Narrativas sobre o processo de modernizar-se - capes
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Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008124escada que sobe em direção à segurança moderna da casa da mãe de Edwilson. Nesta área detrânsito - que nos melhores dias vividos desta casa foi a lavanderia (área de serviço) -, estáesquecido o grande torno movido à tração humana, um cinzento tanque de lavar roupas,avermelhado pelo pó das peças que chegam do forno, e uma estranha coleção de pedaços demáquinas, de garrafas de vidro e plástico, de corpos de barro sem cabeças, de cabeças semfeições, de bois e cabras, por fim, de coisas.Paralelo ao corpo da casa, para onde a porta e janela da cozinha se abrem, existecansadamente um retângulo de terra, resto do que um dia foi um jardim. Neste canteiro maltratado pelo tempo, e esquecido pelos donos, algumas flores teimosamente se abrem para o sol.Tudo neste lugar parece nos fazer rememorar. Os objetos que ali estão parecem esquecidos,cobertos por uma capa fina de poeira, asfalto, cerâmica. Um pouco parecido com os olhos caféde Resplendor, que parecem igualmente esquecidos do tempo, das coisas, das gentes.O contraste aqui se dá com a narrativa de Dona Maricota, artesã especialista namodelagem de cerâmica folclórica. Uma mulher solteira, nascida na década de 1930, filha domeio entre as mulheres de um total de onze filhos – sendo cinco mulheres e seis homens, todostrabalhadores do barro. No fragmento apresentado, ela narra o primeiro momento de construçãode seu ateliê, mediado pelas práticas de trabalho e os processos de negociação de uma venda.O fragmento é extenso; todavia, necessário para entender o esquema narrativoempregado pela artesã. A narrativa apresenta-se como um processo de ação biográfica, relativoaos espaços de trabalho e às práticas de produção. Esta ação influenciou Dona Maricota a umatransformação em suas relações com a casa e a oficina, com os consumidores e com elamesma, ou seja, uma reconstrução de sua identidade. A coerência interna desta narrativa recaina construção de um self-herói que, surpreendido, e neste caso surpreendida, pelos desafiosque a vida (fortuna) apresenta, resolve enfrentá-los, mesmo sem saber se pode superá-los.Similar aos heróis de aventuras fantásticas ou de epopéias gregas, que são postos a toda prova,até surgir o momento de redenção e superação.Apesar de num primeiro momento o gênero narrativo estar próximo à epopéia grega,caracterizado pelo tempo estável e pelo fato do herói, por mais que passe por provas que odesafiam, permanecer o mesmo, ou seja, preservar seu self-herói, o que encontro na narrativa“épica” de Dona Maricota é o intenso movimento de transformação de sua identidade. Estatransformação expõe a tensão de sua narrativa e desloca o gênero da epopéia grega,
Ronaldo de Oliveira CorrêaTese de Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008125aproximando-a das narrativas populares ou carnavalescas 177 . Sua narrativa resguarda algo daforma grega (a estrutura), mas talvez seja ao modo de uma mímica deste gênero, onde o intensomovimento (expresso nos drásticos deslocamentos dos tempos verbais) expõe um tempoelíptico, voraz e não-linear mais próximo do cinema moderno de Eisenstein e de Vertov, do quede uma literatura naturalista de Proust ou Fontane. A narrativa de Dona Maricota aproxima-sedas variações de significação encontradas nas histórias burlescas – carnavalescas - de Chaplin,onde o herói continuamente é posto à prova, e não permanece inteiro em sua identidade.Metamorfoseia-se, neste movimento temporal, e em conseqüência transforma-se em outropossível, desejado. Reorienta seu desejo, performatiza novas ações, antagonizar-se,complementar-se.Fragmento 09Fonte: EN: F02 – MM – 10/2006. Turnos 12-28M. Pra vender nas lojas (...) no começo eu vendia só queimado, eu era sozinha pra fazer tudo,eu tinha a minha mãe pra cuidar, então eu não pintava, aí depois a minha cunhada –começou muita encomenda, aí a minha cunhada vinha ajudar porque tinha que cuidar damãe também, né! E, aí foi aumentando a produção, porque a minha cunhada vinha ajudar(...) ai um dia veio um pessoal lá da Tupi (...)E. Isso é o quê?M. A Tupi é uma fábrica que faz coisas de aço, de ferro (...) porque a assistente social da Tupi láde Joinville era daqui de Palhoça, e a família deles era conhecida da minha família, e o irmãodela morava aqui no fundo. Ela aí apareceu aqui e disse: “Dona Maricota eu quero trezentospau de fita”;E. ((risos))M. Eu disse: “ai meu Deus, Deus do céu! Pra quando?” ela disse: “não, nós já vinhemos antes, jácom calma pra (...)”E. Mas ela já conhecia o seu trabalho (...)M. Ela já sabia porque o irmão dela morava aqui no fundo (...)E. Aqui atrás (...)M. É aqui atrás (...) e daí, eu disse: “eu tenho que falar com a minha cunhada, porque ela estátrabalhando comigo, se ela me ajudar, eu faço! - a gente faz”. Então tá, então fizemos opreço (...) era três cruzeiros naquela época, foi com que eu fiz isso aqui ((se refere aorancho/ateliê)), aí pegamos ((a encomenda)), era pra levar uns três meses pra fazer, nós177 Sobre a caracterização do tempo nas narrativas da epopéia grega e do romance popular ou carnavalesco tomopor base a reflexão de BAKHTIN sobre estes gêneros do discurso. Remeto a BAJTIN, Mijail (2005) op. cit. Para umcomentário sobre estes conceitos e noções ver BRAIT. Beth (org.) (2006) op. cit.
