Ronaldo <strong>de</strong> Oliveira CorrêaTe<strong>se</strong> <strong>de</strong> Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008228A especificida<strong>de</strong> micronarrativa do mamão e do tecido colorido no boi alegórico <strong>de</strong> SantaCatarina e sua função como dispositivo, <strong>de</strong> alguma forma, <strong>de</strong>marcador <strong>de</strong> práticas sociais queconfiguram uma pedagogia <strong>de</strong> discursos i<strong>de</strong>ntitários, políticos e históricos, remete àquelasfunções sociais que FERNANDES 301 propõe para o folclore paulistano, a saber: influênciasocializadora, controle social e reintegração <strong>de</strong> herança social.Acredito que, <strong>se</strong>guindo FERNANDES, a narrativa performatizada nesta brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>Santa Catarina estimula a aquisição <strong>de</strong> experiência societária, visto que esta forma dramática,ao <strong>se</strong>r encenada nas praças públicas e em terreiros das casas, ou na forma <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iraimprovisada <strong>de</strong> crianças, marca o encontro, <strong>de</strong>limita um coletivo; dito <strong>de</strong> outra forma, configuraum “nós” em relação a um “eles”. Funciona ainda, como dispositivo <strong>de</strong> atualização e perpetuação<strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s que garantem o controle social, i.é., um pouco dissonante ao que problematizaFERNANDES, age nas fórmulas padronizadas retirando <strong>de</strong>stas sua fixi<strong>de</strong>z, incorporando aambigüida<strong>de</strong> entre mo<strong>de</strong>rnizar e pre<strong>se</strong>rvar as “formas” e “conteúdos” <strong>de</strong> <strong>se</strong>ntir, pensar e agirtradicionais. Por fim, atua realizando a ligação/ponte entre o pre<strong>se</strong>nte e o passado, integrando aomeio social antigas e novas gerações, que neste encontro atualizam suas biografias <strong>de</strong> geraçãoe grupo, re-or<strong>de</strong>nam suas performances em função das pressões históricas, políticas,econômicas, <strong>de</strong>scartam fórmulas que não têm mais significado 302 .O Boi-<strong>de</strong>-mamão (da Ilha ou do continente), encenado em Santa Catarina, varia emnúmero <strong>de</strong> personagens, na duração e na forma <strong>de</strong> contar e cantar a história, mas, tem por ba<strong>se</strong>comum a morte e a ressurreição do boi. Para <strong>se</strong> enten<strong>de</strong>r a ba<strong>se</strong> narrativa da brinca<strong>de</strong>ira,SOARES <strong>de</strong>screve o <strong>se</strong>guinte sumário: “A brinca<strong>de</strong>ira encanta principalmente as crianças, a<strong>de</strong>speito do temor pelas investidas do boi e da fantasmagórica figura da bernúncia, que procura‘engolir’ a platéia. Os avanços do boi, a <strong>se</strong>nsação da morte, o <strong>se</strong>u ressurgimento curado pelabenzedura, <strong>de</strong>pois que o doutor veterinário o dá como morto, são os aspectos <strong>se</strong>nsacionais dadança, culminando com o cavaleiro laçando o boi”. Duas personagens pre<strong>se</strong>ntes neste sumário,e que aparecem somente em Santa Catarina, são a maricota, “a mulher gigante”, e a bernunça,“aparente réplica do gran<strong>de</strong> dragão celeste chinês” 303 . Este sumário (micronarrativa do auto doboi-<strong>de</strong>-mamão), suas personagens e ações, são transcriados na forma <strong>de</strong> conjuntos <strong>de</strong> peças301 FERNANDES, Florestan (2004) op. cit.302 Para uma ilustração a respeito do boi-<strong>de</strong>-mamão, conferir o capítulo II – A brinca<strong>de</strong>ria do Boi <strong>de</strong> mamão. In:GONÇALVES, Reonaldo Manoel. Educação popular e boi-<strong>de</strong>-mamão. Diálogos brincantes. Florianópolis. 198 f.Te<strong>se</strong> <strong>de</strong> doutorado. Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Educação, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina, 2006.303 As passagens utilizadas como referência neste parágrafo estão em SOARES, Doralécio (2002) op. cit. p. 49.
