No renascimento, gradualmente o racionalismo científico foi triunfando sobre asuperstição medieval. Com o renascimento inglês, é possível observar um movimento que vai<strong>de</strong>s<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a <strong>melancolia</strong> como uma pré-disposição à possessão, até pensadores quesugeriam que as bruxas eram apenas velhas <strong>de</strong>safortunadas, doentes e melancólicas. Assim, oque antes era possessão passava a ser agora um <strong>de</strong>lírio mental, conectado à <strong>melancolia</strong>(SOLOMON, 2002, p.276).Em 1599, o francês Andréas Du Laurens redime os melancólicos perante a igreja,dizendo que a <strong>melancolia</strong> seria uma doença da imaginação, <strong>de</strong>ixando a alma e a razão intacta.Para Laurens a <strong>melancolia</strong> podia assumir diversos graus, <strong>de</strong> maneira a se distinguir as que semantinham <strong>de</strong>ntro dos limites da saú<strong>de</strong> das que não se mantinham <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>stes limites. Océrebro do melancólico seria tomado pela bile negra, fazendo com que ele enxergasseescuridão em toda parte (SOLOMON, 2002, p.277).No século XVI, época da primeira aparição da palavra psicologia e do crescenteinteresse pelo estudo da mente, a <strong>melancolia</strong> – como uma doença – começa a ser estudadaabundantemente por médicos e pensadores. As fronteiras entre medicina e filosofia eramtênues e, portanto, a compreensão alcançada sobre a <strong>melancolia</strong> era mais filosófica. Aindapredominava a teoria dos humores que, segundo Scliar (2003, p.78), constituiu-se em uma“metáfora po<strong>de</strong>rosa”: “a teoria humoral permaneceu praticamente intocada durante quatorzeséculos”. Na verda<strong>de</strong> as teorias da época seguiam ainda duas correntes: os a<strong>de</strong>ptos da correntearistotélica, que colocavam a <strong>melancolia</strong> como condição <strong>de</strong> erudição, genialida<strong>de</strong> e dotes paraa arte; e os da corrente hipocrática ou galênica, caracterizando a <strong>melancolia</strong> tão somente comoum distúrbio <strong>de</strong> humores relacionado à bile negra. Portanto, não havia um consenso a respeitoda <strong>melancolia</strong> como doença, questão que sofrerá profundas mudanças com o advento daciência mental, como veremos mais adiante.Solomon (2002, p.277-79) mostra como, no final do século XVI e ao longo do séculoXVII, a <strong>melancolia</strong> entra em voga. Ela é tida como algo comum e quase normal, tornando-seuma aflição tão prazerosa quanto <strong>de</strong>sprazerosa. A <strong>melancolia</strong> passa a significar gran<strong>de</strong>profundida<strong>de</strong> da alma, complexida<strong>de</strong> e genialida<strong>de</strong>. Autores <strong>de</strong> toda a Europa retomam aromântica <strong>concepção</strong> aristotélica e escrevem sobre como a <strong>melancolia</strong> torna um homemmelhor e mais inspirado. Todos os que se consi<strong>de</strong>ravam homens geniais, ou que <strong>de</strong>sejavamsê-lo, ansiavam pela <strong>melancolia</strong>. Assim, esta manifestação vai se tornando uma doença daaristocracia. De acordo com Solomon, todo o mundo parecia estar ficando <strong>de</strong>primido, e ohomem começava a se encontrar na idéia <strong>de</strong> <strong>melancolia</strong>. As pessoas assumiam32
comportamentos melancólicos sem serem vítimas da doença, ficavam horas a contemplar osofrimento e a sustentar dúvidas existenciais para as quais nunca encontrariam respostas,confessavam medo <strong>de</strong> qualquer coisa que fosse difícil ou assustadora. Assim, este estadomental, do qual tantos sofreram penosamente ao longo dos séculos, agora emergia como uma<strong>melancolia</strong> branca, algo mais brilhante do que sombrio.Ainda a propósito do século XVII, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mencionar uma daspublicações <strong>de</strong> maior importância no que se refere ao tema da <strong>melancolia</strong>. Com um feitoadmirável para a época – cinco edições publicadas em vida –, Robert Burton publicou em1621 A anatomia da <strong>melancolia</strong> (SCLIAR, 2003, p.8). Trata-se <strong>de</strong> uma interminávelcompilação que tenta apresentar e reconciliar todo o conhecimento sobre a <strong>melancolia</strong>produzido até aquela época. Assim, Solomon (2002, p.279) revela que, neste livro, po<strong>de</strong>mosencontrar as “filosofias <strong>de</strong> Aristóteles e Ficino, os personagens <strong>de</strong> Shakespeare, os insightsmédicos <strong>de</strong> Hipócrates e Galeno, os impulsos religiosos da Igreja medieval e renascentista eas experiências pessoais <strong>de</strong> doença e introspecção”. Muitas das idéias <strong>de</strong> Burton antece<strong>de</strong>m<strong>de</strong> alguma forma as mo<strong>de</strong>rnas compreensões em torno da <strong>melancolia</strong> e da <strong>de</strong>pressão. Vamosapresentar algumas <strong>de</strong>las rapidamente. Para Burton, a <strong>melancolia</strong> se diferenciava <strong>de</strong> afetos docotidiano, como a condição <strong>de</strong> se encontrar apenas apático, triste, maldisposto, letárgico,solitário, emocionado ou <strong>de</strong>scontente. Estas características estariam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> qualquerhomem vivo, e não po<strong>de</strong>riam ser tomadas como doença. Encontramos aqui, mais uma vez,uma idéia que se aproxima daquela do “Problema” <strong>de</strong> Aristóteles, sem dúvida uma noçãoclara que temos atualmente da <strong>de</strong>pressão. Burton <strong>de</strong>staca ainda a interessante idéia <strong>de</strong> quecada homem tem um nível diferente <strong>de</strong> tolerância ao trauma, e que a interação entre os níveis<strong>de</strong> trauma e tolerância é que <strong>de</strong>termina a <strong>melancolia</strong>. Esta <strong>concepção</strong> está próxima daquelaque temos em psicanálise <strong>de</strong> que a maneira como cada sujeito irá lidar com as adversida<strong>de</strong>s davida <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus recursos psíquicos e do significado subjetivo dado aos acontecimentos.Assim, o mesmo acontecimento que para alguns po<strong>de</strong> ser terrível ou carregado <strong>de</strong> emoçõesnegativas, para outro po<strong>de</strong> simplesmente não ter relevância em sua vida afetiva. Situaçõescomo abuso mal concebido, injúria, dor, <strong>de</strong>sgraça, perda, aborrecimento, boato, po<strong>de</strong>m,segundo Burton, <strong>de</strong>ixar um homem tomado pela <strong>melancolia</strong>. Ora, o que seriam estascondições, senão frustrações que acompanham a vida <strong>de</strong> todo homem, e para as quais omelancólico não tem tolerância? Como Freud apontou séculos mais tar<strong>de</strong>, no âmago da<strong>melancolia</strong> po<strong>de</strong>mos encontrar uma situação <strong>de</strong> perda ou <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração que po<strong>de</strong> serinterpretada pelo sujeito como uma intensa frustração, uma ferida narcísica. Finalmente,33
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