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Ronaldo <strong>de</strong> Oliveira CorrêaTe<strong>se</strong> <strong>de</strong> Doutorado PPGICH UFSC | outono 2008125aproximando-a das narrativas populares ou carnavalescas 177 . Sua narrativa resguarda algo daforma grega (a estrutura), mas talvez <strong>se</strong>ja ao modo <strong>de</strong> uma mímica <strong>de</strong>ste gênero, on<strong>de</strong> o intensomovimento (expresso nos drásticos <strong>de</strong>slocamentos dos tempos verbais) expõe um tempoelíptico, voraz e não-linear mais próximo do cinema mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Ei<strong>se</strong>nstein e <strong>de</strong> Vertov, do que<strong>de</strong> uma literatura naturalista <strong>de</strong> Proust ou Fontane. A narrativa <strong>de</strong> Dona Maricota aproxima-<strong>se</strong>das variações <strong>de</strong> significação encontradas nas histórias burlescas – carnavalescas - <strong>de</strong> Chaplin,on<strong>de</strong> o herói continuamente é posto à prova, e não permanece inteiro em sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.Metamorfo<strong>se</strong>ia-<strong>se</strong>, neste movimento temporal, e em con<strong>se</strong>qüência transforma-<strong>se</strong> em outropossível, <strong>de</strong><strong>se</strong>jado. Reorienta <strong>se</strong>u <strong>de</strong><strong>se</strong>jo, performatiza novas ações, antagonizar-<strong>se</strong>,complementar-<strong>se</strong>.Fragmento 09Fonte: EN: F02 – MM – 10/2006. Turnos 12-28M. Pra ven<strong>de</strong>r nas lojas (...) no começo eu vendia só queimado, eu era sozinha pra fazer tudo,eu tinha a minha mãe pra cuidar, então eu não pintava, aí <strong>de</strong>pois a minha cunhada –começou muita encomenda, aí a minha cunhada vinha ajudar porque tinha que cuidar damãe também, né! E, aí foi aumentando a produção, porque a minha cunhada vinha ajudar(...) ai um dia veio um pessoal lá da Tupi (...)E. Isso é o quê?M. A Tupi é uma fábrica que faz coisas <strong>de</strong> aço, <strong>de</strong> ferro (...) porque a assistente social da Tupi lá<strong>de</strong> Joinville era daqui <strong>de</strong> Palhoça, e a família <strong>de</strong>les era conhecida da minha família, e o irmão<strong>de</strong>la morava aqui no fundo. Ela aí apareceu aqui e dis<strong>se</strong>: “Dona Maricota eu quero trezentospau <strong>de</strong> fita”;E. ((risos))M. Eu dis<strong>se</strong>: “ai meu Deus, Deus do céu! Pra quando?” ela dis<strong>se</strong>: “não, nós já vinhemos antes, jácom calma pra (...)”E. Mas ela já conhecia o <strong>se</strong>u trabalho (...)M. Ela já sabia porque o irmão <strong>de</strong>la morava aqui no fundo (...)E. Aqui atrás (...)M. É aqui atrás (...) e daí, eu dis<strong>se</strong>: “eu tenho que falar com a minha cunhada, porque ela estátrabalhando comigo, <strong>se</strong> ela me ajudar, eu faço! - a gente faz”. Então tá, então fizemos opreço (...) era três cruzeiros naquela época, foi com que eu fiz isso aqui ((<strong>se</strong> refere aorancho/ateliê)), aí pegamos ((a encomenda)), era pra levar uns três me<strong>se</strong>s pra fazer, nós177 Sobre a caracterização do tempo nas narrativas da epopéia grega e do romance popular ou carnavalesco tomopor ba<strong>se</strong> a reflexão <strong>de</strong> BAKHTIN <strong>sobre</strong> estes gêneros do discurso. Remeto a BAJTIN, Mijail (2005) op. cit. Para umcomentário <strong>sobre</strong> estes conceitos e noções ver BRAIT. Beth (org.) (2006) op. cit.