separação se justifica em sua prática clínica, pois, como vimos, Freud encontrava comfreqüência a <strong>melancolia</strong> associada a outras neuroses. Então sua postulação consi<strong>de</strong>ra umaforma pura <strong>de</strong> <strong>melancolia</strong>, que seria a chamada genuína, uma provável correlata do distúrbiobipolar. E consi<strong>de</strong>ra também outras duas formas mistas, a neurastênica, como pu<strong>de</strong>mosconferir no “rascunho F”, e a <strong>de</strong> angústia, uma provável <strong>de</strong>pressão periódica.No “rascunho E”, encontramos um anseio insatisfeito, uma perda. Será um anseio emfunção <strong>de</strong> algo perdido, <strong>de</strong>ixando a libido insatisfeita? Vinte anos mais tar<strong>de</strong>, Freud nosrespon<strong>de</strong>u com precisão a esta pergunta. Em Luto e <strong>melancolia</strong>, a questão da perda é colocadaem <strong>de</strong>staque na origem da <strong>melancolia</strong> e a insatisfação consigo próprio será relacionada àperda <strong>de</strong> uma satisfação narcísica.Também a comparação entre o luto e a <strong>melancolia</strong> será gestada por Freud, até receberconsi<strong>de</strong>ração apropriada no artigo exclusivo sobre esta temática. Luto e <strong>melancolia</strong> (1917[1915]) consolidou-se como o texto fundamental sobre este assunto na psicanálise, e tornou-sereferência entre os psicanalistas, sendo estudado até os dias atuais. Muitos psicanalistas pósfreudianosbasearam-se e ainda se baseiam nele para <strong>de</strong>senvolver suas conceituações ecompreensões acerca da <strong>de</strong>pressão e da <strong>melancolia</strong>, ou, dito <strong>de</strong> maneira mais ampla, dosestados <strong>de</strong>pressivos.Retomando nossa trilha pelos rascunhos enviados a Fliess, <strong>de</strong>paramo-nos com o“rascunho K”, um exame das várias neuroses <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, no qual a <strong>melancolia</strong> aparecerá naspartes sobre a neurose obsessiva e sobre a paranóia. Na primeira passagem,O ego consciente consi<strong>de</strong>ra a obsessão como algo que lhe é estranho: não acreditanela, ao que parece, valendo-se da idéia antitética da escrupulosida<strong>de</strong>, formadamuito tempo antes. Mas, nesse estágio, muitas vezes po<strong>de</strong> acontecer umasubjugação do ego pela obsessão — por exemplo, quando o ego é atingido por uma<strong>melancolia</strong> transitória (FREUD, 1896, p.272; grifo nosso).O ego 6 subjugado na <strong>melancolia</strong> será, em O ego e o id, <strong>de</strong> 1923, entendido como umconflito entre o ego 7 e o superego – o ego será subjugado por um superego cruel e sádico.ego:A passagem sobre a paranóia revelará a importância do sentimento <strong>de</strong> aniquilação doO processo atinge seu ponto conclusivo ou na <strong>melancolia</strong> (sentimento <strong>de</strong>aniquilação do ego), que, <strong>de</strong> um modo secundário, liga às distorções a crença quefoi <strong>de</strong>svinculada da autocensura primária; ou — o que é mais freqüente e maisgrave — nos <strong>de</strong>lírios protetores (megalomania), até o ego ser completamenteremo<strong>de</strong>lado (FREUD, 1896, p.274; grifo nosso).6 Nesta época o ego ainda não havia recebido o status <strong>de</strong> instancia psíquica.7 Aqui o ego já é uma instancia <strong>de</strong>finida <strong>de</strong>ntro da segunda tópica.58
