Narrativas sobre o processo de modernizar-se - capes

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Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008234Dessa forma, a cena foi desdobrada; onde existia uma ação, passa a existir umamicronarrativa. O enfrentamento é mais tenso, porque a ampliação da narrativa expõe detalhesantes obscurecidos. A bruxa, neste contexto, presentificou o místico/mistério que falta aomédico-palhaço e que parece prosaico (ou talvez ilegível) no (a) benzedeiro (a). Por mais umavez, o enquadramento “hiper-realista” (o médico que cura com drogas) foi destronado. E, paraque o tema que subjaz a toda esta cena seja eficaz, a morte do boi precisa ser revertida. Estaação foi destinada à personagem solene da bruxa. Diferente do médico-palhaço e sua oficiosaembriagez, a bruxa encontra sua expressividade dramática na risada de escárnio, na lentidão deseu gestual, na perturbadora feiúra de seu corpo, nas cores obscuras de suas roupas. Aredenção do mais amado, o boi, é realizada pela virulência desta mulher que gesticulaconvulsivamente, que baba em cima do boi, que asperge sobre o corpo do “animal” fluidos epalavras de conjuro. Esta gestualidade febril da bruxa revive o boi, que mais forte e agressivo,bumba!É através desta lógica das permutações que a cena ganha significado, a brancura domédico é substituída pela obscuridade retorcida da bruxa, e é somente neste profundo grotescoque a regeneração da centralidade do boi é alcançada. A cena original e aquela atualizada sãomarcadas pela cosmovisão carnavalesca popular, sua fragmentalidade e metamorfoses. Osmovimentos de descida (morte) e subida (reviver) do boi são configurados pelas atuações dequeda do cientista e ascensão da bruxa. “Ciência” e “mistério” envolvem o tema da morte nacenografia dramática do Boi-de-mamão; dramaticidade que envolve a farsa, as crençasambivalentes em ciência e costume, na forma de uma discursividade sobre o trânsito da vida,sobre as desigualdades emblemáticas que podem ser lidas como micronarrativas conectadas emcircuitos qual aquelas calvinianas: a multiplicidade, a leveza, a visibilidade 310 .A segunda cena (relativa à fantasmagoria da bernúncia e à agressividade do boi)funciona de forma distinta da anterior. Inicio pelo boi, para tomar sua ressurreição como ponto deinflexão. O boi revive mais bravo, mais arredio, e para contê-lo é necessário que o mateus ou olaçador (cavaleiro) o prenda e conduza para fora de cena. Aqui, o boi bumba com vigor e suaagressividade também é alegria que conduz ao êxtase a platéia. O êxtase que se sente estáligado à excitação que conecta a performance dramática do boi-de-mamão à memória de outra310 Remeto às conferências proferidas em 1984 pelo escritor italiano Italo Calvino na Universidade de Harvard, emCambridge, Massachusets, Estados Unidos da América. Nestas lições americanas, o escritor tratava de temasligados à literatura e a valores literários que deveriam ser preservados no novo milênio. CALVINO, Italo (1990) Seispropostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das letras.

Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008235performance também “dramática”: a Farra do boi. Esta, por sua vez, não apresenta suaspersonagens tal brincantes burlescos ou bufos. A Farra é arena onde são postas“violentamente”, ou mesmo sensualmente, questões relativas às práticas da tauromaquia(combate com o touro), às sociabilidades masculinas, às tradições.Ao bumbar mais forte, a coreografia do boi-de-mamão aciona mais uma vez significadoscomo: Avante, meu boi! Chifra, meu boi! Bate, meu boi! Num roteiro original, estas investidas doboi encimavam o enfrentamento do homem com a natureza, dramatizando a Farra dionisíaca, ouseja, imprimiam uma marca sobre a relação homem e natureza. O momento em que esta relaçãovoraz é performatizada, ocorre no “combate” entre o boi (ressuscitado) – e dessa forma,marcado pelo retorno a um tipo de animalidade original (natural) – e o laçador (mateus) 311 . Naperformance dramática do boi-de-mamão, ao mesmo tempo, o combate é signo da imitação e daluta, anunciadas como categorias de diferenciação/identificação por BASTOS 312 . Nesta cenaalegórica, a separação entre os duplos é corpo-realizada nestas duas personagens quedesenvolvem uma luta-dança que, no final, obscurece, mais uma vez, a pretendida separação,i.é., o golpe final do combate, no lugar de distinguir homem e boi, os une metaforicamenteatravés de um nó.A circularidade dos movimentos que se completam, tanto do mateus quanto do boi,desenha uma voragem que toma a todos (personagens e assistência). O jogo de aproximaçõese distanciamento, o ritmado estudo dos movimentos embevece os olhares, que absortos entramem um transe. A tensão constroi-se na aceleração crescente da dupla, na música quedescarrega seu ritmo, somos, neste momento, boi e Mateus; nossas individualidades sãocondensadas nestas personagens (ou nesta personagem composta). A ex-centricidade daperformance nos arranca do tempo cronológico e nos joga no tempo da festa; somos tomados311 O “combate” entre boi e mateus, configurados nos gestos de laçar o boi e retirá-lo de cena conecta (ou jáconectou de forma mais eficaz) homens e boi, ao simular as formas em que a brincadeira da Farra acontece. Deacordo com BASTOS, a brincadeira (categoria nativa ambivalente utilizada pelos farristas para nominar a Farra)contém dois tipos de relação entre seus participantes (farrista e boi), a saber: “na Farra, brinca-se de e com oanimal, o que respectivamente significaria ‘imitar’ e ‘lutar’ ele/com ele. Note-se que, no primeiro caso, o farristaassume, às vezes jocosa, às vezes austeramente, figurações bovinas: emite mugidos, mostra os ‘chifres’ (dedosindicadores em riste) ameaçadoramente, ‘chifra’, arrasta violentamente as ‘patas’ no chão, arremete contra oadversário, etc. Supondo poder aqui encontrar uma linha de identidade homem-boi, conquistada através da imitaçãoartístico-dramática. No segundo sentido, porém, o que se evidencia é uma linha de separação entre os duplos, ofarrista agora claramente combatendo o animal, de maneira tipicamente heróica e sob a lisura de uma ética e deuma estética que não admitem a corrupção da judiaria. A relação homem-boi, agora, não igualiza no final, a partir deuma diferenciação inicial – mas do jogo, que com suas regras o faz diferentes (vencedor-vencido), revertendo-lhes aigualdade anterior”. BASTOS, Rafael José de Menezes (org) (1993) op. cit. p. 24.312 Idem.

