Narrativas sobre o processo de modernizar-se - capes
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Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008168Bakhtiniano 226 , e, com isso, organizo, sistematizo e apresento as formas de fazer, mas, e nummesmo fluxo narrativo (enunciado), justaponho vozes, histórias e imagens formuladas porartesãos (ãs), para com isso construir um texto estruturalmente dialógico.Este é o lugar/tempo onde se localiza a alma da análise e, ao mesmo tempo, o momentomais “árido” desta investigação. Árido é palavra mais que propícia. Não por este instante nainterpretação e análise ser cru e mecânico (burocrático), pelo contrário, este momento do fazerartesanal é quando homens e mulheres, modeladores do barro, realizam-se enquanto produtoresde gestos políticos libertadores e polissêmicos. Encaro este momento como aquele no qual aguarda do castelo se troca, e quando é possível entrar sem ser impedido (igual as gentes queinvadiam, uma e outra vez, o castelo do patriarca no romance de Márquez, citadoanteriormente).Este é o momento quando se compartilham os segredos, quando se fabrica a presença,a corporeidade, a autoria. Quando se materializa na história a presença dos gestos, a eloqüênciadas vozes, quando se subvertem as subordinações e libertam-se as imaginações, mesmo“reproduzindo” desenhos ancestrais, objetualidades aparentemente caducas. Por estes motivos,minha escritura é seca, desértica (mas não estéril, maçante). Isso, para abarcar este momentodo fazer artesanal que transborda de sentidos, e a igualmente seca e desértica narrativa (re)criada pelos artesãos (ãs), e, com isso, ou a partir disso, fazer legível a escritura deSARAMAGO:A pasta está boa, úmida e plástica no ponto, fácil de trabalhar, ora, perguntamos nós, comopoderá ele estar tão seguro do que diz se só lhe pôs a palma da mão em cima, se só apertou emoveu um pouco de pasta entre o dedo polegar e os dedos indicador e médio, como se, deolhos fechados, todo entregue ao sentido interrogador do tacto, estivesse a apreciar, não amistura homogênea de argila vermelha, caulino, sílica e água, mas o urdume e a trama de umaseda 227 .Perguntar sobre os saberes técnicos e estéticos de artesãos (ãs) significa acessar ossentidos, ou seja, ir ao encontro daqueles estímulos sensoriais mais ordinários: principalmente otato, e, então, o olfato, a audição e a visão. Acredito que principalmente o tato, por ser este osentido privilegiado na modelagem, i.é., no trabalho com o barro. As mãos – o tato, pois - queamassam o barro, sentem a textura, percebem a plasticidade, impõem sua força à matéria226 BAKHTIN, Mikhail. (1992) Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.227 SARAMAGO, José (2000) op. cit. p. 148.
Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008169amorfa, retiram da matéria bruta a forma, são elas que, verdadeiramente, configuram. São,metaforicamente, as mãos de artesão (ãs) que contam as histórias, narram as fórmulaspadronizadas, objetualizam em esculturas as práticas sociais.Apoiadas pela visão, são as mãos que imprimem sobre a matéria do barro as cores. Sãoelas – as mãos - as primeiras a sujarem-se com os pigmentos e, neste gesto prosaico,guardarem na profundidade da derme as manchas, ou seja, os saberes sobre as cores criadas eainda sem nomes. Esta “primeira-idade” do tato desenha em massas de tons corpos (roupas esapatos), circunscreve círculos-olhos, salpica pequenos pontos-sobrancelhas. Esta “primeiraidade”do tato oferece à visão, a possibilidade de, por mais uma vez, olhar sobre a superfície decerâmica colorida e, assim, produzir, uma e outra vez, os sentidos/significados.Deveras, são os sentidos mais ordinários aqueles que guardam as técnicas e estéticasartesanais. São eles, aqueles que tocam o vermelho da massa, ouvem o fogo queimar as peçasno interior do forno, vêem a qualidade e a dureza da argila, cheiram a eficácia da transformaçãodo barro em cerâmica. São os sentidos que, ao terem deitado as cores e os padrões na matériado objeto, como um gesto de carinho com a materialidade das coisas, encenam umaperformance, disparam uma memória, armam uma armadilha ao desejo 228 .Aliás, acessar as técnicas e desenhos artesanais impõe acompanhar a gestualidade deartesãos (ãs). Acompanhando assim os deslocamentos de dedos, os movimentos de falanges,as temperaturas das peles e suas estratégias de revelar o oculto que fica guardado nasimaginações dos homens e mulheres que manipulam o barro. Assim, proceder com areconstrução destes gestos insubordinados significa fornecer uma chave para o entendimento da228 Para me deter por alguns momentos sobre o “ordinário” dos sentidos, baseio-me na seguinte passagem: “Noteseque, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebro, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo eo auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto.Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. (...)” e continuaposteriormente “(...) E as cores. Manda a verdade que se diga que o cérebro é muito menos entendido em cores doque crê. É certo que consegue ver mais ou menos claramente o que os olhos lhe mostram, mas as mais das vezessofre do que poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de converter emconhecimento o que viu. Graças à inconsciente segurança com que a duração da vida acabou por dotá-lo,pronuncia sem hesitar os nomes da cores a que chama elementares e complementárias, nas imediatamente seperde, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos dealgo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela cor ainda de todo não nascida que, com oassentimento, a cumplicidade de, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando e queprovavelmente nunca chegará a receber o justo nome. Ou talvez já o tenha, mas esse só as mãos o conhecem,porque compuseram a tinta como se estivessem a decompor as partes constituintes de uma nota de música, porquese sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse saber invisíveldos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado do que os olhos julgaram ter visto, océrebro da cabeça afirma que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a umidade e a secura, a praia ébranca, ou amarela, ou dourada, ou cinzenta, ou roxa, ou qualquer coisa entre isso e aquilo, mas depois vêm osdedos e, com um movimento de recolha, como se estivessem a ceifar uma seara, levantam do chão todas as coresque há no mundo”. SARAMAGO, José (2000) op. cit. p. 82-84.