Ronaldo <strong>de</strong> Oliveira CorrêaTe<strong>se</strong> <strong>de</strong> Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008229escultóricas que participam <strong>de</strong> um circuito <strong>de</strong> circulação simbólico/cultural e ordinário e que, <strong>de</strong>alguma forma, estabelecem diálogo plástico com as atuações levadas a cabo no período dasfestas do boi <strong>de</strong> Florianópolis, SC.O que interessa neste momento da análi<strong>se</strong> é mapear e interpretar como as atualizaçõesdas narrativas da brinca<strong>de</strong>ira, em face das mudanças (limitação) 304 no sumário <strong>de</strong>scritoanteriormente (<strong>se</strong>jam estas históricas, sociais, econômicas, estéticas e éticas), imprimem na<strong>se</strong>qüência <strong>de</strong> cenas (no roteiro) e, con<strong>se</strong>qüentemente, na superfície das peças (locus <strong>de</strong>narrativas visuais), as disputas por espaços <strong>de</strong> repre<strong>se</strong>ntação tanto político, quanto expressivo(estéticos). Interessa interpretar, na superfície do corpo das coisas e nas versões das históriasdo boi encenadas em Florianópolis, o <strong>de</strong>slocamento provocado pelo trânsito <strong>de</strong> suas narrativa<strong>se</strong>spetaculares, no sistema <strong>de</strong> objetos artesanais e nas estratégias e dispositivos plásticosutilizados pelos autores para legitimar sua participação nos circuitos <strong>de</strong> circulação culturalrecentes.Pretendo, pois, realizar o <strong>se</strong>guinte movimento, a saber: tomo as apre<strong>se</strong>ntações <strong>de</strong>grupos <strong>de</strong> boi-<strong>de</strong>-mamão, ocorridas no âmbito da 13ª Açor – Festa da Cultura Açoriana, que <strong>se</strong><strong>de</strong>u no período <strong>de</strong> 17 a 19 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2006, no Centro Histórico da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Laguna,Estado <strong>de</strong> Santa Catarina, Brasil 305 , para, a partir <strong>de</strong>las, explicitar as atualizações na304 O <strong>se</strong>ntido <strong>de</strong> limitação aqui referenciado está relacionado ao par limite vs. limiar. Na sua análi<strong>se</strong> da obra <strong>de</strong>Rabelais, BAKHTIN lança mão <strong>de</strong>ste par <strong>de</strong> categorias para enten<strong>de</strong>r a transposição que <strong>de</strong>screve o carnaval comoforma sincrética. Por limiar este autor russo enten<strong>de</strong> o inacabamento da existência, a oposição ao limite, ou <strong>se</strong>ja, olimiar <strong>se</strong>ria a sustentação da carnavalização interna aos discursos polifônicos. Por outro lado, e em contraste, olimite <strong>se</strong>ria a fixi<strong>de</strong>z e estaticida<strong>de</strong> dos discursos monológicos que teriam no canôn clássico sua configuração.DISCINI, Norma. In: BRAIT, Beth (org.) (2006) op. cit.; BAJITIN, Mijail (2005) op.cit.305 Estas ob<strong>se</strong>rvações fazem partes das notas realizadas no período da festa em Laguna. Esta festa configura-<strong>se</strong>como estratégia institucional <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> homogênea <strong>de</strong> “açoriano-<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte”. Ela érealizada uma vez por ano, em uma cida<strong>de</strong> diferente a cada edição. É organizada pelo Núcleo <strong>de</strong> EstudosAçorianos da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina e tem por propósito “divulgar” a cultura catarinen<strong>se</strong> <strong>de</strong> “ba<strong>se</strong>açoriana”. O projeto da festa é estruturado a partir <strong>de</strong> eixos: culinária; folclore (danças e performances dramáticas);manifestações religiosas (missas festivas, <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>iras); exposições <strong>de</strong> imagens e artesanato. Neste espaçoinstitucional, a encenação <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> cultura local tem por ba<strong>se</strong> o discurso construído nos anos <strong>de</strong> 1960, jáexposto em outro momento. Acredito que estas ações e agendas (calendários) políticas configurariam importantetema <strong>de</strong> investigação <strong>sobre</strong> os usos <strong>de</strong> categorias como cultura popular, artesanato, <strong>processo</strong>s <strong>de</strong> hibridação,interculturalida<strong>de</strong>, (re)criação <strong>de</strong> tradições, entre outros que ampliariam a discussão ou configuração da arena <strong>de</strong>disputas que envolvem a economia política e simbólica do artesanato/cultura popular em Santa Catarina. A princípionão acredito na eficácia discursiva e objetual <strong>de</strong>ste discurso i<strong>de</strong>ntitário, após acessar alguns <strong>de</strong> <strong>se</strong>us dispositivoslegitimadores, a saber: monografias, dis<strong>se</strong>rtações e te<strong>se</strong>s <strong>sobre</strong> o que <strong>se</strong> convencionou sob <strong>de</strong>terminadaperspectiva teórica <strong>de</strong> “açorianida<strong>de</strong>”, a criação do calendário institucional que divulga este discurso, as políticaspúblicas e culturais para criação <strong>de</strong> uma memória “coletiva” e positivação <strong>de</strong>ste discurso i<strong>de</strong>ntitário, especialmenteapoiado na figura do (a) mané da ilha. Reconheço que, <strong>de</strong> alguma forma, estes dispositivos refletem (e refratam) um<strong>de</strong><strong>se</strong>jo por i<strong>de</strong>ntificação/i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> na Ilha, mas esta não é nem homogênea e livre <strong>de</strong> tensões como apre<strong>se</strong>ntadaatravés <strong>de</strong>stas ações institucionais. Deveras, acredito que a potência que estas estratégias possuem recai no <strong>se</strong>umonologismo, ou <strong>se</strong>ja, na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> subordinar as diferentes vozes que participam dos <strong>processo</strong>s <strong>de</strong>