<strong>melancolia</strong>. Mas, em última instância, o texto realiza um intercâmbio entre estes dois estados,sempre os comparando e os diferenciando. Ao estudar um estado patológico, ele acaba porelucidar <strong>de</strong> novo a normalida<strong>de</strong>. Este tipo <strong>de</strong> inversão também foi usado no artigometapsicológico Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos, <strong>de</strong> 1917 (1915). Vale aquireproduzir o parágrafo que abre o artigo, no qual Freud inicia suas argumentações,comentando sobre o seu método <strong>de</strong> investigação, que costuma conceber os estados normaiscomo mo<strong>de</strong>los paradigmáticos a partir dos quais se po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a patologia:Em nossas pesquisas psicanalíticas, constatamos com freqüência como po<strong>de</strong> servantajoso utilizar certos estados e fenômenos que po<strong>de</strong>mos conceber como versõesnormais, ou mo<strong>de</strong>los prototípicos, <strong>de</strong> estados afetivos – por exemplo, o luto e oapaixonamento, ou o estado <strong>de</strong> sono e o fenômeno <strong>de</strong> sonhar – para compará-loscom as chamadas afecções patológicas (FREUD, 1917[1915], p.79)Neste interessante artigo, é estabelecida uma comparação entre o estado <strong>de</strong> sono e asituação a partir da qual se inicia o <strong>de</strong>senvolvimento da vida. Freud nos diz que, no estado <strong>de</strong>sono, há uma reativação daquele estado que experimentamos uma vez no útero materno, o <strong>de</strong>calor, repouso e isolamento do excesso <strong>de</strong> estímulos. O estar dormindo caracteriza-se pelaretirada do interesse pelo mundo, isto é, pela regressão da libido até um estado <strong>de</strong> narcisismoprimitivo, enquanto o ego regri<strong>de</strong> até a satisfação alucinatória <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, como po<strong>de</strong> serobservada nos sonhos. É estabelecida, assim, uma analogia entre o sono e o narcisismo. Talanalogia permite a Freud postular que o sonho e a esquizofrenia se parecem, por seremestados nos quais ocorre tanto uma regressão da libido para o estado <strong>de</strong> narcisismo, quanto autilização comum em ambos <strong>de</strong> processos da realização alucinatória <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo. Finalmente acomparação entre o sonho e a esquizofrenia é realizada, por serem ambos estadosalucinatórios <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo. O que ele nos mostra é que o sonho é o protótipo das perturbaçõespsíquicas narcísicas que, nesta época – 1915-1917 –, compreendiam os estados <strong>de</strong> paranóia,esquizofrenia e <strong>melancolia</strong>.Na abertura do artigo, po<strong>de</strong>mos encontrar o seguinte: “Após termos utilizado o sonhocomo protótipo das perturbações psíquicas narcísicas, iremos agora tentar esclarecer anatureza da <strong>melancolia</strong>. Para tal iremos comparar a <strong>melancolia</strong> com o afeto que estáenvolvido no luto normal.” (FREUD, 1917 [1915], p.103). Assim, em Luto e <strong>melancolia</strong>(1917 [1915]), Freud se põe a compreen<strong>de</strong>r os processos psíquicos da <strong>melancolia</strong> a partir <strong>de</strong>sua correlação com o luto – ressaltando seus aspectos comuns e distintos – e retomando o quehavia proposto vinte anos antes no citado “Manuscrito G”, <strong>de</strong> 1895 (MASSON, 1986). Aidéia <strong>de</strong>senvolvida em seu estudo é A <strong>de</strong> que o luto seria o afeto normal que correspon<strong>de</strong> à<strong>melancolia</strong>, lançando assim a idéia da perda objetal na origem <strong>de</strong>sta última.94
De início, cabe <strong>de</strong>stacar uma influência importante para a elaboração do artigo: asidéias <strong>de</strong> Karl Abraham. Psicanalista alemão, aliás, o primeiro, e amigo íntimo <strong>de</strong> Freud,Abraham (1970 [1911]) escreveu em 1911 um trabalho intitulado Notas sobre a investigaçãoe o tratamento psicanalíticos da psicose maníaco-<strong>de</strong>pressiva e estados afins, No qual o autor<strong>de</strong>dica especial atenção à <strong>melancolia</strong> e afirma que estes estados vinham recebendo poucaatenção nos trabalhos psicanalíticos até aquele momento. Abraham faz também umacomparação entre a <strong>de</strong>pressão melancólica e o luto, sem, entretanto, explorá-la. O que elerevela neste texto é a relação dos sentimentos ambivalentes – amor e ódio – do melancólico.O ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> Freud em Luto e <strong>melancolia</strong> (1917 [1915]) é aquela relação feitapor ele vinte anos antes no “Manuscrito G”: “o afeto que correspon<strong>de</strong> à <strong>melancolia</strong> é o luto”.E é só através <strong>de</strong>sta relação que consegue elucidar a dinâmica psíquica da <strong>melancolia</strong>. Doisfatores o levam a traçar uma relação, a fazer uma comparação, entre o luto e a <strong>melancolia</strong>. Oprimeiro é o <strong>de</strong> que ambos os estados são entendidos como reações à perda. Ambos sãoocasionados por uma perda <strong>de</strong> um objeto libidinal ou perda <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al. O segundo ponto quelevou Freud a comparar estes dois estados – e aqui o luto e a <strong>melancolia</strong> realmente se parecem– foi o quadro clínico que se estabelece. No luto e na <strong>melancolia</strong>, os sintomas são muitoparecidos, o que o leva a aceitar que as características psíquicas <strong>de</strong>stes dois estados são muitopróximas. Entretanto, ele as distingue muito bem. Temos o luto e a <strong>melancolia</strong>, amboscolocados por Freud como reações à perda <strong>de</strong> um objeto libidinal, e também como quadrosclínicos semelhantes, isto é, com sintomas muitos parecidos. Mas estes dois estados sediferenciam em um ponto crucial: na <strong>melancolia</strong> faz-se presente uma intensa e notável perdado sentimento <strong>de</strong> auto-estima, do sentimento <strong>de</strong> amor próprio, da auto-valorização; esta perdase expressa em auto-recriminações e auto-insultos, chegando até a uma expectativa <strong>de</strong>punição.2.2 O Luto e a consolidação do registro da perdaA situação <strong>de</strong> perda remete-nos diretamente à vivência do luto. É no processo <strong>de</strong> lutoque as perdas são vivenciadas e elaboradas. E Freud nos explicará o porquê disso. Comoassinalamos, tanto o luto quanto a <strong>melancolia</strong> se constituem como estados responsivos àperda. Nas palavras <strong>de</strong> Freud (1917 [1915], p.103), o luto, [...] “é, em geral, a reação à perda95
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