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Ronaldo <strong>de</strong> Oliveira CorrêaTe<strong>se</strong> <strong>de</strong> Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008169amorfa, retiram da matéria bruta a forma, são elas que, verda<strong>de</strong>iramente, configuram. São,metaforicamente, as mãos <strong>de</strong> artesão (ãs) que contam as histórias, narram as fórmulaspadronizadas, objetualizam em esculturas as práticas sociais.Apoiadas pela visão, são as mãos que imprimem <strong>sobre</strong> a matéria do barro as cores. Sãoelas – as mãos - as primeiras a sujarem-<strong>se</strong> com os pigmentos e, neste gesto prosaico,guardarem na profundida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>rme as manchas, ou <strong>se</strong>ja, os saberes <strong>sobre</strong> as cores criadas eainda <strong>se</strong>m nomes. Esta “primeira-ida<strong>de</strong>” do tato <strong>de</strong><strong>se</strong>nha em massas <strong>de</strong> tons corpos (roupas esapatos), circunscreve círculos-olhos, salpica pequenos pontos-sobrancelhas. Esta “primeiraida<strong>de</strong>”do tato oferece à visão, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, por mais uma vez, olhar <strong>sobre</strong> a superfície <strong>de</strong>cerâmica colorida e, assim, produzir, uma e outra vez, os <strong>se</strong>ntidos/significados.Deveras, são os <strong>se</strong>ntidos mais ordinários aqueles que guardam as técnicas e estéticasartesanais. São eles, aqueles que tocam o vermelho da massa, ouvem o fogo queimar as peçasno interior do forno, vêem a qualida<strong>de</strong> e a dureza da argila, cheiram a eficácia da transformaçãodo barro em cerâmica. São os <strong>se</strong>ntidos que, ao terem <strong>de</strong>itado as cores e os padrões na matériado objeto, como um gesto <strong>de</strong> carinho com a materialida<strong>de</strong> das coisas, encenam umaperformance, disparam uma memória, armam uma armadilha ao <strong>de</strong><strong>se</strong>jo 228 .Aliás, acessar as técnicas e <strong>de</strong><strong>se</strong>nhos artesanais impõe acompanhar a gestualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>artesãos (ãs). Acompanhando assim os <strong>de</strong>slocamentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dos, os movimentos <strong>de</strong> falanges,as temperaturas das peles e suas estratégias <strong>de</strong> revelar o oculto que fica guardado nasimaginações dos homens e mulheres que manipulam o barro. Assim, proce<strong>de</strong>r com areconstrução <strong>de</strong>stes gestos insubordinados significa fornecer uma chave para o entendimento da228 Para me <strong>de</strong>ter por alguns momentos <strong>sobre</strong> o “ordinário” dos <strong>se</strong>ntidos, ba<strong>se</strong>io-me na <strong>se</strong>guinte passagem: “Note<strong>se</strong>que, ao nascermos, os <strong>de</strong>dos ainda não têm cérebro, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo eo auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto.Por isso o que os <strong>de</strong>dos <strong>se</strong>mpre souberam fazer <strong>de</strong> melhor foi precisamente revelar o oculto. (...)” e continuaposteriormente “(...) E as cores. Manda a verda<strong>de</strong> que <strong>se</strong> diga que o cérebro é muito menos entendido em cores doque crê. É certo que con<strong>se</strong>gue ver mais ou menos claramente o que os olhos lhe mostram, mas as mais das vezessofre do que po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>signar por problemas <strong>de</strong> orientação <strong>se</strong>mpre que chega a hora <strong>de</strong> converter emconhecimento o que viu. Graças à inconsciente <strong>se</strong>gurança com que a duração da vida acabou por dotá-lo,pronuncia <strong>se</strong>m hesitar os nomes da cores a que chama elementares e complementárias, nas imediatamente <strong>se</strong>per<strong>de</strong>, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palavras que possam <strong>se</strong>rvir <strong>de</strong> rótulos ou dísticos explicativos <strong>de</strong>algo que toca o inefável, <strong>de</strong> algo que roça o indizível, aquela cor ainda <strong>de</strong> todo não nascida que, com oas<strong>se</strong>ntimento, a cumplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os <strong>de</strong>dos vão criando e queprovavelmente nunca chegará a receber o justo nome. Ou talvez já o tenha, mas es<strong>se</strong> só as mãos o conhecem,porque compu<strong>se</strong>ram a tinta como <strong>se</strong> estives<strong>se</strong>m a <strong>de</strong>compor as partes constituintes <strong>de</strong> uma nota <strong>de</strong> música, porque<strong>se</strong> sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da <strong>de</strong>rme, porque só com es<strong>se</strong> saber invisíveldos <strong>de</strong>dos <strong>se</strong> po<strong>de</strong>rá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado do que os olhos julgaram ter visto, océrebro da cabeça afirma que, <strong>se</strong>gundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a umida<strong>de</strong> e a <strong>se</strong>cura, a praia ébranca, ou amarela, ou dourada, ou cinzenta, ou roxa, ou qualquer coisa entre isso e aquilo, mas <strong>de</strong>pois vêm os<strong>de</strong>dos e, com um movimento <strong>de</strong> recolha, como <strong>se</strong> estives<strong>se</strong>m a ceifar uma <strong>se</strong>ara, levantam do chão todas as coresque há no mundo”. SARAMAGO, José (2000) op. cit. p. 82-84.