençõesgenéricas/gerais, variando em função dos diferentes tipos de contadores/narradores oucontos/narrações, com relação à delimitação [framework], protagonistas e modos de atuação[performance]/circulação 41 .Por estas chaves é possivel reconstruir as narrativas coletadas durante o trabalho decampo, como fez NECOECHEA GARCIA, configurar as experiências vividas, e com estas figuras– memórias, experiências, valores, gestos, entre outros – interpretar as trajetórias individuais asrelacionando com alguns acontecimentos coletivos e históricos. Via reconstrução é possívelidentificar o (s) gênero (s) discursivo (s), que pode (m) ser desde a forma de enunciadosseqüênciais de fatos; portanto, uma forma factual, uma forma metafórica ou poética. Pode-seidentificar, também, a utilização ou a composição de duas ou mais formas, ou, ainda, qualqueroutra forma expressiva, como as brincadeiras e piadas, citações de textos ou de personagens daliteratura ou música, e outras 42 .40 A citação original, a saber: “Saltó a la vista el esfuerzo que hace Fernando por recordar y estabelecer unatrayectoria que explique quién es él en el presente. La coherencia surge de la identidad que él va estabeleciendoconsigo mismo: un hombre que gracias a su astucia gradualmente gana control sobre lo que sucede en su vida. Eldesplazamiento hacia este fin, sin embargo, ni es unilateral ni está exento de contradicciones.” (p. 55).NECOECHEA GARCIA, Gerardo. Mi barco cruzó todas esas olas. In: NECOECHEA GARCIA, Gerardo (2005) op.cit.p. 55.-71.41 FINNEGAN, Ruth. Story: the orders by witch we live our lives. In: _______ (1998) Tales of the city: a study ofnarrative and urban live. London: Reutledge. p 1-13. A Citação original em inglês, a saber é a seguinte: (…) first, atemporal or sequential framework; second, some element of generalisability – something of the universal in theparticular; and finally the existence of recognised generic conventions, varying for types of story-telling or tellers,which relate to the expected framework, protagonists and modes of performance/circulation. (p.09)42 Para uma introdução à narrativa biográfica, entendida como história de vida, seu contexto teórico e indicação deutilização, ver ATKINSON, Robert (1998) The Life Story Interview. London: Sage.

Ronaldo <strong>de</strong> Oliveira CorrêaTe<strong>se</strong> <strong>de</strong> Doutorado PPGICH UFSC | outono 200835Saltou a vista o esforço que fazia Fernando para recordar e estabelecer uma trajetória queexplicas<strong>se</strong> quem é ele no pre<strong>se</strong>nte. A coerência surge da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que ele vai estabelecendoconsigo mesmo; um homem que graças a sua astúcia gradualmente ganha controle <strong>sobre</strong> o queacontece em sua vida. O <strong>de</strong>slocamento até este fim, contudo, não é unilateral, nem está i<strong>se</strong>nto<strong>de</strong> contradições 40 .Neste movimento <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um <strong>se</strong>lf-herói - <strong>se</strong>ja trágico, épico ou burlesco -,conta-<strong>se</strong> uma história/ficção on<strong>de</strong> FINNEGAN i<strong>de</strong>ntifica as <strong>se</strong>guintes chaves:(...) primeiro, uma <strong>de</strong>limitação [framework] temporal e <strong>se</strong>qüêncial; <strong>se</strong>gundo, alguns elementos <strong>de</strong>explicação ou coerência; terceiro, algum potencial <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong> [generalisability] – algo douniversal no particular; e finalmente a existência do reconhecimento <strong>de</strong> convençõesgenéricas/gerais, variando em função dos diferentes tipos <strong>de</strong> contadores/narradores oucontos/narrações, com relação à <strong>de</strong>limitação [framework], protagonistas e modos <strong>de</strong> atuação[performance]/circulação 41 .Por estas chaves é possivel reconstruir as narrativas coletadas durante o trabalho <strong>de</strong>campo, como fez NECOECHEA GARCIA, configurar as experiências vividas, e com estas figuras– memórias, experiências, valores, gestos, entre outros – interpretar as trajetórias individuais asrelacionando com alguns acontecimentos coletivos e históricos. Via reconstrução é possíveli<strong>de</strong>ntificar o (s) gênero (s) discursivo (s), que po<strong>de</strong> (m) <strong>se</strong>r <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a forma <strong>de</strong> enunciados<strong>se</strong>qüênciais <strong>de</strong> fatos; portanto, uma forma factual, uma forma metafórica ou poética. Po<strong>de</strong>-<strong>se</strong>i<strong>de</strong>ntificar, também, a utilização ou a composição <strong>de</strong> duas ou mais formas, ou, ainda, qualqueroutra forma expressiva, como as brinca<strong>de</strong>iras e piadas, citações <strong>de</strong> textos ou <strong>de</strong> personagens daliteratura ou música, e outras 42 .40 A citação original, a saber: “Saltó a la vista el esfuerzo que hace Fernando por recordar y estabelecer unatrayectoria que explique quién es él en el pre<strong>se</strong>nte. La coherencia surge <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ntidad que él va estabeleciendoconsigo mismo: un hombre que gracias a su astucia gradualmente gana control <strong>sobre</strong> lo que suce<strong>de</strong> en su vida. El<strong>de</strong>splazamiento hacia este fin, sin embargo, ni es unilateral ni está exento <strong>de</strong> contradicciones.” (p. 55).NECOECHEA GARCIA, Gerardo. Mi barco cruzó todas esas olas. In: NECOECHEA GARCIA, Gerardo (2005) op.cit.p. 55.-71.41 FINNEGAN, Ruth. Story: the or<strong>de</strong>rs by witch we live our lives. In: _______ (1998) Tales of the city: a study ofnarrative and urban live. London: Reutledge. p 1-13. A Citação original em inglês, a saber é a <strong>se</strong>guinte: (…) first, atemporal or <strong>se</strong>quential framework; <strong>se</strong>cond, some element of generalisability – something of the universal in theparticular; and finally the existence of recogni<strong>se</strong>d generic conventions, varying for types of story-telling or tellers,which relate to the expected framework, protagonists and mo<strong>de</strong>s of performance/circulation. (p.09)42 Para uma introdução à narrativa biográfica, entendida como história <strong>de</strong> vida, <strong>se</strong>u contexto teórico e indicação <strong>de</strong>utilização, ver ATKINSON, Robert (1998) The Life Story Interview. London: Sage.

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