Narrativas sobre o processo de modernizar-se - capes
Narrativas sobre o processo de modernizar-se - capes Narrativas sobre o processo de modernizar-se - capes
Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008244ser citada como aquela exterior ao roteiro do boi 321 , mas que o constitui e confere à brincadeirada Ilha identidade, visto que (...) a bernunça só tem aqui (...) como bem marca Resplendor.Muito mais que uma inovação (ou atualização), a bernunça é invenção, fratura queexpõe alguns dispositivos de reordenamento de uma cosmovisão pressionada pela presença designos e significados exteriores a seu enquadramento, sua política e estética. Esta personagemcarrega na sua forma a fantasmagoria que devora a homens e mulheres e os processa na formado novo, num outro, como, por exemplo, um ser fantástico que participa de uma encenaçãodramática (e pedagógica) prosaica. Complexificando o rol de personagens, sentidos esignificados, a bernunça (e a maricota) expandem as margens dos gestos, ou seja, as formas econteúdos do sentir, pensar e agir tradicional. Originalmente, a performance da bernunça tinhapor sumário a entrada na roda, a agitação da platéia através dos gestos de abrir a roda, engolir aum assistente e sair de cena.A fantasmagoria original, assinalada como fonte de medo tanto por folcloristas (comoSOARES) quanto por artesãos (ãs): (...) era diferente de hoje, porque antigamente a bernunça, agente tinha medo da bernunça, porque a bernunça tinha uma boca (...) tem uma boca grande ebatia assim forte, e ela era meio que agressiva assim com o público, né! 322 , é substituída poruma amorosidade quase servil, o medo que o “bicho” dava nas gentes, o horror que meninos emeninas sentiam em sua presença foi domesticado. Os concursos de boi, promovidos pelosorganismos de gestão de políticas culturais de Florianópolis e planejados para demarcar umamemória “coletiva” popular, tiveram esta função domesticadora 323 .O boi bravo, a bernúncia que come gente, viram as personagens que devem “interagir”com a platéia e especialmente com as crianças. Modifica-se, dessa forma, inclusive suasuperfície corpórea, uma vez sombria e obscura, improvisada e disforme, agora fechada eexplícita. Faz-se necessário que as cores iluminadas colonizem suas matérias e seus gestos e321 Resplendor, em um trecho de sua narrativa, comenta: “(...) têm vários personagens assim incluídos, a parte,assim! Ela [a maricota] não faz parte da história do boi, mas tá tudo junto ali. A cabrinha também, a bernunça, tudoassim (...)”. EN: F01 – R&ED – 02/2006. Turno 143.322 Trecho retirado do turno 68 da EN: F02 – ED – 05/2006.323 Foi Edwilson que comentou o que ele chamou de descaracterização da mitologia do boi: “Hoje jádescaracterizaram (...), hoje a berunça, devido um concurso, acho que da prefeitura aí, que (...), que era concursode boi-de-mamão; e um dos quesitos era interatividade com o público. Então, eles fizeram na hora da bernunçamorrer (...) ((se equivoca)), na hora da bernunça comer, melhor! Na hora dela comer, ela pega e eles botam umacriança dentro da boca da bernunça. Antigamente eles pegavam uma criança do público, já ensaiada – é claro, né! ea gente ficava apavorado assim, porque eles arrancavam uma criança do público. Agora pra ter essa interatividadee ganhar o concurso, eles inventaram que na bernunça, pode entrar todo mundo que quiser na bernunça. Então acriançada faz a fila pra entrar na bernunça.” Idem, turno 70.
Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008245sons sejam suavizados. A boca da bernúncia não causa mais medo, o som oco que saía dobater das duas peças de papelão que configuram sua cabeça, não ecoam nos terreiros com amesma vitalidade, viram conversa ilegível em voz baixa, leve rumor ou lembrança do que umavez foi o som do extra-natural.O que foi o corpo disforme do “bicho” ou “não-bicho” não é mais passagem/umbral parao desconhecido ou de alguma forma irônica sobre o que é exterior, fantástico. Ele é convertidoem entrada de um longo e sinuoso túnel de tecido colorido, por onde passam as gentes(crianças) e até uma bernuncinha, que “nasce” em meio à performance. O nascimento de umabernúncia é o signo que marca a subordinação da personagem à política do espetáculo. Aliás, aperformance da bernunça é radicalmente subordinada. Sua presença no auto, em um roteirooriginal, presentificava o mistério, o fantástico – e em uma dimensão “eles” em relação a um“nós” - trazido para o centro da roda, ou seja, transcriado em signo legível, performatizado emmeio aos comentários de jovens e velhos, garantindo assim sua interpretação e processamento.Dito de outra forma, ganha um espaço social legítimo em meio às demais personagens quecontam sobre as gentes, os tempos e as formas de viver. Ao atualizar a biografia da bernunça noauto, conferindo-lhe a maternidade antropomorfizada, retira-se desta personagem seu caráterburlesco e jocoso, irônico e fantástico, deitando sob sua superfície a ingênua e patética risadabufa.O processo de domesticação de personagens como o boi e a bernunça, somenteacentua o enfraquecimento das visões cosmológicas carnavalescas e reforça o trânsito destaspara a espetacularização do carnaval recente. O movimento de enfraquecimento daambivalência cômica do carnaval popular, na direção de sua fixidez e acabamento naespetacularização define as fronteiras da história, reduz o riso jocoso, exclui o tempocarnavalesco; por fim, limita as personagens, ou seja, retira destas sua potência de abertura einacabamento, configurando a estaticidade de seus corpos e do “ciclo do boi” 324 . Acredito que324 Fragmento 26EN: F02 – ED – 05/2007. Turnos 125-130E. O período do boi é (…)?ED. Pois é, antes tinha parece (...) era entre o Natal e o Carnaval. Parece que era antes, agora num (...)descaracterizou completamente, né!E. Qualquer hora (...)ED. Pagando eles vão tocar (...) até dizem que teve uma vez que (...) antes eles tocavam de graça (...) ocerto antes era montar o boi-de-mamão e ir de casa em casa, e perguntar pro pessoal: “Oh! Que que