Ronaldo <strong>de</strong> Oliveira CorrêaTe<strong>se</strong> <strong>de</strong> Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008235performance também “dramática”: a Farra do boi. Esta, por sua vez, não apre<strong>se</strong>nta suaspersonagens tal brincantes burlescos ou bufos. A Farra é arena on<strong>de</strong> são postas“violentamente”, ou mesmo <strong>se</strong>nsualmente, questões relativas às práticas da tauromaquia(combate com o touro), às sociabilida<strong>de</strong>s masculinas, às tradições.Ao bumbar mais forte, a coreografia do boi-<strong>de</strong>-mamão aciona mais uma vez significadoscomo: Avante, meu boi! Chifra, meu boi! Bate, meu boi! Num roteiro original, estas investidas doboi encimavam o enfrentamento do homem com a natureza, dramatizando a Farra dionisíaca, ou<strong>se</strong>ja, imprimiam uma marca <strong>sobre</strong> a relação homem e natureza. O momento em que esta relaçãovoraz é performatizada, ocorre no “combate” entre o boi (ressuscitado) – e <strong>de</strong>ssa forma,marcado pelo retorno a um tipo <strong>de</strong> animalida<strong>de</strong> original (natural) – e o laçador (mateus) 311 . Naperformance dramática do boi-<strong>de</strong>-mamão, ao mesmo tempo, o combate é signo da imitação e daluta, anunciadas como categorias <strong>de</strong> diferenciação/i<strong>de</strong>ntificação por BASTOS 312 . Nesta cenaalegórica, a <strong>se</strong>paração entre os duplos é corpo-realizada nestas duas personagens que<strong>de</strong><strong>se</strong>nvolvem uma luta-dança que, no final, obscurece, mais uma vez, a pretendida <strong>se</strong>paração,i.é., o golpe final do combate, no lugar <strong>de</strong> distinguir homem e boi, os une metaforicamenteatravés <strong>de</strong> um nó.A circularida<strong>de</strong> dos movimentos que <strong>se</strong> completam, tanto do mateus quanto do boi,<strong>de</strong><strong>se</strong>nha uma voragem que toma a todos (personagens e assistência). O jogo <strong>de</strong> aproximaçõe<strong>se</strong> distanciamento, o ritmado estudo dos movimentos embevece os olhares, que absortos entramem um tran<strong>se</strong>. A tensão constroi-<strong>se</strong> na aceleração crescente da dupla, na música que<strong>de</strong>scarrega <strong>se</strong>u ritmo, somos, neste momento, boi e Mateus; nossas individualida<strong>de</strong>s sãocon<strong>de</strong>nsadas nestas personagens (ou nesta personagem composta). A ex-centricida<strong>de</strong> daperformance nos arranca do tempo cronológico e nos joga no tempo da festa; somos tomados311 O “combate” entre boi e mateus, configurados nos gestos <strong>de</strong> laçar o boi e retirá-lo <strong>de</strong> cena conecta (ou jáconectou <strong>de</strong> forma mais eficaz) homens e boi, ao simular as formas em que a brinca<strong>de</strong>ira da Farra acontece. Deacordo com BASTOS, a brinca<strong>de</strong>ira (categoria nativa ambivalente utilizada pelos farristas para nominar a Farra)contém dois tipos <strong>de</strong> relação entre <strong>se</strong>us participantes (farrista e boi), a saber: “na Farra, brinca-<strong>se</strong> <strong>de</strong> e com oanimal, o que respectivamente significaria ‘imitar’ e ‘lutar’ ele/com ele. Note-<strong>se</strong> que, no primeiro caso, o farristaassume, às vezes jocosa, às vezes austeramente, figurações bovinas: emite mugidos, mostra os ‘chifres’ (<strong>de</strong>dosindicadores em riste) ameaçadoramente, ‘chifra’, arrasta violentamente as ‘patas’ no chão, arremete contra oadversário, etc. Supondo po<strong>de</strong>r aqui encontrar uma linha <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> homem-boi, conquistada através da imitaçãoartístico-dramática. No <strong>se</strong>gundo <strong>se</strong>ntido, porém, o que <strong>se</strong> evi<strong>de</strong>ncia é uma linha <strong>de</strong> <strong>se</strong>paração entre os duplos, ofarrista agora claramente combatendo o animal, <strong>de</strong> maneira tipicamente heróica e sob a lisura <strong>de</strong> uma ética e <strong>de</strong>uma estética que não admitem a corrupção da judiaria. A relação homem-boi, agora, não igualiza no final, a partir <strong>de</strong>uma diferenciação inicial – mas do jogo, que com suas regras o faz diferentes (vencedor-vencido), revertendo-lhes aigualda<strong>de</strong> anterior”. BASTOS, Rafael José <strong>de</strong> Menezes (org) (1993) op. cit. p. 24.312 I<strong>de</strong>m.

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