Nestes dois fragmentos, encontramos o ego como centro do conflito melancólico – oego aniquilado e subjugado traz à tona a dimensão da ambivalência e principalmente adimensão narcísica, isto é, um problema que afeta a saú<strong>de</strong> do auto-conceito <strong>de</strong>vido a umintenso sentimento <strong>de</strong> auto-reprovação por parte do superego.Temos a seguir o “Rascunho N”:[a] (...) construção <strong>de</strong> sintomas por i<strong>de</strong>ntificação está ligada às fantasias — isto é, aseu recalcamento no Inc. — numa forma análoga à da modificação do ego naparanóia. Como a irrupção da angústia está ligada a essas fantasias recalcadas,<strong>de</strong>vemos concluir que a transformação da libido em angústia não ocorre porintermédio da <strong>de</strong>fesa atuante entre o ego e o Inc., mas sim no Inc. como tal.Conclui-se, pois, que existe também uma libido Inc.Parece que o recalcamento dos impulsos produz não angústia, mas talvez<strong>de</strong>pressão — <strong>melancolia</strong>. Desse modo, as <strong>melancolia</strong>s estão relacionadas com aneurose obsessiva (FREUD, 1897, p.307; grifos nossos).Freud começa a perceber uma relação entre a neurose obsessiva e a <strong>melancolia</strong>. Decerta forma vemos o sentido <strong>de</strong>sta relação em O ego e o id (1923), trabalho no qual esta éexplorada, <strong>de</strong> forma a fazer uma comparação e uma diferenciação entre as duas condições. Aoexaminar os sentimentos <strong>de</strong> culpa, Freud faz uso <strong>de</strong>sta relação, notando que tanto na<strong>melancolia</strong> quanto na neurose obsessiva tem-se a presença <strong>de</strong> culpa. Ainda é a dimensão daambivalência que as aproxima. No último parágrafo citado, parece que <strong>de</strong>pressão e<strong>melancolia</strong> são usadas como sinônimos, diferentemente <strong>de</strong> nos primeiros rascunhos, nos quaisencontramos tais estados diferenciados. Neste período, em 1987, Freud começa a consi<strong>de</strong>rar<strong>de</strong> maneira mais predominante a importância da ação das fantasias inconscientes nopsiquismo, dando origem à noção <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> psíquica.No último ano do século XIX, Freud escreve a Fliess:Em uma paciente (em que <strong>de</strong>terminei exatamente a fantasia) havia constantesestados <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, com uma convicção melancólica <strong>de</strong> que ela não valia nada,era incapaz <strong>de</strong> fazer qualquer coisa etc. Sempre pensei que, no início <strong>de</strong> suainfância, ela houvesse testemunhado um estado análogo, uma <strong>melancolia</strong>verda<strong>de</strong>ira, em sua mãe. Isso concordava com a teoria anterior, mas dois anos nãotrouxeram nenhuma confirmação. E agora se verificou que, quando ela era umaadolescente <strong>de</strong> quatorze anos, <strong>de</strong>scobriu que tinha atresia hymenalis [hímenimperfurado] e ficou <strong>de</strong>sesperada, imaginando que não serviria para esposa:<strong>melancolia</strong> — isto é, temor da impotência. Outros estados, em que não consegue<strong>de</strong>cidir-se quanto à escolha <strong>de</strong> um chapéu ou um vestido, originam-se <strong>de</strong> sua luta naépoca em que teve <strong>de</strong> escolher um marido (FREUD, Carta 102, 1899, p.328; grifosnossos).Nesta carta, a <strong>melancolia</strong> é <strong>de</strong>finida como um temor da impotência, uma convicção <strong>de</strong>não valer nada, <strong>de</strong> ser incapaz <strong>de</strong> fazer qualquer coisa. Freud <strong>de</strong>sconfiou que a i<strong>de</strong>ntificaçãocom a mãe melancólica estivesse relacionada com a <strong>melancolia</strong> da paciente – a dimensãonarcísica da <strong>melancolia</strong> é finalmente revelada. A i<strong>de</strong>ntificação, mecanismo presente na59
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