- Page 193 and 194: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 195 and 196: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 197 and 198: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 199 and 200: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 201 and 202: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 203 and 204: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 205 and 206: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 207 and 208: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 209 and 210: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 211 and 212: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 213 and 214: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 215 and 216: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 217 and 218: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 219 and 220: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 221 and 222: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 223 and 224: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 225 and 226: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 227 and 228: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 229 and 230: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 231 and 232: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 233 and 234: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 235 and 236: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 237 and 238: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 239 and 240: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 241 and 242: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 243: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 247 and 248: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 249 and 250: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 251 and 252: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 253 and 254: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 255 and 256: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 257 and 258: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 259 and 260: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 261 and 262: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 263 and 264: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 265 and 266: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 267 and 268: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 269 and 270: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 271 and 272: Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de
- Page 273 and 274: Apêndice 01· Modelo de Protocolo
- Page 275 and 276: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
- Page 277 and 278: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
- Page 279 and 280: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
- Page 281 and 282: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
- Page 283 and 284: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
- Page 285 and 286: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
- Page 287 and 288: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
- Page 289 and 290: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
- Page 291 and 292: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
- Page 293 and 294: apêndice Ronaldo de Oliveira Corr
Ronaldo <strong>de</strong> Oliveira CorrêaTe<strong>se</strong> <strong>de</strong> Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008245sons <strong>se</strong>jam suavizados. A boca da bernúncia não causa mais medo, o som oco que saía dobater das duas peças <strong>de</strong> papelão que configuram sua cabeça, não ecoam nos terreiros com amesma vitalida<strong>de</strong>, viram conversa ilegível em voz baixa, leve rumor ou lembrança do que umavez foi o som do extra-natural.O que foi o corpo disforme do “bicho” ou “não-bicho” não é mais passagem/umbral parao <strong>de</strong>sconhecido ou <strong>de</strong> alguma forma irônica <strong>sobre</strong> o que é exterior, fantástico. Ele é convertidoem entrada <strong>de</strong> um longo e sinuoso túnel <strong>de</strong> tecido colorido, por on<strong>de</strong> passam as gentes(crianças) e até uma bernuncinha, que “nasce” em meio à performance. O nascimento <strong>de</strong> umabernúncia é o signo que marca a subordinação da personagem à política do espetáculo. Aliás, aperformance da bernunça é radicalmente subordinada. Sua pre<strong>se</strong>nça no auto, em um roteirooriginal, pre<strong>se</strong>ntificava o mistério, o fantástico – e em uma dimensão “eles” em relação a um“nós” - trazido para o centro da roda, ou <strong>se</strong>ja, transcriado em signo legível, performatizado emmeio aos comentários <strong>de</strong> jovens e velhos, garantindo assim sua interpretação e processamento.Dito <strong>de</strong> outra forma, ganha um espaço social legítimo em meio às <strong>de</strong>mais personagens quecontam <strong>sobre</strong> as gentes, os tempos e as formas <strong>de</strong> viver. Ao atualizar a biografia da bernunça noauto, conferindo-lhe a maternida<strong>de</strong> antropomorfizada, retira-<strong>se</strong> <strong>de</strong>sta personagem <strong>se</strong>u caráterburlesco e jocoso, irônico e fantástico, <strong>de</strong>itando sob sua superfície a ingênua e patética risadabufa.O <strong>processo</strong> <strong>de</strong> domesticação <strong>de</strong> personagens como o boi e a bernunça, somenteacentua o enfraquecimento das visões cosmológicas carnavalescas e reforça o trânsito <strong>de</strong>staspara a espetacularização do carnaval recente. O movimento <strong>de</strong> enfraquecimento daambivalência cômica do carnaval popular, na direção <strong>de</strong> sua fixi<strong>de</strong>z e acabamento naespetacularização <strong>de</strong>fine as fronteiras da história, reduz o riso jocoso, exclui o tempocarnavalesco; por fim, limita as personagens, ou <strong>se</strong>ja, retira <strong>de</strong>stas sua potência <strong>de</strong> abertura einacabamento, configurando a estaticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>se</strong>us corpos e do “ciclo do boi” 324 . Acredito que324 Fragmento 26EN: F02 – ED – 05/2007. Turnos 125-130E. O período do boi é (…)?ED. Pois é, antes tinha parece (...) era entre o Natal e o Carnaval. Parece que era antes, agora num (...)<strong>de</strong>scaracterizou completamente, né!E. Qualquer hora (...)ED. Pagando eles vão tocar (...) até dizem que teve uma vez que (...) antes eles tocavam <strong>de</strong> graça (...) ocerto antes era montar o boi-<strong>de</strong>-mamão e ir <strong>de</strong> casa em casa, e perguntar pro pessoal: “Oh! Que que